Opinião

A afetação para julgamento pelo regime dos recursos repetitivos

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27 de abril de 2021, 19h11

Em recente decisão (ProAfR no REsp 1.863.973/SP), determinou o STJ a afetação para julgamento pelo regime dos recursos repetitivos, recurso versando sobre questão cuja interpretação encontra-se consolidada em jurisprudência dominante de ambas as turmas e acordão proferido em embargos de divergência. Questão já decidida em precedente vinculante (CPC, artigo 927, inciso V), portanto.

Ementa:

"Proposta de afetação. Recurso especial. Rito dos recursos especiais repetitivos. Discussão consistente em definir se, no âmbito do contrato de mútuo bancário, em que há expressa autorização do mutuário-correntista para o desconto em conta-corrente das correlatas prestações, é aplicável ou não, por analogia, a limitação de 30% prevista na Lei nº 10.820/2003.

1. Delimitação da controvérsia: 'Aplicabilidade ou não da limitação de 30% prevista na Lei nº 10.820/2003 (artigo 1º, § 1º), para os contratos de empréstimos bancários livremente pactuados, nos quais haja previsão de desconto em conta corrente, ainda que usada para o recebimento de salário'.

2. Recurso especial afetado ao rito do artigo 1.036 do Código de Processo Civil. (ProAfR no REsp 1863973/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/03/2021, DJe 06/04/2021)."

De fato, extrai-se do voto do relator que a questão encontra-se pacificada no âmbito do STJ, inclusive com acórdão proferido em embargos de divergência, entretanto:

"Conforme assentado pelo Presidente da Comissão Gestora de Precedentes, a corroborar a repetitividade da matéria, há 497 decisões monocráticas na base de pesquisa jurisprudencial sobre o tema, entre outros acórdãos proferidos pelas Turmas integrantes da Segunda Seção. (…)

Tendo em conta, ainda, a multiplicidade de recursos especiais versando sobre essa mesma questão jurídica, aliado ao fato de que o julgamento submetido ao rito dos recursos especiais repetitivos pode evitar decisões divergentes nas instâncias inferiores e o envio desnecessário de recursos especiais e agravos a esta Corte Superior, entendo adequada a afetação do presente recurso especial como representativo de controvérsia."

Atente-se que apesar de afirmar expressamente que a jurisprudência do STJ antes oscilante sobre o tema, foi uniformizada em embargos de divergência, deixando claro que a questão está pacificada em precedente vinculante no âmbito daquele tribunal, justificou-se a afetação no fato de continuarem chegando àquele tribunal recursos especiais e agravos sobre a matéria, sendo insuficiente a aplicação da Súmula 568 para vencer o trabalho repetitivo da Corte.

Vejamos o que diz a Súmula: o relator, monocraticamente e no Superior Tribunal de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema. (Súmula 568, Corte Especial, julgado em 16/03/2016, DJe 17/03/2016).

Tal enunciado amplia os poderes do relator previstos no artigo 932, inciso V, do CPC. Enquanto neste dispositivo, em sua interpretação literal, o relator só pode dar ou negar provimento a recurso com base em súmula do STJ/STF e acórdãos proferidos no regime dos recursos repetitivos (REsp/RE Repetitivos, IRDR, IAC); a súmula autoriza, apenas no âmbito do STJ, o julgamento monocrático do recurso especial com fundamento em entendimento dominante do Tribunal sobre a matéria.

Entretanto, esta barreira não está sendo suficiente para impedir a subida dos recursos especiais ou agravos em recurso especial ao STJ. Mantém-se a sobrecarga de trabalho e a mobilização de recursos materiais e humanos para a análise, ainda que para negar provimento monocraticamente, de recursos sobre matérias já decididas em precedentes vinculantes, ainda que produzidos em procedimento diverso do regime dos recursos repetitivos.

Eis a justificativa da afetação de recurso especial repetitivo para reafirmação de jurisprudência dominante.

