Opinião

Audiências de custódia por videoconferência: o que está em jogo?

Autor

  • Manuela Abath Valença

    é professora da graduação e do programa de pós-graduação da UFPE professora da graduação da Universidade Católica de Pernambuco doutora em Direito pelo PPGD-UnB mestre em Direito pelo PPGD-UFPE e pesquisadora do Asa Branca Criminologia.

23 de abril de 2021, 13h34

Na última segunda-feira (19/4), o Senado Federal derrubou diversos vetos presidenciais ao pacote "anticrime", entre os quais o que havia retirado o parágrafo primeiro do artigo 3-B, que determinava a obrigatoriedade das audiências de custódia presenciais. Com essa importante vitória, fruto de intensa articulação de diversos setores
da sociedade civil, a videoconferência deixa de ser uma alternativa no caso das audiências de custódia. Afinal, o que está em jogo e por que considerar a derrubada do referido veto um avanço na garantia de direitos?

Em novembro de 2020, o CNJ, em sua 322ª sessão plenária, pautou e autorizou o uso da videoconferência no âmbito das audiências de custódia. Na ocasião, foram vencidos os conselheiros André Godinho, Tânia Regina S. Reckziegel, Ivana Navarrete Pena e Marcos Vinicius J. Rodrigues. Ainda atuaram como amici curiae, refutando a possibilidade do uso da videoconferência, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o Conectas, as Defensorias Públicas do Rio de Janeiro e de São Paulo e a Associação para a Prevenção da Tortura (APT).

Essas entidades participaram da audiência apresentando resultados de estudos empíricos  em parte por elas realizados e hoje já numerosos sobre as audiências de custódia  que diagnosticam desafios já enfrentados nesse campo, mesmo antes da pandemia. Citamos alguns:

a) É acima do esperado o percentual de decisões que convertem prisões em flagrante em preventiva, sugerindo um padrão decisório ainda marcadamente encarcerador, com forte apelo ao requisito da garantia da ordem pública como fundamento para decretar prisões preventivas [1];

b) São baixíssimos os percentuais de decisões que relaxam as prisões em flagrante, sugerindo pouca iniciativa para o controle da legalidade dessas prisões e, consequentemente, da ação policial [2]; e

c) No que toca ao combate à tortura, ainda são poucos os estados em que os Institutos Médico-Legais garantem o envio imediato dos laudos traumatológicos às audiências de custódia; é comum a presença de policiais dentro das salas de audiências; não existem protocolos interinstitucionais para garantir o registro e encaminhamentos dos casos em que custodiados narrem ter sofrido tortura ou maus tratos [3]. Em poucas palavras, ainda há muito a ser aprimorado na gestão das audiências de custódia para que se tornem um espaço seguro e eficaz de prevenção e combate à violência institucional.

Como a videoconferência pode impactar cada uma dessas questões?
O uso dessa tecnologia nos procedimentos criminais tem sido objeto de debate há alguns anos na comunidade internacional e no Brasil. O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos dispõem expressamente sobre o direito de toda pessoa presa de ser conduzida [4] [5], sem demora, à presença de um juiz ou de autoridade com poderes similares. "Ser conduzido", por certo, pressupõe um deslocamento no espaço, levar de um local para outro; não há como imaginar que "ser conduzido" corresponda a transmitir imagens e sons de uma pessoa, ainda que de modo síncrono.

Por essa razão, logo quando eclodiu a pandemia, o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC) publicou um documento específico, elaborado pela Comissão Internacional de Juristas, que tratou das audiências criminais e o uso da videoconferência no período da pandemia da Covid-19. O documento conclui que nem mesmo num momento de crise sanitária aguda poderia haver o uso indiscriminado dessa modalidade de contato, considerando que "estar fisicamente presente em frente a um juiz independente cria um senso de relativa segurança no qual a pessoa estará mais propensa a falar sobre qualquer abuso, se comparado a uma situação em que ele ou ela permanece ligada a uma autoridade exterior somente por uma tela de vídeo" [6].

