Opinião

Os riscos da constitucionalização excessiva do Direito Financeiro

Autor

  • Gerson Sicca

    é mestre em Direito conselheiro substituto do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina e membro do Comitê Técnico de Educação do Instituto Rui Barbosa.

26 de abril de 2021, 19h25

Um dos subprodutos da crise política brasileira é a crescente utilização da Constituição como veículo normativo regulador das finanças públicas. Ao longo da história, o nosso constitucionalismo caminhou da sintética previsão do rito de elaboração do orçamento estabelecido pela Constituição de 1824 [1], passou pela positivação primeira do princípio da exclusividade orçamentária pela reforma de 1926 à Constituição de 1891 [2] e chegou, após a inclusão de novas regras nos textos constitucionais posteriores, ao teto de gastos (EC 95/16) e à Emenda Constitucional 109/21.  

A Emenda nº 109/21 surge no contexto de instabilidade política e crises fiscal, econômica e sanitária, e confere à Constituição Federal uma função instrumental atípica, de constrições mais detalhadas à gestão fiscal dos governos antes próprias do universo da lei complementar geral de finanças públicas prevista no artigo 163. Passados quase cinco anos da criação do Novo Regime Fiscal, o Congresso Nacional novamente mobilizou suas forças para tentar estabelecer amarras à gestão das finanças públicas.

A emenda pode ser analisada sob várias óticas, inclusive sobre qual o seu efeito imediato sobre as contas públicas, isso porque, como apontou a Instituição Fiscal Independente, a efetividade da EC 109/21 "será baixa ou nula, do ponto de vista da geração de espaço fiscal e controle das contas públicas" [3]. Contudo, ao lado dessa discussão há outra de cunho jurídico. Afinal, a Constituição é o ambiente normativo adequado para regular com especificidade as finanças públicas? E qual o sentido de se utilizar a Constituição para veicular normas de direito financeiro que sequer conseguem alinhar os demais entes federativos ao pretendido objetivo do equilíbrio fiscal?

Impressiona como mesmo em um período de extrema excepcionalidade o Congresso Nacional conseguiu mobilizar suas forças para aprovar PEC que aprofunda o tratamento constitucional das finanças públicas. Ainda que o bloco majoritário na Câmara dos Deputados reúna 323 parlamentares (PSL, PL, PP, PSD, MDB, PSDB, Republicanos, DEM, PROS, PTB, Podemos, PSC, Avante e Patriota), a casa é composta pela representação de 24 partidos, com parlamentares ligados a diversas forças sociais. A formação de maiorias em torno de proposições sensíveis tende a ser complexa nessa conjuntura, o que não tem impedido a ampla aceitação das propostas de limitação dos gastos públicos pela via constitucional.

A utilização da Constituição como meio de disciplina fiscal, especialmente a especificação de medidas de contenção de despesas correntes (artigo 167-A, CF) e de regramento das repercussões fiscais da decretação do estado de calamidade pública (artigo 167-B a 167-G), é um fenômeno com nuances próprias no direito brasileiro. Já a discussão da PEC do Novo Regime Fiscal diferia dos modelos de teto de gastos de outros países, fixados por prazos menores [4]. Na comparação com outros Estados federais, a Lei Fundamental da Alemanha possui regras de finanças públicas disciplinadoras da relação entre o governo federal e os Estados, de cumprimento de obrigações perante a União Europeia e de limitação da dívida pública, entre outros aspectos (artigos 109 a 115) [5], sem, no entanto, descer a minúcias no nível alcançado pela EC 109/21.

A disciplina da responsabilidade fiscal dos países se dá principalmente no patamar da legislação ordinária, como mostra estudo comparativo que abordou a legislação de diversos países sobre responsabilidade fiscal dos entes subnacionais [6], embora alguns países tenham optado por incluir regras de limitação do déficit público em suas Constituições [7]. A Grécia, exemplo recente de severa crise fiscal e país que com isso sofreu forte impacto nas suas práticas institucionais, recorreu à aprovação de normas de emergência sob influência do soft law proveniente dos organismos internacionais, ao qual o governo se submetia sem a necessidade da aprovação formal de acordo nos termos previstos pela Constituição [8].

No Brasil, a EC 109/21 trouxe para o espaço da Constituição dispositivos que deveriam ser objeto de lei complementar. O artigo 163, II, já dispunha que lei dessa espécie deve dispor sobre dívida pública externa e interna, incluída a das autarquias, fundações e demais entidades controladas pelo poder público, de maneira que o detalhamento dos critérios de sua sustentabilidade incluídos pela EC 109/21 (artigo 163, VII) dificilmente transformarão de imediato a prática institucional consolidada de desrespeito ao dever de fixação de limites para a dívida mobiliária federal, com a sanção do presidente da República (artigo48, XIV).