Decorre da incoerência sistêmica constatada no CPC, que impõe diversidade de regime recursal conforme a fundamentação do acórdão recorrido: 1) se o acórdão recorrido estiver fundamentado em recurso especial repetitivo, da decisão da presidência ou vice-presidência que nega seguimento, cabe agravo interno (CPC, artigo 1.030, § 2º); 2) se o acórdão recorrido estiver fundamentado em outro precedente vinculante (IAC, Embargos de Divergência, v.g.), da decisão que nega seguimento ao recurso especial, cabe agravo em recurso especial (CPC, artigo 1.042), cuja interposição é feita diretamente na secretaria da presidência do STJ, exigindo uma resposta, ainda que de não conhecimento ou improvimento monocrático deste tribunal.

Daí o interesse na reafirmação de precedente vinculante em recurso repetitivo. Do acórdão que aplica tese definida em recurso repetitivo não cabe recurso especial (artigo 1.030, I, b). E do juízo negativo de admissibilidade por estar o acórdão recorrido em conformidade com precedente exarado no regime dos recursos repetitivos não cabe agravo em recurso especial.

Desta decisão, o recurso cabível é o agravo interno para o próprio tribunal de apelação (artigo 1.030, § 2º).

E da decisão deste agravo interno não cabe reclamação, restando ao interessado apenas a via da ação rescisória, conforme decidido pela Corte Especial na Reclamação nº 36.476:

"Reclamação. Recurso especial ao qual o tribunal de origem negou seguimento, com fundamento na conformidade entre o acórdão recorrido e a orientação firmada pelo stj em recurso especial repetitivo (REsp 1.301.989/RS – Tema 658). Interposição de agravo interno no tribunal local. Desprovimento. Reclamação que sustenta a indevida aplicação da tese, por se tratar de hipótese fática distinta. Descabimento. Petição inicial. Indeferimento. Extinção do processo sem resolução do mérito.

1. Cuida-se de reclamação ajuizada contra acórdão do TJ/SP que, em sede de agravo interno, manteve a decisão que negou seguimento ao recurso especial interposto pelos reclamantes, em razão da conformidade do acórdão recorrido com o entendimento firmado pelo STJ no REsp 1.301.989/RS, julgado sob o regime dos recursos especiais repetitivos (Tema 658).

2. Em sua redação original, o artigo 988, IV, do CPC/2015, previa o cabimento de reclamação para garantir a observância de precedente proferido em julgamento de "casos repetitivos", os quais, conforme o disposto no artigo 928 do Código, abrangem o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e os recursos especial e extraordinário repetitivos.

3. Todavia, ainda no período de vacatio legis do CPC/15, o artigo 988, IV, foi modificado pela Lei 13.256/2016: a anterior previsão de reclamação para garantir a observância de precedente oriundo de "casos repetitivos" foi excluída, passando a constar, nas hipóteses de cabimento, apenas o precedente oriundo de IRDR, que é espécie daquele.

4. Houve, portanto, a supressão do cabimento da reclamação para a observância de acórdão proferido em recursos especial e extraordinário repetitivos, em que pese a mesma Lei 13.256/2016, paradoxalmente, tenha acrescentado um pressuposto de admissibilidade — consistente no esgotamento das instâncias ordinárias — à hipótese que acabara de excluir.

5. Sob um aspecto topológico, à luz do disposto no artigo 11 da LC 95/98, não há coerência e lógica em se afirmar que o parágrafo 5º, II, do artigo 988 do CPC, com a redação dada pela Lei 13.256/2016, veicularia uma nova hipótese de cabimento da reclamação. Estas hipóteses foram elencadas pelos incisos do caput, sendo que, por outro lado, o parágrafo se inicia, ele próprio, anunciando que trataria de situações de inadmissibilidade da reclamação.

6. De outro turno, a investigação do contexto jurídico-político em que editada a Lei 13.256/2016 revela que, dentre outras questões, a norma efetivamente visou ao fim da reclamação dirigida ao STJ e ao STF para o controle da aplicação dos acórdãos sobre questões repetitivas, tratando-se de opção de política judiciária para desafogar os trabalhos nas Cortes de superposição.

7. Outrossim, a admissão da reclamação na hipótese em comento atenta contra a finalidade da instituição do regime dos recursos especiais repetitivos, que surgiu como mecanismo de racionalização da prestação jurisdicional do STJ, perante o fenômeno social da massificação dos litígios.

