Calibre desregulado

'A balança do sistema de Justiça está totalmente desequilibrada', diz DPU

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25 de abril de 2021, 7h25

A estrutura da Defensoria Pública da União é uma das maiores preocupações do chefe da instituição, Daniel de Macedo Alves Pereira, que assumiu a função em janeiro deste ano. Em entrevista ao Anuário da Justiça Brasil 2021, o defensor público-geral da União deixou claro o descontentamento com o orçamento destinado ao órgão e fez uma comparação de sua estrutura com a do Ministério Público da União e a da Advocacia-Geral da União.

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"A balança do sistema de Justiça está totalmente desequilibrada", avaliou. "Temos, de um lado, uma instituição com 642 defensores atendendo em 70 unidades. Por outro lado, está o órgão da acusação, o Ministério Público, com mais de 1,2 mil procuradores, e para além de cinco mil advogados da União. É óbvio que essa balança está em um desnível", disse.

Para ele, um dos problemas para o crescimento da estrutura de pessoal da DPU é o baixo orçamento. "Nosso teto orçamentário hoje é de R$ 588 milhões, para quase R$ 7 bilhões do Ministério Público da União. Quando eu impeço o avanço do orçamento da Defensoria Pública da União, isso significa que eu não posso convocar mais candidatos", comentou.

Sobre os desafios da pandemia para a atuação da Defensoria, Daniel de Macedo disse que teve de se adaptar, principalmente com soluções tecnológicas, "mesmo no contexto de exclusão digital".  Para isso, o órgão criou o DPU Cidadão, em que os assistidos preenchem um formulário e anexam os documentos para solicitar e acompanhar o processo de auxílio emergencial. Segundo ele, o auxílio foi uma das maiores vitórias da DPU. "Evitamos a judicialização de mais de 500 mil processos e atendemos mais de 4,5 milhões de pessoas", ressaltou.

O defensor disse esperar que a instituição seja valorizada e que seu medo é que seja necessário fechar as portas em alguns estados e municípios. "Não faremos isso porque queremos, mas porque temos contratos em andamento. Temos toda uma estrutura para manter e, infelizmente, esses valores (orçamentários) sequer são corrigidos devidamente", lamentou.

Daniel de Macedo é defensor público há 14 anos. Atuou na Defensoria Pública da União em São Paulo e no Rio de Janeiro. Foi indicado para a vaga pelo presidente Jair Bolsonaro e aprovado em dezembro pelo Senado. O nome era o segundo colocado na lista tríplice, escolhida por voto direto da categoria. O primeiro, Gabriel Faria Oliveira, chefiou a DPU até novembro de 2020 e concorreu à recondução.

Confira abaixo a entrevista:

ConJur — Quais são os principais desafios da pandemia? Como é que ela tem interferido no trabalho da Defensoria Pública?
Daniel de Macedo — Quando falamos de pandemia, temos de lembrar que o contexto atual é a grande autonomia, inclusive de governadores e prefeitos, na questão da legislação sanitária. Ela é muito dinâmica em cada estado, em cada município. Hoje não temos uma uniformidade na diretriz. Então, grande parte desses estados acaba decretando lockdown ou restrições, e faz com que o defensor sequer consiga chegar à sua unidade. O teletrabalho é uma realidade. A Defensoria vai ter de se adequar a esse novo tempo, para que essas soluções tecnológicas cheguem à ponta, mesmo no contexto de exclusão digital. Nesse sentido, criamos um aplicativo chamado DPU Cidadão para que ele possa preencher os seus dados e solicitar o auxílio emergencial.

A Defensoria teve de se articular para se aliar ao novo momento da humanidade, assim como as empresas privadas e os outros órgãos públicos. A Defensoria não fechou. Continua aberta ao cidadão, obviamente que tomando todos os cuidados, mas fica muito à mercê de cada legislação em cada estado. Atualmente temos uma diretriz de teletrabalho, de parte dos defensores e servidores, exatamente para não colocá-los em risco.

ConJur — O que o senhor destaca como maior vitória da Defensoria nos últimos tempos?
Macedo — A Defensoria atua em diversas frentes, no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça. Atualmente, a maior vitória que a Defensoria teve foi o auxílio emergencial. Evitamos a judicialização de mais de 500 mil processos e atendemos mais de 4,5 milhões de pessoas.

ConJur – O senhor vê injustiça na estrutura da DPU, se comparada com a do Ministério Público?
Macedo — A balança do sistema de Justiça está totalmente desequilibrada. Temos, de um lado, uma instituição com 642 defensores atendendo em 70 unidades. Por outro lado, está o órgão da acusação, o Ministério Público, com mais de 1,5 mil procuradores, e para além de cinco mil advogados da União. É óbvio que essa balança está em um desnível. Alguém fica sem atendimento da Defensoria Pública. Infelizmente, a DPU cobre apenas 29% das seções e subseções da Justiça Federal. Significa dizer que, em alguma cidade, tem alguém precisando de um defensor, seja para tutela de saúde, seja na seara previdenciária, na educação, um ribeirinho, uma quilombola, uma quebradeira de coco, grupos hipervulneráveis e invisibilizados, onde não tem a Defensoria. Nosso público alvo é de cerca de 70 milhões de brasileiros.

