Opinião

Breves notas sobre o crime de perseguição

Autor

  • Filipe Coutinho da Silveira

    é advogado criminalista e sócio fundador do escritório FS Advocacia especialista em Direito Penal & Criminologia pela PUC-RS em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal) em Ciências Criminais pela UFPA em Direito Penal Tributário pelo Ibet/IBDT e vice-presidente da Abracrim-PA.

24 de abril de 2021, 17h18

No dia 1° deste mês, entrou em vigor a Lei 14.132/2021, que introduziu no Código Penal o artigo 147-A, que dispõe sobre o crime de perseguição e revogou o artigo 65 do Decreto-Lei 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais), que previa a contravenção de moléstia ou perturbação da tranquilidade de alguém por acinte ou motivo reprovável.

O advento do novo crime tem por objetivo preencher uma lacuna muito importante em vários aspectos, inclusive no contexto da violência doméstica e familiar contra a mulher, isto é, criminalizar atos de violência física e psicológica que não estavam abrangidos pelos crimes de lesão corporal (artigo 129), crimes contra a honra (artigos 138 a 140), constrangimento ilegal (artigo 146) ou ameaça (artigo 147), todos previstos no Código Penal.

Nada obstante a necessidade de atualizar a legislação criminal, alguns pontos merecem atenção. Em primeiro lugar, as reformas pontuais aos códigos, em regra, produzem alterações assistemáticas, transformando o sistema normativo em uma colcha de retalhos. Esse dado pode ser percebido no posicionamento do novo tipo penal na Seção I do Capítulo VI do Código Penal, que dispõe sobre os crimes contra a liberdade (individual e pessoal). Muito embora o crime de perseguição possa até configurar um crime contra a liberdade, na grande maioria dos casos se traduzirá como uma violência psicológica, com afetação secundária ou inexistente da liberdade de locomoção. O ponto central, portanto, estará no reconhecimento de que uma perseguição reiterada poderá causar um sofrimento emocional substancial na vítima que pode ou não resultar em uma restrição de sua liberdade e de sua autodeterminação.

Esse tratamento secundário ao dano psicológico parece sugerir que a violência (especialmente contra a mulher) somente seria objeto de atenção nos casos de derramamento de sangue, encorajando um determinado ceticismo quanto à possibilidade dos danos psicológicos causados às mais saudáveis das mentes, desconsiderando traumas duradouros e a possibilidade de patologias mentais profundas que podem decorrer de anos de subjugação psicológica, fortalecendo, portanto, a manutenção de uma cultura machista e desigual, incompatível com os valores expressados e tutelados pelo Direito interno e pelo Direito convencional. Tal entendimento, contudo, é inadequado, pois sua abrangência é mais ampla, não ocorrendo apenas em caso de violência física.

Segundo aspecto de grande importância está na redação do tipo penal. O legislador caracterizou como criminosa a conduta de "perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio", porém deixou de definir com precisão o conceito de perseguição reiterada, permitindo, assim, a abertura de sentido que desafia a relação biunívoca entre o princípio da legalidade e o da materialidade da ação, na medida em que não há certeza quanto ao comportamento proibido. Afinal, quantas ações seriam necessárias para considerar a perseguição necessária? Haveria um período de tempo máximo entre a prática de cada ação? Ou devem as ações serem ininterruptas?

Melhor seria se o legislador tivesse formulado o tipo penal já delimitando no tipo objetivo a definição do que se considera perseguição reiterada. A título meramente exemplificativo, na legislação norte-americana os stalking statue da legislação federal (Federal Stalking Statute, 18 U.S.C. §2261A) e dos estados de Ohio (Ohio Stalking Statute ORC 2903.211) e Califórnia (California Penal Code §646.9(f)) estabelecem a necessidade de no mínimo duas ou mais ações praticadas em curto período de tempo, com sentido de continuidade.

Outro problema decorre da utilização da expressão "perseguir por qualquer meio". O verbo perseguir deve ser interpretado no sentido de seguir, assediar, importunar, molestar a vítima. Todavia, o complemento por qualquer meio, se analisado isoladamente, pode permitir o desenvolvimento de propostas interpretativas que possivelmente não estariam relacionadas ao principal intuito da tutela, como a criminalização de ações reiteradas de telemarketing ou call centers.

Em verdade, a perseguição deve ser dolosa, repetida e sistêmica com a finalidade de provocar na vítima um abalo emocional sério decorrente do medo ou receio de sua segurança ou de seus familiares, podendo os atos de importunação derivar de ações orais, escritas, eletrônicas ou de qualquer outro meio. Há de se observar que o tipo penal não exige elemento subjetivo especial (dolo específico), razão pela qual o intérprete deve buscar compreender se no caso concreto as ações reiteradas foram suficientes para provocar razoável importunação à vítima.

O tipo objetivo prevê ainda que a perseguição restrinja a capacidade de locomoção da vítima ou de qualquer forma invada ou perturbe sua esfera de liberdade e privacidade. A redação do tipo nesse ponto se apresenta confusa, pois, aparentemente, a restrição da capacidade de locomoção da vítima ou a perturbação da sua liberdade ou privacidade não deve ser efetivamente provocada pelo sujeito ativo do delito, mas, sim, constituir-se em um efeito do medo imposto à vítima por meio de uma ameaça crível, séria e grave. Observe-se que, caso o sujeito ativo seja o próprio responsável pela privação da liberdade, mais adequado será a imputação do crime de cárcere privado, a teor do artigo 148 do Código Penal. Da mesma forma, se os atos de importunação se constituírem em uma forma de constranger a vítima, mediante violência ou grave ameaça, a não fazer o que a lei permite ou a fazer o que a lei não manda, caracterizado estará o crime de constrangimento ilegal, conforme o artigo 146 do mesmo código.

Como se vê, o novo tipo penal causará dúvidas e permitirá debates em decorrência de sua redação que parece não espelhar a melhor técnica legislativa. A ausência de certa racionalidade da lei penal poderá provocar, simultaneamente, respostas excessivas e deficientes. Em ambos os casos, o maior prejudicado será o jurisdicionado, seja como acusado ou vítima, pois estará sujeito a uma interpretação do Direito por demais discricionária.

Esse é o problema das reformas pontuais e assistemáticas: se de um lado parecem atender a necessidades atuais, de outro permitem a expansão irracional do Direito punitivo, causando incerteza e insegurança na sua aplicação. A lei, que deveria esclarecer, não esclarece e cobra um preço alto, deixando o jurisdicionado à mercê da volatilidade de decisões casuístas.

Autores

  • é sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff-Advogados, especialista em Direito Penal & Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal) e em Ciências Criminais pela Universidade Federal do Estado do Pará, vice-presidente da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (ABRACRIM), Regional do Estado do Pará.

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