8. Nesse regime, o STJ se desincumbe de seu múnus constitucional definindo, por uma vez, mediante julgamento por amostragem, a interpretação da Lei federal que deve ser obrigatoriamente observada pelas instâncias ordinárias. Uma vez uniformizado o direito, é dos juízes e Tribunais locais a incumbência de aplicação individualizada da tese jurídica em cada caso concreto.

9. Em tal sistemática, a aplicação em concreto do precedente não está imune à revisão, que se dá na via recursal ordinária, até eventualmente culminar no julgamento, no âmbito do Tribunal local, do agravo interno de que trata o artigo 1.030, § 2º, do CPC/15.

10. Petição inicial da reclamação indeferida, com a extinção do processo sem resolução do mérito" (Rcl 36.476/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 5/2/2020, DJe 6/3/2020).

A questão ganha em perplexidade ao se constatar que pela ratio decidendi deste acórdão o agravo interno é recurso específico apenas da decisão denegatória de seguimento fundamentada na conformidade do acórdão recorrido a entendimento exarado em recurso repetitivo. Se o acórdão recorrido estiver em conformidade com outro precedente vinculante, súmula ou entendimento firmado em incidente de assunção de competência do STJ, por exemplo, da decisão denegatória de seguimento cabe agravo em recurso especial.

Tal situação foi constatada em julgamento recente:

"Considerando que o recurso adequado contra a decisão proferida com base no artigo 1.030, I, b, do CPC/2015 é o agravo interno, não cabe ao STJ, no julgamento do Agravo em Recurso Especial, interposto contra o ponto da decisão que não admitira o Recurso Especial com base na Súmula 7/STJ, conhecer da insurgência contra o ponto do decisum que negara seguimento ao recurso especial, por conformidade do acórdão recorrido com entendimento do STJ, exarado no REsp 1.340.553/RS, sob o rito de julgamento de recurso repetitivo" (AREsp 1820297/PR, relatora ministra Assusete Magalhães, 2ª Turma, julgado em 9/3/2021, DJe 15/3/2021).

Atente-se que, conforme se extrai da ementa:

"O Recurso Especial teve seguimento negado, com fundamento no artigo 1.030, I, b, do CPC/2015, em relação à tese suscitada sob alegação de contrariedade aos arts. 174, parágrafo único, I, do CTN, e 8º, § 2º, da Lei 6.830/80 — por estar o acórdão recorrido em conformidade com o julgamento do REsp repetitivo 1.340.553/RS —, e restou inadmitido, por incidência da Súmula 7/STJ, quanto à tese em torno do artigo 25 da Lei 6.830/80, ensejando a interposição simultânea de Agravo interno, improvido, pelo Órgão Especial do Tribunal de origem, e do presente Agravo em Recurso Especial".

Ou seja, fundamentando-se o juízo de inadmissibilidade do recurso especial em conformidade da decisão recorrida a recurso especial repetitivo e em súmula do STJ, ambos previstos como precedentes vinculantes no rol do artigo 927 do CPC; deve a parte ingressar simultaneamente com agravo interno e agravo em recurso especial contra a mesma decisão. E mais, apenas deste capítulo caberá reclamação, daquele não.

Na prática, portanto, a afetação para julgamento pela sistemática dos recursos repetitivos de temas já consolidados na jurisprudência do STJ tem por única finalidade afastar a possibilidade de interposição de agravo em recurso especial contra o juízo negativo de inadmissibilidade do recurso especial, forçando a interposição do agravo interno, de cuja decisão não cabe reclamação, mas rescisória, sepultando a questão no tribunal de apelação.

Destarte, com a finalidade de criar cláusula de barreira para recurso especial, agravo em recurso especial e para a reclamação, o STJ ao afetar para julgamento pela sistemática dos recursos especiais repetitivos questões já objeto de outros precedentes vinculantes — IAC, Súmula, Acórdão proferido em Embargos de Divergência —, na prática, esvazia a eficácia destes precedentes e afirma que a vinculatividade do precedente decorre não da sua posição de Corte de Cúpula, competente constitucionalmente para definir em última instância a interpretação do direito federal, mas da forma específica como determinadas matérias são por ele julgadas.

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