Diário de Classe

O autoritarismo político brasileiro

Autor

  • Danilo Pereira Lima

    é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar) doutor e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica vinculado ao CNPq e do grupo DASEIN — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

24 de abril de 2021, 8h01

O pensamento político brasileiro já proporcionou muitas reflexões interessantes sobre o país. Entre os muitos temas debatidos ao longo da história nacional, podemos destacar interpretações que se debruçaram sobre as dificuldades para o enraizamento da democracia no Brasil. Durante o Império e a Primeira República, a preocupação com a construção da ordem política e os questionamentos sobre a formação do povo brasileiro dominaram grande parte das reflexões. Após a Revolução de 1930, a queda da Primeira República deu lugar à modernização autoritária liderada por Getúlio Vargas. O Estado nacional se consolidou como uma das grandes obras do varguismo, mas, por outro lado, a questão democrática passou a ser vista com bastante pessimismo por diferentes setores da intelectualidade brasileira. Havia a sensação de que o autoritarismo encontrava-se enraizado no país. Algo que podemos observar em três diferentes momentos da reflexão do pensamento político e social brasileiro sobre a questão democrática: 1) a análise feita por Sérgio Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil", a partir da sua segunda edição em 1948; 2) o ensaio "Os donos do poder", publicado por Raymundo Faoro em 1958; 3) e o livro "A revolução burguesa no Brasil", publicado pelo sociólogo Florestan Fernandes em 1975.

Na década de 1930, a publicação de três obras impactou grandemente o debate intelectual brasileiro. No ano de 1933, Gilberto Freyre publicou "Casa-Grande e Senzala", uma obra na qual o pensador pernambucano colocou a miscigenação como um aspecto positivo da formação do povo brasileiro. Em 1934, Caio Prado Jr. lançou a "Evolução Política do Brasil", um livro que utilizou o materialismo histórico para compreender a formação do Brasil em um momento que os estudos sobre Marx ainda eram incipientes no país. Dois anos depois, Sérgio Buarque publicou "Raízes do Brasil".

Para a finalidade desta coluna, a primeira edição de "Raízes do Brasil" não é a que mais interessa para uma compreensão dos desafios da questão democrática no país. Em 1936, ano da primeira edição, Sérgio Buarque ainda apresentava um olhar conservador-autoritário que seguia uma tendência política muito forte na época. Nesse sentido, a questão democrática ainda não estava colocada como ponto central de suas reflexões. A derrota do nazi-fascismo, o fim do Estado Novo e a redemocratização em 1945 modificaram o ângulo político de análise do autor. Após se afastar do autoritarismo, as edições posteriores publicadas por Sérgio Buarque passaram a destacar a passionalidade do povo brasileiro como um dos grandes entraves à instauração da racionalidade jurídica do Estado de Direito. Foi nesse momento que Sérgio Buarque passou a afirmar que a democracia no Brasil sempre tinha sido um mal-entendido. Não obstante as diversas críticas ao projeto intelectual de "Raízes do Brasil", que no caso buscava compreender o caráter do povo brasileiro, presente, por exemplo, na tese do homem cordial; o que interessa aqui é a percepção de Sérgio Buarque sobre como as elites estabeleceram o reino da vontade dentro da coisa pública.

Diferentemente dos ventos autoritários que sopravam no ano da primeira edição de "Raízes do Brasil", Raymundo Faoro publicou "Os donos do poder" em 1958, ano em que Juscelino Kubitschek era presidente da República e o país era tomado por uma forte onda de otimismo político. Industrialização, desenvolvimento econômico e um presidente bossa-nova prometiam levar o país a um rumo democrático. Na verdade as aparências enganavam. A República de 1946 sofreu ameaças autoritárias durante toda a sua existência. Em 1947, o PCB teve seu registro cancelado pelo Tribunal Superior Eleitoral e seus parlamentares tiveram seus mandatos extintos. Em 1954, a ameaça de um golpe civil-militar motivou o suicídio de Getúlio Vargas. Antes da posse de Juscelino Kubitschek, em janeiro de 1956, um movimento civil-militar tentou impedir que o presidente eleito assumisse o governo. A tentativa de golpe naufragou graças à intervenção do marechal Henrique Teixeira Lott. Ainda durante o governo de Kubitschek ocorreram dois pequenos levantes militares, um em Jacareacanga e outro em Aragarças. Como é possível observar, a tensão política foi grande durante boa parte da década de 1950, mas o pior ainda estava por vir em 1964.

