Opinião

A tecnologia blockchain e a tutela penal no âmbito das finanças descentralizadas

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24 de abril de 2021, 15h11

O aumento contínuo de fraudes no ambiente das criptomoedas escancara que o Direito Penal possui dificuldades estruturais para seguir o desenvolvimento das tecnologias, deixando, por vezes, o bem jurídico desamparado.

A tecnologia blockchain (blocos de dados em corrente que registram informações de forma imutável) já se tornou uma realidade cotidiana no Brasil, com seu uso sendo aplicado em instituições financeiras [1], no comércio de energia [2], registro em cartório [3], na área da saúde e em setores inovadores como tokens não fungíveis (NFTs), entre outros [4] [5].

Na área da inovação financeira, um dos usos mais recorrentes é para a implementação de aplicativos financeiros construídos com a tecnologia blockchain, conhecidos como finanças descentralizadas  ou DeFi.

Esse ecossistema financeiro permite que as pessoas tenham controle de seus ativos e informações e que valores sejam transferidos sem a necessidade de intermediários, como bancos e outras instituições financeiras. A rede é aberta e global, permitindo o acesso igualitário a todos.

Os aplicativos são construídos em blockchain e a maioria utiliza código aberto, ou seja, qualquer desenvolvedor pode visualizar e construir (ou copiar) nos próprios aplicativos, acelerando a inovação e adicionando atualizações como se fossem "pecinhas de Lego".

A DeFi utiliza o smart contract, que possibilita a construção de cláusulas auto-executáveis. Como se diz, "o papel aceita tudo". A tecnologia segue o mesmo caminho e não questiona se as cláusulas são abusivas ou mal intencionadas, desde que seja viável programá-las. O contrato não fará análise moral ou jurídica de suas obrigações.

Vislumbra-se, então, um primeiro problema: a possibilidade de criação de smart contracts que, mais cedo ou mais tarde, vão beneficiar seus desenvolvedores em prejuízo de investidores pouco atentos.

Diversas são as fraudes conhecidas no mercado tradicional, e no mercado de cripto não seria diferente. Além das fraudes já conhecidas no mercado financeiro, os investidores que não se atentarem ao projeto antes de investirem seus ativos podem ser vítimas de golpes, como exit scam em que os fundos ficam bloqueados no smart contract para, posteriormente, serem subtraídos pelos desenvolvedores  ou rug pull, em que os desenvolvedores possuem uma quantidade considerável de tokens do projeto e [6], no momento certo, despejam os tokens no mercado, sacando seu valor e derrubando o preço a zero.

A liberdade trazida pela DeFi de transacionar seus ativos para qualquer contrato tem, por outro lado, a responsabilidade pessoal do investidor em realizar seus estudos e análises antes de mergulhar nessas águas. A descentralização traz em seu núcleo a impossibilidade de recorrer a um responsável para solicitar o estorno ou cancelamento de uma transação, como se faria nas finanças tradicionais.

Para evitar a exposição a projetos maliciosos, é importante conhecer qual o propósito do projeto, analisar seu código, verificar o posicionamento de auditorias independentes, saber sempre quem são os criadores e como os tokens foram distribuídos.

As questões técnicas podem assustar o investidor despreparado, mas isso mostra o risco inerente à descentralização. Por outro lado, a comunidade busca ajudar o crescimento responsável desse setor, tendo no mercado diversas empresas de auditoria independentes que acompanham os projetos e os classificam, inclusive apontando irregularidades e sinais de alerta.

Ainda não existe uma regulamentação específica para os ativos digitais, tendo as normas brasileiras os reconhecido como "bens e direitos", além de o Banco Central declarar que não se tratam de moeda, enquanto a Comissão de Valores Mobiliários não os considera como valores mobiliários.

A falta de definição jurídica assertiva, não sendo conceituada como moeda, tampouco valor mobiliário, causa insegurança jurídica, inclusive quanto à aplicação de tipos penais, uma vez que o STF já se posicionou no sentido de que a mera negociação de criptomoedas não é resguardada pela salvaguarda dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional [7]. De fato, no presente caso, seria forçada a analogia de que projetos DeFi se enquadram na definição de instituições financeiras.

Assim, resta buscar amparo nos crimes contra a economia popular, que, por si só, não se apresentam suficientemente sequer para coibir a prática de fraudes no sistema financeiro tradicional [8].

A forma anacrônica e centralizada do Direito Penal é incompatível com o crescimento e inovação exponenciais que a base do blockchain oferece. Enquanto os contratos são abertos para qualquer um participar, a elaboração e votação de uma legislação penal passa por trâmites amarrados e morosos, sem contar a sua limitação estrutural e fronteiriça para a apuração de crimes cibernéticos.