Também é mera tautologia a disposição de que "a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis sustentáveis, na forma da lei complementar referida no inciso VIII do caput do artigo 163 desta Constituição" (artigo 164 -A). Será a legislação complementar a responsável por dar substância ao conjunto de promessas constitucionais em matéria de dívida pública. Como bem alertou Élida Graziane Pinto, alguns de seus dispositivos de "tão programáticos são praticamente cométicos" [9], como a exigência de avaliação de políticas públicas (artigo 37, §16) e que os seus resultados sejam observados, "no que couber", pelas leis que regulam o ciclo orçamentário (artigo 165, §16).

Naquilo em que a EC 109/21 demonstra, em tese, o seu caráter de ordenação de conduta, não se identifica ganho na regulação constitucional da matéria. O que pode ser uma espécie de mecanismo de salvação do teto de gastos disciplinado pelo artigo 107 do ADCT, incluído pela EC 95/2016, ou seja, a vedação de aumento de despesas  com pessoal, salvo exceções, de criação de despesa obrigatória ou o aumento do valor de benefícios acima da inflação (artigo 109 do ADCT), na hipótese em que a despesa primária obrigatória for superior a 95% dos limites fixados na forma do artigo 107 do ADCT, é matéria que receberia  melhor tratamento em legislação infraconstitucional, até mesmo para disciplinar eventuais sanções na hipótese de descumprimento.

Não há, portanto, qualquer ganho adicional em inserir a matéria na Constituição. Aliás, a experiência revela que medidas incisivas em matéria de contenção de despesa de pessoal não ganham maior efetividade pela simples razão de estarem no texto constitucional, como ilustra o conjunto de regras que disciplina a redução de cargos comissionados e de funções de confiança, e a exoneração de servidores para garantir o cumprimento dos limites máximos de despesa com pessoal (artigo 169).

O desejo de apresentar um novo desenho constitucional das finanças pública para responder à crise deve ser repensado. O acirramento das disputas, o esfacelamento das regras formais e informais que nortearam o embate na arena política nos últimos 30 anos e a ausência de esperança na formação de consensos mínimos dá vazão ao predomínio de um princípio geral de desconfiança. Os mais variados grupos organizam-se para estabilizar e impor as suas visões de mundo, vendo na Constituição o veículo normativo preferencial para tanto. As propostas de contenção de gastos públicos como meio prioritário de combate ao desajuste fiscal encontram um suporte estável de apoio no Congresso Nacional, como indicam as votações da Lei de Responsabilidade Fiscal em 2000, do Novo Regime Fiscal em 2016 e da EC 109/21. Resta saber se conseguirão atingir o seu intento com a opção de constitucionalização densa do direito financeiro. Provavelmente, o feitiço voltar-se-á contra o feiticeiro, com um possível cenário de instabilidade e emergência constantes.

A estratégia de incluir na Constituição regras que ampliam direitos é utilizada de longa data por movimentos sociais como primeiro estágio para a sua realização. Em linha similar, grupos privilegiados na burocracia estatal valem-se do seu trânsito político para aprovar regras constitucionais que aumentam o seu poder e ganhos. Em ambos os casos, as regulamentações posteriores podem minimizar o impacto nas contas públicas das normas reconhecedoras de direitos. Entretanto, a adoção da Constituição como locus de veiculação de detalhadas normas de Direito Financeiro pode trazer riscos sérios para a governabilidade quando mal refletidas.

A constitucionalização de um regime inflexível e austero de contas públicas diminui a margem de ajustes ao longo do tempo ou os torna mais custosos politicamente, pela necessidade de constante retorno ao processo de reforma constitucional. Por outro lado, as âncoras de longo prazo podem submeter os governantes ao risco permanente de descumprimento das regras, com todas as consequências graves que daí podem decorrer caso inexista apoio político para tolerar a inobservância, como evidenciado pelo processo de impeachment da presidenta Dilma Roussef.

A EC 109/21 é peça de um arranjo perigoso. Marcelo Neves trata das racionalidades transversais surgidas do acoplamento estrutural entre sistemas, e.g., a política e a economia. Segundo ele, o regime fiscal "pode não levar à racionalidade transversal, desde que a política fiscal seja prejudicial à economia ou, ao ser superadequada economicamente, atue negativamente sobre a legitimidade democrática das decisões políticas" [10]. O orçamento público, em tese um meio de viabilização da ação governamental, é suscetível de transformar-se em um artefato bélico sempre prestes a explodir caso o sistema não consiga manejar a adequação entre normatividade e realidade. A combinação entre teto de gastos (EC 95/16), regime das emendas impositivas (EC 86/15 e EC 105/19) e as medidas da EC 109/21 são uma constitucionalização superlativa do Direito Financeiro que não só reconfigura a relação governo-parlamento. Em adição, coloca a Constituição no centro de uma disputa de poder ferrenha, exacerbada pelo teto de gastos.

