Embargos Culturais

Quem diz a lei? Juízes, legisladores e professores, de R. C. van Caenegem

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

25 de abril de 2021, 8h01

O que é melhor? O direito dos precedentes? O direito das leis? O direito dos juristas? O que é mais eficiente? O direito dos juízes? O direito dos legisladores? O direito dos professores de Direito? Afinal, qual a melhor opção? O direito inglês-norte-americano? O direito francês? O direito alemão? Há sistemas jurídicos definidos apenas pelos precedentes? Há sistemas jurídicos que não admitem interpretações criativas da lei? Há sistemas pautados por opiniões doutrinárias?

Spacca
Essas são algumas questões colocadas em Juízes, legisladores e professores, de Raoul van Caenegem (1927-2018), historiador belga que lecionou na Universidade de Ghent. O estudo introdutório, em forma de apresentação, de José Reinaldo de Lima Lopes, professor da Universidade de São Paulo, é indispensável e justifica a leitura. A edição que tenho em mãos é da Campus Elsevier. A tradução é de Luís Carlos Borges, um competente tradutor de temas jurídicos.

O livro de van Caenegem é um robusto estudo comparativo entre o direito dos juízes (de inspiração anglo-saxã), o direito dos professores (da tradição alemã) e o direito centrado na lei (uma obsessão francesa). É um livro sobre a história jurídica europeia, do ponto de vista comparatista, e que nos interessa por força da recepção do Direito europeu por parte de nosso Direito.

O autor inicia explorando características que marcam especificidades no common law. Ilustra o argumento indicando dez peculiaridades do direito inglês. Em seguida, discorre sobre aspectos históricos que marcam a construção da tradição jurídica europeia. Aponta as divergências entre common law e civil law. Conclui apresentando critérios comuns para que se tenha um bom direito.

O autor comprova-nos que há muitas semelhanças entre comparatistas e historiadores do Direito, argumento que venho sustentando com recorrência. Historiadores do Direito trabalham de forma diacrônica, de algum modo comparando direitos antigos com direitos contemporâneos. Comparatistas raciocinam de forma sincrônica, comparando direitos contemporâneos. Essa metodologia fica nítida também em outros autores, a exemplo de Mario Losano, René David e Rodolfo Sacco.

Em Juízes, legisladores e professores, van Caenegem explora imaginária oposição entre common law e civil law. Na fronteira, o que se tem efetivamente é uma discussão em torno da teoria das fontes. Será que há, de fato, tantas batalhas em torno de um sistema jurídico? O autor pergunta se seria razoável imaginarmos um sistema jurídico lutando e triunfando em face de outro sistema jurídico. Uma batalha de sistemas jurídicos, em um sentido nada metafórico. O que estaria em jogo, sugere van Caenegem, é uma disputa pelo poder, que envolve magistratura, políticos profissionais e acadêmicos. Afinal, quem diz a lei?

O autor explora características do commom law, acendendo algumas perplexidades. Observa que o termo common law carrega ambiguidades. É o caso da dificuldade que temos em traduzir com clareza expressões como law of the land, the law says, the rule of law. Essa dificuldade de tradução nos coloca diante de problemas de percepções e de definições de direito objetivo e de direito subjetivo. Lembra-nos também van Caenegem que no modelo inglês o sistema de recursos e de apelações é recente. Argumenta que vincular tribunais inferiores a superiores também se qualificaria como discussão em torno da distribuição de poder, ao que acrescento que o juiz de instância inferior se afirmaria com a confirmação de sua decisão.

O direito inglês, continua van Caenegem, não teria vivido rupturas. Envolvido por atmosfera conservadora, o direito inglês não assinala com diferenças entre Direito e História. Tem-se que o precedente, de algum modo, é forma de obsessão com o passado. Essa obsessão que os juristas têm para com a História é um assunto também explorado por Richard Posner, autor norte-americano. Parece que advogados gostam mais do passado do que historiadores e arqueólogos juntos.