O respaldo para a tutela do bem jurídico seria a aplicação dos crimes comuns, aqueles criados pela legislação elaborada ainda pelo Estado Novo, para evitar a subtração e desvio dos antigos réis, muito antes de se imaginar os atuais reais, quiçá criptomoedas.

Mas furto, estelionato, apropriação indébita ou mesmo crimes do sistema financeiro não condizem com a realidade complexa das criptomoedas, tampouco suas penas, algumas de pequeno potencial ofensivo, são o suficiente para prevenir a conduta que pode gerar milhares de vítimas e milhões de prejuízo. Da mesma forma, a nova Lei de Crimes e Delitos Cibernéticos não apresenta estrutura para lidar com a transnacionalidade da tecnologia descentralizada [9].

A título de exemplo, no final de 2020, um exit scam aplicado pelo projeto Yfdexf.Finance gerou prejuízos de US$ 20 milhões [10], deixando vítimas em diversos países. O projeto fez propaganda por dois dias em mídias sociais como Twitter e Telegram.

A questão vai além da tipificação penal, devendo ser considerada a estrutura jurídica como um todo, em especial as condições de investigação e apuração dos delitos, em razão da descentralização e com isso a transnacionalidade dos autores e das vítimas.

Em outubro de 2020, o projeto Wine Swap aplicou o golpe de exit scam, levando US$ 345 mil de seus clientes, desviando os fundos do endereço do contrato para o endereço de seu criador. No entanto, não só os golpistas dominam a tecnologia. A plataforma que realizou o lançamento do projeto, por meio de sua equipe de segurança, conseguiu follow the money através de transações cross-chain, sendo possível identificar o endereço eletrônico e físico do autor, possibilitando o bloqueio e restituição do valor quase que integralmente [11].

Toda a investigação das diferentes contas utilizadas, de redes diversas e da localização física do autor demorou apenas um dia. Essa atuação só foi possível em razão da iniciativa privada não possuir jurisdições e bloqueios de soberania, além do domínio da tecnologia, o que não seria possível realizar somente por órgãos governamentais.

A reflexão acima demonstra que não basta uma nova tipificação penal. A questão é mais complexa e as parcerias com o setor privado são necessárias, visto que a tecnologia veio para ficar.

Antes de mudar a lei, é necessário alterar o entendimento de conceitos preestabelecidos que dificultam o desenvolvimento da própria sociedade. A melhor forma de se resguardar é a prevenção por meio do conhecimento, do estudo de onde será investido o seu dinheiro. E, antes de se aventurar em novas águas, faça sua própria pesquisa (DYOR) [12].

 


[6] De forma resumida, token é o registro digital de um ativo.

[7] CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL X JUSTIÇA ESTADUAL. INQUÉRITO POLICIAL. INVESTIMENTO DE GRUPO EM CRIPTOMOEDA.PIRÂMIDE FINANCEIRA. CRIME CONTRA A ECONOMIA POPULAR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.1. O presente conflito negativo de competência deve ser conhecido, por se tratar de incidente instaurado entre juízos vinculados a Tribunais distintos, nos termos do art. 105, inciso I, alínea "d" da Constituição Federal – CF.2. "A operação envolvendo compra ou venda de criptomoedas não encontra regulação no ordenamento jurídico pátrio, pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os crimes tipificados nos arts. 7º, II, e 11, ambos da Lei n.7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da Lei n.6.385/1976" (CC 161.123/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 5/12/2018).3. Conforme jurisprudência desta Corte Superior de Justiça, "a captação de recursos decorrente de 'pirâmide financeira' não se enquadra no conceito de 'atividade financeira', para fins da incidência da Lei n. 7.492/1986, amoldando-se mais ao delito previsto no art. 2º, IX, da Lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular) (CC 146.153/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 17/5/2016).4. Na espécie, o Juízo Estadual suscitado discordou da capitulação jurídica de estelionato, mas deixou de verificar a prática, em tese, de crime contra a economia popular, cuja apuração compete à Justiça Estadual nos termos da Súmula 498 do Supremo Tribunal Federal – STF. Ademais, ao declinar da competência, o Juízo suscitado não demonstrou especificidades do caso que revelassem conduta típica praticada em prejuízo a bens, serviços ou interesse da União.Em resumo, diante da ausência de elementos que revelem ter havido evasão de divisas ou lavagem de dinheiro em detrimento a interesses da União, os autos devem permanecer na Justiça Estadual.5. Conflito conhecido para, considerando o atual estágio das investigações documentado no presente incidente, declarar a competência do Juízo de Direito da 2ª Vara Criminal de Jundiaí, o suscitado. (CC 170.392/SP, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 10/06/2020, DJe 16/06/2020)

[8] Tramita atualmente no senado o Projeto de Lei 4.233/2019 que busca tipificar no Código Penal o crime de pirâmide financeira.

[9] Lei nº 12.737/2012

[12] Do your own research.

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