Opinião

As 10 regras da ética judicial resultantes da natureza cognitiva - Parte 2

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24 de abril de 2021, 7h09

Continua parte 1

Nesse sentido, o modelo garantista partilha a máxima "nolite iudicare"  com a ética cristã, pelo menos se por "julgar" entendermos o juízo sobre a identidade imoral ou má do sujeito e não a avaliação probatória e a qualificação jurídica do fato cometido por ele e previsto pela lei como um crime. Além disso, com uma conotação ética específica de tipo secular e liberal, que a inquestionabilidade jurídica e moral das consciências deriva precisamente do princípio da legalidade estrita: a igual dignidade das pessoas reconhecida aos réus assim como aos não réus e, portanto, o respeito devido à sua identidade embora má, bem como o direito de cada um ser como é.

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8. O respeito por todas as partes do processo — É este respeito por todas as partes do processo — começando pelo acusado, seja ele quem for, sujeito fraco ou forte, mesmo que seja um mafioso ou um terrorista ou um político corrupto — a oitava regra do decálogo aqui proposto sobre a deontologia judiciária. O Direito Penal, no seu modelo de garantista, equivale ao direito do mais fraco, que se na hora do crime é o ofendido, no momento do julgamento é sempre o acusado, cujos direitos e garantias são na mesma medida as leis dos mais fracos.

Esta regra de respeito pelas partes envolvidas, e em particular pelos acusados, é um corolário do princípio da igualdade, pois equivale ao postulado da "igual dignidade social" de todas as pessoas, incluindo, portanto, os réus, enunciado em nossa Constituição. Mas é também corolário do princípio da legalidade, em virtude do qual, repito, somos punidos pelo que se faz, e não pelo que se é, e julga-se o fato e não a pessoa, o crime e não o seu autor, cuja identidade e interioridade sejam afastadas do juízo penal. Acrescentaria que no processo penal este respeito pelo acusado equivale a fundar aquela assimetria que deve sempre existir entre a civilização do direito e a incivilidade do crime e que é a principal que sempre deve subsistir entre a civilidade do direito e a incivilidade do delito e que é força principal da primeira como fator de deslegitimação moral e isolamento social da segunda.

Esta é uma regra deontológica vinda da consideração do ponto de vista do cidadão. Em sua longa carreira, cada juiz conhece milhares de pessoas: como réus, como partes ofendidas, como testemunhas, como demandantes e como partes. Tenho aconselhado repetidamente os juízes a fazerem um exercício mental: o de sempre se colocarem do ponto de vista de seus réus, dos demandantes e das partes envolvidas no julgamento. É a partir desses pontos de vista que os juízes sempre serão, por sua vez, severamente julgados. Eles mal se lembram de algum deles. Mas cada um deles se lembrará de seus juízes e lembrará de seu julgamento como uma experiência inesquecível: ele lembrará de sua imparcialidade ou partidarismo, seu equilíbrio ou arrogância, sua sensibilidade ou limitação burocrática, sua humanidade ou desumanidade, sua capacidade de ouvir ou sua prepotência. Acima de tudo, ele se lembrará se aqueles juízes o assustaram.

9. Os juízes não devem buscar o consentimento da opinião pública, mas apenas a confiança das partes do processo — Como regra deontológica adicional, segue-se uma relação específica dos juízes com a opinião pública e com as partes envolvidas. O magistrado não deve pedir o consentimento da opinião pública: pelo contrário, um juiz deve poder, com base no correto conhecimento dos atos do julgamento, absolver quando todos pedirem condenação e condenar quando todos pedirem a absolvição. Justamente porque a fonte de legitimação da jurisdição consiste na apuração dos fatos submetidos à sentença, o poder judiciário é um poder contramajoritário, tanto quanto os direitos por eles garantidos que, como escreveu Ronald Dworkin, são direitos dos pessoa como indivíduo e sempre, portanto, virtualmente contra a maioria[5]. "Quando sinto a mão do poder pressionando meu pescoço", escreveu Tocqueville, "não me importa quem está me oprimindo; e não estou mais disposto a curvar minha cabeça sob o jugo pelo simples fato de que isto me é apresentado por milhões de braços"[6]. Veritas, non auctoritas facit judicium, podemos dizer sobre a jurisdição, graças ao princípio hobbesiano oposto auctoritas, non veritas facit legem que, em vez disso, é válido para a legislação. Um cidadão não pode ser punido apenas porque sua punição responde à vontade ou ao interesse da maioria. Nenhuma maioria, por mais esmagadora que seja, pode legitimar a condenação de uma pessoa inocente. E nenhum consenso político — do governo, ou da imprensa, ou dos partidos ou da opinião pública — pode substituir a prova faltante ou desacreditar a prova adquirida de uma hipótese acusatória. Num sistema penal garantista, o consentimento da maioria ou a investidura representativa do juiz nada acrescentam à legitimidade da jurisdição, uma vez que não podem tornar verdadeiro o que é falso ou falso o que é verdadeiro. Esta ligação entre a verdade e a validade dos atos judiciais é o principal fundamento teórico da separação de poderes e da independência do Judiciário no Estado de Direito. Uma atividade cognitiva não pode, por princípio, estar sujeita a outros imperativos além daqueles inerentes à busca da verdade. E qualquer condicionamento de poder não apenas não contribui para a obtenção da verdade, mas, ao contrário, é enganoso para esse fim.

