Opinião

Sobre a reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falências

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24 de abril de 2021, 11h12

Em janeiro deste ano, com entrada em vigor da Lei nº 14.112/2020, o processo falimentar passou por significativas transformações, entre as quais pode-se destacar, especialmente para o objeto desta matéria, a alteração do artigo 158 da LRF, que trata da extinção das obrigações do falido. Essa modificação é extremamente significativa, ainda mais levando em consideração o papel desempenhado pelo referido instituto.

Nos termos do artigo 102 da LRF, a decretação de falência do empresário, como forma de proteção geral da sociedade, inabilita-o para exercer quaisquer outras novas atividades empresárias. Ou seja, enquanto perdurarem suas obrigações, o falido não poderá iniciar qualquer novo negócio que se qualifique como empresa.

Sucede que, apesar de todo o estigma social que recai sobre o falido na sociedade brasileira, é evidente a importância da empresa para a movimentação da economia do país, não se concebendo almejar uma inabilitação ad eternum do empresário para a sua função. Afinal, de forma absolutamente coerente, além do inegável impacto econômico que uma medida desse calibre acarretaria, prejudicando o desenvolvimento da economia nacional, inexiste, no sistema jurídico brasileiro, qualquer forma de sanção que se prolongue para todo o sempre.

É nesse contexto que a extinção das obrigações, no curso do procedimento falimentar, exerce sua relevante função no ordenamento nacional, viabilizando a reabilitação do falido para o exercício de novas atividades empresariais, conforme previsão do próprio artigo 102 da LRF.

Assim, como consequência direta da extinção das suas obrigações, o empresário falido encontra-se na situação internacionalmente conhecida como fresh start, na qual pode iniciar uma nova empreitada sem os fardos das obrigações decorrentes das atividades anteriormente exercidas. Dito de outro modo: a extinção das obrigações é condição essencial para o fresh start.

O referido artigo 158 da LRF estabelecia, em seus incisos, quatro hipóteses de extinção das obrigações: o pagamento integral da dívida, o pagamento de 50% dos créditos quirografários, depois de realizado todo o ativo, o decurso de cinco anos, a contar da data do encerramento da falência, e, caso o falido tenha sido condenado por crime falimentar, o prazo de dez anos, também a contar do encerramento do procedimento falimentar. Nos dois últimos casos, portanto, o marco temporal do início da contagem do prazo se dava somente a partir da sentença que encerrava a falência, o que comumente arrastava a inabilitação do empresário por anos e, até mesmo, décadas.

Com o objetivo justamente de facilitar as condições para a reabilitação do falido, a alteração das hipóteses previstas no artigo 158 da LRF era, há muito, exigida pela comunidade empresária. Esta reclamava das dificuldades impostas pela legislação brasileira para que o falido tivesse extintas as suas obrigações, especialmente quando comparada com os procedimentos falimentares de países desenvolvidos, e, mais especificamente, com a legislação norte-americana [1].

A entrada em vigor da Lei nº 14.112/2020 alterou todo o cenário. Para os processos falimentares iniciados após a alteração legislativa, a extinção das obrigações do falido poderá ocorrer pelo pagamento de 25% dos créditos quirografários, depois de realizado todo o ativo, significativa redução frente aos 50% anteriormente exigidos. Além disso, também são hipóteses de extinção o pagamento de todas as obrigações, a própria sentença que encerra a falência ou o simples decurso de três anos, a contar da sentença que decreta o início do processo falimentar, reduzindo substancialmente o prazo e o marco inicial da sua contagem, ficando revogados os incisos que previam os prazos de cinco e dez anos, anteriormente mencionados.

O atual modelo de extinção inserido pela Lei nº 14.112/2020 acaba se aproximando, ainda que com significativas diferenças e maior rigidez, da figura do discharge, previsto na seção 727 do Bankrupcy Code da legislação estadunidense. Segundo o instituto americano, o devedor se torna isento das suas obrigações, desde que não tenha havido alguma objeção dos credores, abuso ou ato negativamente valorado pela respectiva lei falimentar, acarretando, de modo mais célere, o tão almejado fresh start [2].

Como a reabilitação do falido, conforme demonstrado, está intimamente ligada à extinção das suas obrigações, a atual sistemática adotada na reforma da LRF acaba por facilitar e antecipar o retorno do falido ao mercado, o que rendeu forte comemoração de boa parte da comunidade empresarial e jurídica.

Ao modernizar as formas de extinção das obrigações do falido, flexibilizando a sua reabilitação, a reforma da LRF teve o mérito de aproximar a legislação falimentar brasileira daquelas mais modernas de países com economia desenvolvida. De outro lado, deu um importante passo para a superação da antiquada visão institucional de desconfiança com o falido, como alguém que age de forma desonesta, quando, na verdade, seu insucesso comercial pode decorrer de circunstâncias de mercado alheias à sua vontade.

Superou-se, portanto, a necessidade jurídica de ver o empresário encontrar-se inabilitado para outras atividades durante todo o processo de falência. O legislador, ao sopesar os diversos princípios que norteiam toda a atividade legiferante, entendeu por flexibilizar a inabilitação do falido, garantindo formas mais céleres e baratas de o empresário falido poder retornar ao mercado, propiciando o surgimento de novos negócios e a consequente geração de empregos e riqueza.

Não se estar a dizer, entretanto, que o modelo norte-americano é o ideal para a realidade jurídica e econômica brasileira. Tampouco se diz que o modelo adotado atualmente está isento de críticas e problemas, podendo, inclusive, acarretar dificuldades de os credores, no curso dos processos falimentares, satisfazerem, ainda que parcialmente, seus direitos.

Se essa mudança acarretará mais efeitos positivos que negativos, somente o tempo poderá dizer. No entanto, o que se vê, ao fim, é um importante passo para a relegitimação da falência como instituto jurídico essencial para a economia moderna em um momento especialmente delicado de grave crise econômica [3], garantindo ao empresário mal sucedido na sua empreitada, a necessária segurança jurídica de um prazo razoável e determinado para sua reabilitação.

 


[1] VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc; SZTAJN, Rachel. O fresh start na falência e na liquidação extrajudicial. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/320329/o-fresh-start-na-falencia-e-na-liquidacao-extrajudicial Acesso em: 13/4/2021.

[2] United States Bankrupcy Code; Section 727. Disponível em: https://www.usbankruptcycode.org/chapter-7-liquidation/subchapter-ii-collection-liquidation-and-distribution-of-the-estate/section-727-discharge/ Acesso em: 12/4/2021.

[3] CAPETTI, Pedro. Mais de 700 mil empresas que fecharam as portas não vão reabrir após fim da pandemia. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/mais-de-700-mil-empresas-que-fecharam-as-portas-nao-vao-reabrir-apos-fim-da-pandemia-24535458. Acesso em: 12/4/2021.

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