ConJur — O que precisa ser feito para equilibrar essa balança?
Macedo — É importante que o governo federal seja parceiro da Defensoria Pública nesse momento. Precisa se estruturar mais para ajudar ainda mais a população brasileira. Se estamos em apenas 29% das comarcas, seções e subseções, é preciso que o Congresso tenha um olhar diferenciado para a Defensoria Pública. Não adianta eu ter no Estado a acusação fortalecida, equilibrada, estruturada, e do outro lado o Estado-defesa com tão poucos defensores públicos federais. Espero que um dia a Defensoria esteja realmente em cada seção e subseção da Justiça federal deste país.

Para se ter uma ideia, é atribuição da Defensoria Pública da União atuar na Justiça do Trabalho, mas até hoje não atuamos lá. Quando há a presença de um defensor, há um comprometimento institucional. Ele não está ali pelo dinheiro. Está ali porque ele ama o seu trabalho.

ConJur — Na sua visão, a Defensoria não é tão valorizada como deveria?
Macedo — A Defensoria é muito bem quista no Congresso. O problema é que a pandemia e a crise econômica que o Brasil está vivenciando acabaram de alguma forma impedindo o crescimento da DPU. É insustentável manter a Defensoria com esse orçamento. Tenho receio de que a Defensoria comece a fechar as suas portas em alguns estados, em alguns municípios, e não faremos isso porque queremos, mas porque temos contratos em andamento, temos toda uma estrutura para manter e, infelizmente, esses valores sequer são corrigidos devidamente.

ConJur — Houve um momento em que a Defensoria quase fechou porque o presidente da República requisitou os servidores cedidos. Como está essa situação?
Macedo — Uma medida provisória permitiu que a Defensoria mantivesse o seu poder de requisição, mas com certo limite. Isso vai perdurar até 2027. É uma solução que não atende por completo à Defensoria. O ideal é que tivesse seu quadro próprio de servidores, com plano de cargos e de salários, com valorização dos servidores. Essa MP nos traz bastante preocupação porque, com a Emenda Constitucional 109, inviabiliza a contratação de novos servidores. Então, já não vamos ter esse poder de requisição de servidores. Embora seja feita ao outro órgão, nem sempre isso é atendido pelo destinatário, o que acaba fazendo com que a questão seja judicializada.

ConJur —A DPU deveria ter a sua presença espelhada na Justiça federal?
Macedo — Atualmente vivenciamos um estado de coisas inconstitucional. A Emenda Constitucional 80 determinou que, onde houver uma seção, subseção ou comarca, tem de ter um defensor. A determinação foi até o ano de 2022. Então, até o ano que vem os poderes constituídos devem implementar a defensoria em todo o território nacional. Mas essa programação na Constituição foi interrompida pela "emenda do teto" (orçamentário), fazendo com que a Defensoria não pudesse expandir. Nosso teto hoje é de R$ 588 milhões para quase R$ 7 bilhões do Ministério Público da União. Quando eu impeço o avanço do orçamento da DPU, significa que não posso convocar mais candidatos.

ConJur — Como é a relação da Defensoria com o Ministério Público? Existe uma disputa?
Macedo — A relação é a melhor possível, sobretudo no âmbito da tutela coletiva. Temos várias ações coletivas que são tramitadas no Poder Judiciário em conjunto. Aliás, a nossa eletividade é disjuntiva, atuamos em conjunto em recomendações, em expedição de ofícios, em ações coletivas. Apenas na seara criminal é que cada um faz a defesa: um  defende a sociedade, o outro defende a liberdade do indivíduo.

O mais importante é o respeito que deve existir entre as instituições, cada qual defendendo os seus valores e suas missões constitucionais.

ConJur — E a relação com o Poder Judiciário? Acredita que o Judiciário tem levado em conta o contexto social para decidir ou ele se apega mais à questão econômica?
Macedo — A relação com o Poder Judiciário também é excelente. O Judiciário federal vem passando por um processo de remodelação e a Defensoria não tem essa dinâmica de acompanhar essa remodelação do Poder Judiciário, por falta de membros. Em geral, a relação é muito boa, inclusive com o Conselho Nacional de Justiça. Com as presidências dos Tribunais Regionais Federais não há ponto de grandes divergências. É óbvio que quando o defensor não concorda com a sentença que é proferida ele busca reformar ou anular essa sentença no Tribunal Regional Federal. Se não consegue, busca as instâncias de superposição, o STJ e o STF. Defendemos o interesse do hipossuficiente, do hipervulnerável. Em grande parte das decisões, a questão social é levada em consideração, mas também tem os juízes legalistas, juízes com uma pegada mais fazendária.