Não fosse isso suficiente, o maior número de regras constitucionais de finanças públicas possui a aptidão de ampliar a intervenção do controle concentrado e do controle difuso de constitucionalidade de atos do poder público, com todos os riscos sistêmicos daí decorrentes.

Canotilho rememora duas dimensões fundamentais de qualquer Constituição, "a pretensão de estabilidade na sua qualidade de ‘ordem jurídica fundamental’ ou de ‘estatuto jurídico’ e pretensão de dinamicidade tendo em conta a necessidade de ela fornecer aberturas para as mudanças no seio do político" [11]. Em outro trecho, o constitucionalista português menciona a função de legitimidade cumprida por uma Constituição, quando "(…) contribui para sua aceitação real (consenso fáctico ou aceitação fática ou sociológica) e para uma boa ordenação da sociedade assente em princípios de justiça normativo-constitucionalmente consagrados" [12], além da legitimação do poder. Essas funções inerentes à Constituição devem ser objeto de reflexão antes de qualquer inovação nas normas constitucionais de Direito Financeiro.

Caminharemos para um regime de excepcionalidade constante? Ou a economia voltará a crescer e suportará ajustes no teto de gastos que reduzam os conflitos e evitem as medidas de contenção de despesas da EC 109/21, com os ônus habituais da aplicação de medidas desse tipo? A Constituição dará suporte no longo prazo à rígida austeridade fiscal?

Ou enfrentaremos anos de baixo crescimento econômico e uma Constituição enfraquecida em suas regras, motivadora de conflitos políticos que dificultem a ação dos governos? As regras constitucionais conduzirão bem a atividade financeira do Estado ou serão armas de querelas políticas dilacerantes, objeto de livres interpretações enviesadas e determinadas pela vontade e força dos agentes que formarem a coalização de poder em determinado período?

O futuro trará as respostas. A única certeza são as ameaças que estão no ar.

 


[1] "Artigo 172. O ministro de Estado da Fazenda, havendo recebido dos outros ministros os orçamentos relativos ás despezas das suas Repartições, apresentará na Camara dos Deputados annualmente, logo que esta estiver reunida, um Balanço geral da receita e despeza do Thesouro Nacional do anno antecedente, e igualmente o orçamento geral de todas as despezas publicas do anno futuro, e da importancia de todas as contribuições, e rendas publicas". Disponível em: Constituição24 (planalto.gov.br). Acesso em: 07 abr. 2021.

[2] "Artigo 34 – Compete privativamente ao Congresso Nacional:
(…);
§ 1º As leis de orçamento não podem conter disposições estranhas á previsão da receita e á despeza fixada para os serviços anteriormente creados. Não se incluem nessa prohibição:
(…)."

[3] Relatório de Acompanhamento Fiscal nº 50. Brasília, 22 mar. 2021. Instituição Fiscal Independente. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/586156/RAF50_MAR2021.pdf. Acesso em: 11 abr. 2021.

[4] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. PEC do Novo Regime Fiscal: constitucionalização da austeridade e subcidadania. Jota. 16 nov. 2016. Disponível em: PEC do Novo Regime Fiscal: constitucionalização da austeridade e subcidadania | JOTA Info. Acesso em: 16 abr. 2021.

[5] Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Disponível em: Basic Law for the Federal Republic of Germany (gesetze-im-internet.de). Acesso em: 08 abr. 2021

[6] LIU, Lili, WEBB, Steven B. Laws for Fiscal Responsibility for Subnational Discipline: International. World Bank Policy Research Working Paper No. 5587, 01 mar. 2011. Laws for Fiscal Responsibility for Subnational Discipline: International Experience by Lili Liu, Steven B. Webb :: SSRnº Acesso em: 22 abr. 2021.

[7] Relatório do Fundo Monetário Internacional sobre regras  fiscais em 96 países indica experiências de previsões constitucionais de limitações para política fiscal, como  Hungria, Polônia, Eslováquia e Espanha. LLEDÓ, Victor; YOON, Sungwook; FANG, Xiangming; MBAYE, Samba; KIM, Young. Fiscal Rules at a Glance. International Monetary Fund, mar. 2017. Fiscal Rules at a Glance – Background Paper.pdf (imf.org). Acesso em: 22 abr. 2021.

[8] Tsiftsoglou, Anna. Greece after the memoranda: a constitutional retrospective. GreeSE papers (132). The London School of Economics and Political Science, London, UK, 2019. Greece after the memoranda: a constitutional retrospective – LSE Research Online. Acesso em:09 abr. 2021.

[9] ‘Museu de grandes novidades da PEC Emergencial." São Paulo, 09 mar. 2021. ConJur – 'Museu de grandes novidades' da PEC Emergencial. Acesso em: 09 abr. 2021.

[10] NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes: 2009. p. 50.

[11] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 Ed. Coimbra: Almedina.p.1435

[12] Id., p. 1439 – 1440.

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