O ensaio escrito por Faoro em 1958 não acompanhou o otimismo dos anos do governo Kubitschek. Por meio de uma longa narrativa, que começa na crise dinástica instaurada entre os lusitanos no final do século 14 e termina na revolução de 1930 no Brasil, Faoro apresentou a viagem redonda do patrimonialismo ao estamento. A partir de uma posição liberal, no sentido político, Faoro sustentou que o grande problema nacional se concentrava no caráter autoritário do Estado brasileiro, dominado por uma elite que instrumentaliza o poder público para o seu próprio benefício. Apesar de todos os problemas da tese de Faoro, que no caso aponta para uma linearidade nas transformações políticas do país, o aspecto mais interessante da obra é a sua percepção sobre o enraizamento do autoritarismo no Brasil. Algo que justifica a maneira pessimista como Faoro encerra "Os donos do poder".

O último dos nossos autores, o sociólogo Florestan Fernandes, também escreveu um ensaio pessimista sobre as condições políticas do país. Em 1975, ano da publicação do livro "A revolução burguesa no Brasil", o país encontrava-se sob uma ditadura militar que durou 21 anos. Tempos de perseguição, tortura, prisão, assassinato e desaparecimentos forçados. No caso particular de Florestan, o autoritarismo o atingiu dentro da Universidade de São Paulo. Em 1969, Florestan teve sua carreira interrompida dentro da USP por meio de sua aposentadoria compulsória. Foi esse ambiente inóspito ao livre pensamento e à reflexão que gerou uma resposta de Florestan ao que se instalara no país a partir de 31 de março de 1964. Para compreender o sentido político e social da ditadura imposta após a deposição do presidente João Goulart, Florestan chamou a atenção para o tipo de modernização capitalista que ocorria no Brasil. Ao contrário do modelo clássico de revolução burguesa que aconteceu na França, e que, devido ao radicalismo dos acontecimentos políticos do século 18, permitiu uma maior ampliação da noção de cidadania; no Brasil, a revolução burguesa tomou rumos bem diferentes, de modo a favorecer a consolidação de uma ordem social competitiva, própria de uma sociedade capitalista, mas que, por outro lado, não foi capaz de romper radicalmente com a dominação senhorial. Desse modo, a modernização capitalista brasileira mantinha em suas estruturas de poder a dominação política autocrática. Algo que pode ser observado até hoje na maneira como o Estado se relaciona com as massas populares. Assim, por meio de outra chave de interpretação, Florestan também escancarou a maneira como o autoritarismo político permanece enraizado no Brasil.

Após a promulgação da Constituição de 1988 e a realização de sete eleições presidenciais sem manifestações dos quartéis, a impressão que se tinha era que o país finalmente havia tomado o rumo da democracia. Engano de todos nós. O autoritarismo político, analisado pelas diferentes chaves de interpretação citadas acima, nos últimos anos deixou o subterrâneo para se manifestar na superfície. Em tempos de extremismo político, messianismo judicial e grande exploração econômica, vimos que o liberalismo professado por muitos que se autodenominam liberais não passa de um liberalismo econômico, do tipo que mantém uma relação meramente contingencial com o Estado de Direito, mas que se levanta de forma enérgica para defender a liberdade da "turma da Faria Lima". É esse caráter autocrático e estamental que domina as instituições. E para nós, que atuamos no Direito, a fonte da discricionariedade judicial e do messianismo do Ministério Público — fenômenos autoritários analisados há muito tempo por Lenio Streck — encontra-se no modelo autocrático de dominação política. Algo que precisamos investigar melhor por meio de um diálogo com os clássicos dos pensamentos político e social brasileiro.

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