ConJur — A Justiça atende às teses da Defensoria Pública?
Macedo — Nem sempre. Às vezes é uma divergência de interpretação, que é natural. Quando o juiz é legalista, é porque ele está estritamente agarrado à lei e temos que aquela lei é de suprema interpretação, conforme a Constituição. Mas nem sempre isso é acatado. Por isso existem os recursos, e a Defensoria encara isso com tranquilidade.

Na área de tutela de saúde, a gente verifica que os juízes são mais refratários a alguns temas: medicamentos de alto custo, medicamentos que estão fora da tabela do SUS ou que não foram aprovados, mas encaramos isso com naturalidade. A ideia é buscar a via recursal para tentar alterar esse entendimento.

ConJur — Qual é a sua visão a respeito das audiências por videoconferência adotadas pelo Judiciário durante a pandemia?
Macedo — É uma realidade que veio para ficar. A pandemia escancarou essa necessidade. Nas ações criminais, onde se exige a presença do denunciado na audiência de custódia, entendo que fica comprometida. O ideal é o contato direto com o acusado, uma conversa direta em um lugar reservado, para que isso possa aumentar a qualidade e a eficiência da defesa. A audiência virtual, com o acusado na delegacia ou em uma sala reservada da Justiça criminal, traz algum prejuízo para a defesa. E também na hipótese coercitiva das testemunhas de acusação e defesa. É o que eu consigo visualizar como prejuízo. Mas entendo que o caminho é a virtualização completa dos processos, da petição inicial até o trânsito em julgado. A Defensoria vem caminhando nesse sentido. Temos a ideia de um dia termos nosso próprio balcão virtual, de modo que se possa, pelo site, identificar a ação, preencher todos os dados, entregar a documentação e gerar uma petição inicial para o defensor público.

ConJur — Em fevereiro deste ano, foi difundida a notícia de que o Peru barrou imigrantes haitianos que tentavam deixar o Brasil para fugir da pandemia. A DPU acompanha esse caso? Qual é o papel nessa situação?
Macedo — Foi difundida uma informação falsa de que, com a eleição de Joe Biden, teriam sido afrouxadas as fronteiras, de modo que eles conseguissem ingressar nos Estados Unidos pelo mar. Isso fez com que esses haitianos se encaminhassem para lá (fronteira com o Peru). Imediatamente, a Defensoria encaminhou dois defensores públicos federais. Participamos ativamente das negociações in loco. Foi ajuizada uma ação de reintegração de posse pela AdvocaciaGeral da União, mas lutamos para que essa liminar não fosse deferida.

Conseguimos negociar a saída desses haitianos, sem intervenção policial. Mais uma solução dialógica, que é a melhor forma para resolver esses pontos de tensão. A Defensoria teve um papel central, que nos orgulha muito. Além disso, enviamos um comunicado às associações que lidam com os haitianos no Brasil, sobretudo São Paulo, divulgando que isso era fake news, que a fronteira dos EUA não estava aberta. E conseguimos chegar a bom termo com essa solução.

ConJur — Como o senhor espera que a DPU esteja ao final da sua gestão?
Macedo — A minha meta é deixar uma Defensoria Pública da União mais acessível, ainda que eu não consiga colocar mais defensores públicos. Que eu consiga virtualizar a Defensoria, criar ofícios virtuais e deixá-la mais tecnológica e acessível à população brasileira. Meu sonho é que um dia todas as nossas ações estejam mapeadas em aplicativo, em site da DPU, onde o cidadão possa preencher os dados, fotografar os documentos imprescindíveis de ajuizamento da ação e que ela simplesmente aperte enter e isso gere uma sugestão de petição inicial para o defensor, que fundamente o processo virtualizado com inserção da inteligência artificial.

ConJur — Quais os aprendizados que ficarão após a pandemia?
Macedo — É bom destacar que a Defensoria Pública, em suas 70 unidades, é a casa do cidadão. Temos de ponderar entre o que reconhecemos, que a Defensoria é a casa do cidadão, e que ela tem de recepcionar esses assistidos. Boa parte são excluídos digitais, com a necessidade de custeio, dinheiro escasso. A lição que a pandemia deixa é de que a Defensoria não vê mais necessidade de deixar grandes estruturas, prédios de dez, 15, 20 andares. Queremos apresentar o novo modelo estrutural nas unidades: uma galeria de atendimento aos assistidos, uma sala de reunião, uma área para administração e um ou dois gabinetes para os defensores. Queremos fazer um trabalho também de educação em Direito desses assistidos, deixar totens de atendimento, mais servidores, mais estagiários, mas diminuir o pagamento de aluguel de grandes estruturas.

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