Para van Caenegem, o direito inglês não teria vivido uma ruptura jurídica mais drástica, a exemplo do que teria ocorrido na França. Os ingleses também não teriam recepcionado oDireito romano. No caso francês, aponta van Caenegem, tem-se fusão do direito antigo com os grandes códigos de Napoleão. No caso alemão, verificou-se a recepção do Direito romano a partir do século XVIII. Na Inglaterra, Edward Coke baseou seus estudos nas decisões medievais. Nesse sentido, o jurista inglês é um historiador. A história, parece-me, é para van Caenegem o vetor legitimador da experiência que se convalida em forma de Direito positivo. Posner e van Canegem de alguma forma teriam opiniões próximos sobre a relação entre Direito e História.

Na Inglaterra, por conta da doutrina da interpretação literal ipissima verba, também conhecida como doutrina da exclusão, afasta-se o intérprete (magistrado) de qualquer forma aberta de interpretação. O juiz é obrigado a seguir a letra da lei, vinculado que está a uma interpretação literal absoluta. Não se recomenda o estudo e a análise dos debates parlamentares. Não há preocupação com a intenção do legislador. A consequência lógica da doutrina da exclusão, segundo van Caenegem, é que o legislador é a derradeira autoridade a quem se deve recorrer para se entender o significado de uma lei.

Segundo esse autor, além de não ter uma constituição escrita, a Inglaterra não teria constituição alguma. Não há leis fundamentais especiais que não possam ser abolidas ou modificadas pelo Parlamento. Não há rito especial para regime de alteração legislativa. Quanto à lei propriamente dita, vige concepção de soberania parlamentar. A excepcionalidade do Direito inglês decorre também do fato de que não há tradição de revisão judicial de constitucionalidade. Uma Suprema Corte, criada em 2009, apenas recebeu competência para julgar apelações da Câmara dos Lordes.

Explica-nos van Caenegem que na Inglaterra não há Ministério Público ou promotoria organizada de acusação. Tem-se um "diretor de acusações públicas", a quem cabe reunir provas e apresentar a denúncia. É um advogado privado quem conduz a acusação. Lembra-nos além disso van Caenegem que ainda que os apóstolos mais convictos da codificação (Bentham) sejam ingleses, não há codificação na Inglaterra, o que não se revela contraditório, dado que Bentham e os radicais ingleses (Mill, pai e filho) seriam exceções.  

Em Juízes, legisladores e professores, o leitor tem em mãos um livro erudito que sugere reflexões em torno das escolas romanistas europeias. O livro de van Caenegem é um apelo para o estudo dos glosadores (séculos XII e XIII), cuja tarefa básica consistia em se buscar o significado do Código de Justiniano. Os glosadores eram explicadores virtuosos dos textos romanos. Mais tarde, nos séculos XIV e XV, pontificam os comentaristas, cujo nome mais significativo foi Bártolo de Sassoferrato. A especulação histórica de van Caenegem alcança também Hugo Grócio e os autores da chamada escola elegante holandesa.

Há no livro material para estudo dos autores canônicos ingleses, a exemplo de Charles Viner, William Blackstone e John Austin. Esse último faleceu em 1859, desponta como o mais letrado dos juristas ingleses, conhecia o direito alemão. Em Juízes, legisladores e professores, van Caenegem trata ainda dos doutrinadores franceses, fieis aos códigos de Napoleão. Um deles, Bugnet, afirmava que não era professor de Direito Civil, era professor do Código Civil.

Juízes, legisladores e professores é um livro sobre história do Direito europeu, que reivindicamos como uma história nossa. Nossos arranjos institucionais e jurídicos decorrem da transposição de modelos europeus (e no limite norte-americanos), submetendo-nos a uma ditadura da falta de alternativas, como se não fôssemos capazes de conceber outras fórmulas de organização social que não os modelos transplantados e aqui adaptados.

Talvez não sejamos de fato hábeis para imaginar instituições, como sugere um professor brasileiro radicado nos Estados Unidos (Roberto Mangabeira Unger). Talvez a racionalização das organizações das formas de vida, e o Direito é uma delas, seja uma característica efetivamente europeia, como apontou um estudioso alemão (Max Weber). Talvez esses problemas são falsos problemas porque, muito menos do que espaço para especulações metafísicas, o Direito seria simplesmente uma técnica para resolver problemas, e nada mais.

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