As únicas pessoas das quais os magistrados devem poder ter, não o consentimento, mas a confiança, são as partes envolvidas e principalmente os acusados: confiança na sua imparcialidade, na sua honestidade intelectual, no seu rigor moral, na sua competência técnica na sua capacidade de julgamento. Na verdade, o que deslegitima a jurisdição não é tanto a discordância e a crítica, que não só são legítimas, mas atuam como fatores de responsabilização, mas a desconfiança dos juízes e, pior ainda, o medo, gerado pelas violações das garantias estabelecidas por lei por ele: quem é chamado a aplicar a lei e quem tira a sua legitimidade somente da sujeição à lei. Por isso, a confiança das partes envolvidas em seus juízes é o principal parâmetro e o melhor teste do índice de legitimidade da jurisdição. Se é verdade que a independência dos juízes é uma condição para o seu papel garantista, o contrário também é verdadeiro: somente se os juízes realmente exercerem o seu papel de garantista, os cidadãos irão defender a independência da jurisdição como sua garantia.

10. A rejeição do carreirismo como regra de estilo — É claro que esta independência, necessária para que a jurisdição cumpra o seu papel de garantia de direitos, deve, por sua vez, ser garantida não só por poderes externos, mas também por poderes internos do Judiciário, que são aqueles que atualmente governam as carreiras dos magistrados. Daí a décima regra da deontologia judiciária: a rejeição do carreirismo e de todas as normas e práticas que o alimentaram nos últimos anos, a começar pelas avaliações do profissionalismo no momento das promoções dos magistrados; as quais, além de geralmente pouco credíveis e por vezes arbitrárias, acabam por influenciar a função judiciária, deformando a mentalidade dos juízes e prejudicando a sua independência interna.

Devemos estar cientes de que qualquer forma de carreira dos juízes se contrapõe ao princípio de sua igualdade estabelecido pelo artigo 107, parágrafo 3º de nossa Constituição segundo o qual "os magistrados se distinguem apenas pela diversidade de funções". Trata-se de um princípio básico, cujo prejuízo decorrente da carreira e do carreirismo mina, por um lado, a independência interna dos juízes, que o artigo 101.º, parágrafo 2º, da Constituição exige que estejam "sujeitos apenas a lei", e, por outro, a credibilidade de toda a instituição judiciária.

Em primeiro lugar, essas avaliações de profissionalismo, além de incentivarem o carreirismo dos juízes, correm sempre o risco de produzir a homologação de diretrizes jurisprudenciais e, portanto, de fato, a conformidade e sujeição dos magistrados às suas chefias, habilitadas a avaliar o seu trabalho. Elas contradizem uma regra básica da ética dos juízes: o princípio de que devem exercer as suas funções sine spe et sine metu: sem esperança de vantagens ou promoções e sem medo de desvantagens ou preconceitos pelo mérito do exercício das suas funções.