Além dessa normativa internacional, que chama a atenção para a importância desse ato ser realizado com a presença física de custodiados, em países onde a videoconferência passou a se destacar nos procedimentos criminais, houve críticas direcionadas ao seu potencial violador de direitos dos custodiados. Destacamos algumas delas:

a) Um tribunal é um espaço de rituais e formalidades que assegura ao acusado/custodiado que uma solenidade está em curso. O senso de seriedade do ato se reduz quando praticado mediante vídeo [7]. A esse argumento acrescentaria outro dado: constantemente acusados não compreendem por completo a finalidade dos atos processuais, o papel exercido por cada um dos atores do sistema de Justiça e qual deve ser a sua participação ali. Quando tudo isso se dá por imagens, sem as percepções dos gestos, olhares e toda a comunicação não verbal, o grau de incompreensão poderá ser maior [8];

b) Alguns estudos empíricos realizados sobre interrogatórios por videoconferência nos Estados Unidos já destacam que o ângulo de uma câmera pode modificar substancialmente a percepção do receptor da mensagem, no caso, o julgador [9]; esses mesmos estudos pontuam que um acusado/custodiado pode se sentir mais intimidado em falar em frente a uma câmera;

c) Outro dado importante diz respeito à defesa técnica. Se ela fica no tribunal, distante do acusado, este pode não compreender que aquele profissional atua a seu favor e se diferencia dos demais que aparecem no vídeo; se a defesa, entretanto, está fisicamente junto do acusado e, portanto, distante dos demais atores da audiência (juízes, promotores, assistentes etc.), perde a possibilidade de agir com rapidez diante de comunicações não verbais entre juízes e acusadores ou entre estes e testemunhas, vítimas etc. Por fim, se apenas a defesa e o acusado estão fora do tribunal e juízes e promotores estão no mesmo ambiente, reforça-se uma desigualdade simbólica entre as partes processuais [10];

d) Por fim, em um estudo empírico com 645.177 casos de aplicação de fiança em audiências realizadas entre janeiro de 1991 e dezembro de 2007, em Cook County, nos Estados Unidos, Diamond et al verificaram que o valor das fianças aumentou significativamente após a implementação das videoconferências, sugerindo um tratamento mais severo quando o custodiado não está fisicamente presente [11].

Todos esses aspectos evidenciam que a adoção da videoconferência no âmbito das audiências criminais em geral, e de custódia em especial, representam uma perda de força e de oportunidade sobretudo para o custodiado e para a defesa. Em termos práticos, poderá resultar em mais decretações de prisão preventiva e em ainda menos relaxamentos de flagrantes.

No que toca ao combate à tortura e a outras formas de tratamento degradante, o quadro também pode se agravar, o que já sugerem os documentos internacionais de direitos humanos antes citados e todos os argumentos empíricos explorados pelos também citados amici curiae que se pronunciaram na sessão plenária do CNJ.

O ministro Luiz Fux e outros conselheiros que aprovaram a adoção da videoconferência entenderam, entretanto, poder contornar todos esses desafios impondo alguns requisitos à adoção da tecnologia no âmbito das custódias. Nesse sentido é a atual redação do artigo 19 da Resolução 329:

"§2º Para prevenir qualquer tipo de abuso ou constrangimento ilegal, deverão ser tomadas as seguintes cautelas:
I
— deverá ser assegurada privacidade ao preso na sala em que se realizar a videoconferência, devendo permanecer sozinho durante a realização de sua oitiva, observada a regra do §1º e ressalvada a possibilidade de presença física de seu advogado ou defensor no ambiente;
II
 a condição exigida no inciso I poderá ser certificada pelo próprio juiz, Ministério Público e Defesa, por meio do uso concomitante de mais de uma câmera no ambiente ou de câmeras 360 graus, de modo a permitir a visualização integral do espaço durante a realização do ato;
III
 deverá haver também uma câmera externa a monitorar a entrada do preso na sala e a porta desta; e

IV – o exame de corpo de delito, a atestar a integridade física do preso, deverá ser realizado antes do ato".