Em segundo lugar, o carreirismo é a verdadeira origem da degeneração das correntes internas da Associação Nacional dos Magistrados [italianos] e do descrédito do Judiciário e de seu órgão autônomo, que emergiu com o recente escândalo da divisão dos cargos de gestão suscitado pelo caso Palamara. Essas degenerações têm sido atribuídas, no debate público, ao associacionismo judiciário e ao pluralismo de correntes, mais do que ao carreirismo e aos seus pressupostos. Ao contrário, o associacionismo dos juízes foi um fator decisivo para a democratização do Judiciário[7]. E as correntes tornam-se indispensáveis pelo caráter eletivo do Conselho Superior da Magistratura. É também claro que em decisões tipicamente discricionárias, como a nomeação dos chefes de departamentos por um órgão colegiado e representativo como o CSM, algum tipo de compromisso é inevitável entre os diferentes grupos nele representados. O que é intolerável e escandaloso é a prática de recomendações, auto recomendações e trocas originadas justamente no carreirismo, por sua vez determinado pela violação indevida do princípio da igualdade dos juízes.

Contra essa prática, parece-me que quatro remédios podem ser sugeridos, um consistindo em uma regra deontológica, o outro em reformas institucionais adequadas para favorecer a eficácia dessa regra. A regra deontológica, por assim dizer de estilo, deve consistir, repito, na recusa de uma carreira: na aspiração, mais do que por funções de gestão, ao melhor exercício de funções jurisdicionais, de garantir os direitos fundamentais das pessoas. As reformas deveriam consistir na abolição dos pré-requisitos para as carreiras: em primeiro lugar, a limitação dos julgamentos de profissionalismo apenas à indicação da adequação, ou melhor, da inadequação dos juízes para o trabalho judicial, sem a indicação de hierarquias impróprias; em segundo lugar, a redução ao máximo das competências das funções executivas dos gabinetes — começando pelas competências de atribuição de processos, substituídas por mecanismos tão automáticos quanto possível — de forma a reduzir os motivos de ambição de os obter; em terceiro lugar, a reabilitação, como critério privilegiado de atribuição dessas funções, do antigo princípio objetivo da antiguidade.

*O artigo foi gentilmente traduzido para a ConJur por Gislaine Marins, tradutora e professora universitária em Roma, e Paola Ligasacchi, jornalista, advogada e mestre em Estudos Sociais e Políticos Latinoamericanos pela Universidade Alberto Hurtado, em Santiago do Chile.

Clique aqui para ler o artigo original em italiano

[1] De l’esprit des lois (1748), in Oeuvres complètes, Gallimard, Paris 1951, II, XI, 6, p. 398.

[2] Idées sur le despotisme (1789), in Oeuvres de Condor­cet, Firmin Didot, Paris 1847, t. IX, p. 155.

[3] C. Beccaria, Dei delitti e delle pene (1766), a cura di F. Venturi, Einaudi, Torino 1981, § XVII, pp. 45 46; L.A. Muratori, Dei difetti della giurisprudenza (1742), Rizzoli, Milano 1953, cap. XII, pp. 130 141.

[4] Indico, para uma reformulação teórica da relação entre lega­lidade e equidade, o meu livro Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale (1989), 11^ ed., Laterza, Bari‑Roma 2018, § 11, pp. 135‑147; em particular, para uma crítica da noção aristotélica de equidade, retomada d filosofia jurídica até os nossos dias, consulte-se, no título citado, as páginas 137-138 e as notas 94-104 nas páginas 181-183. Sobre a questão, além da crítica do criacionismo judiciário, consulte-se também os meus livros La democrazia attraverso i diritti. Il costituzionalismo come modello teorico e come progetto politico, Laterza, Roma-Bari 2013, cap. III, páginas 95-137, Contro il creazionismo giudiziario, Mucchi, Modena 2017 e La costruzione della democrazia. Teoria del garantismo costituzionale, Laterza, Roma-Bari 2021, § 3.7, páginas 155-160.

[5] R. Dworkin, I diritti presi sul serio (1977), trad. it. org. por G. Rebuffa, Il Mulino, Bologna 1992, p. 274-278 e 318-323.

[6] A. de Tocqueville, La democrazia in America (1835), in Id., Scritti politici, a cura di N. Matteucci, Utet, Torino 1969, lib. II, parte I, cap. III, p. 500.

[7] Indico, nesse sentido, o meu artigo Associazionismo dei magistrati e democratizzazione dell’ordine giudiziario, em “Questione giustizia”, 2015, n. 4, p. 178-184.

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