Como se vê, nada é dito sobre o local em que o custodiado se encontra, podendo ser uma delegacia de polícia, uma unidade penitenciária ou um prédio do Tribunal de Justiça. Considerando que esse preso pode estar sozinho (o que o inciso I não veda), cada um desses lugares proporcionará uma experiência radicalmente diferente quando, por exemplo, o assunto é relatar uma violência policial.

Aliás, nesse ponto vale mencionar o famoso precedente da Suprema Corte Americana, Miranda x Arizona, de 1966. Nesse caso, a corte afirma que o ambiente policial é inerentemente intimidante e que para ser assegurado que o custodiado foi efetivamente advertido do direito ao silêncio e à presença de um advogado, procedimentos efetivos precisariam ser realizados [12]. Como ressaltam Carvalho e Duarte [13], um dos pontos mais relevantes desse julgado é a corte reconhecer que o ambiente policial pode ser hostil e que não é possível ignorar esse dado de realidade ao se pensar em políticas e protocolos para a garantia de direitos, o que foi ignorado pelo CNJ.

A resolução, como se vê, fala ainda na adoção de câmeras de 360 graus ou de uma multiplicidade delas na sala em que o preso se encontra. Porém, deixa uma indagação em aberto: finalizada a audiência e a transmissão de imagens, o custodiado continua sob o jugo policial?

Por outro lado, se o preso é encaminhado para um prédio do Poder Judiciário por policiais e lá fica em uma carceragem aguardando ser conduzido  algemado e também por policiais  para uma sala onde estará sozinho, talvez se ganhe algo em termos simbólicos (sair do ambiente policial para o ambiente da Justiça); porém, se ele continua arrodeado apenas por autoridades ligadas às forças policiais, certamente continuará não se sentindo confortável para narrar violências a que tenha sido submetido.

Além desse aspecto, a resolução, embora garanta a realização do exame traumatológico do custodiado antes da audiência, nada diz sobre o envio do laudo aos magistrados, promotores e defensores a tempo de ser apreciado durante a audiência.

Desse modo, ela não se assegura nem a presença física do preso e nem o acesso imediato ao laudo do exame traumatológico nas audiências, perdendo-se praticamente todas as evidências de materialidade de eventual violência perpetrada contra custodiados.

Em suma, adotar audiências de custódia por videoconferência implica retroceder alguns anos na luta por direitos e garantias das pessoas presas e reduzir a capacidade de controle judicial e ministerial da atividade policial. Quem saiu ganhando?

 


[1] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Audiência de Custódia, Prisão Provisória e Medidas Cautelares: obstáculos institucionais e ideológicos à efetivação da liberdade como regra. Brasília, 2018. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/02/c54ef9cb07028dfaa4f60f22dd1a2333.pdf Acesso em 15 fev 2021.

[2] A essa conclusão chega, por exemplo, a pesquisa de âmbito nacional do IDDD: INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA. O fim da liberdade: a urgência de recuperar o sentido e a efetividade das audiências de custódia. São Paulo, 2019. Disponível em: https://iddd.org.br/wp-content/uploads/2020/09/ofimdaliberdade_completo-final.pdf Acesso em 30 jan. 2021.

[3] Essa falta de encaminhamento é fruto de processos de racialização que impedem que aquelas pessoas sentadas no "banco dos réus" sejam vistas como vítimas. Ver: BANDEIRA, Ana Luiza Villela de Viana. Audiências de custódia: percepções morais sobre violência policial e quem é vítima. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 2018. Felipe Freitas e Ana Luiza Flauzina refletem sobre como o racismo no Brasil define a posição de vítima, atribuindo aos corpos negros um espaço naturalizado de violação de direitos. Ver: FLAUZINA, Ana Luiza P.; FREITAS, Felipe da Silva. Do paradoxal privilégio de ser vítima: terror de Estado e a negação do sofrimento negro no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais v. 135, p. 15-32, 2017. Quanto aos dados sobre relatos de tortura e baixa elucidação, conferir: CONECTAS DIREITOS HUMANOS. Tortura blindada. 2017; INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA. Audiências de Custódia – Panorama Nacional. São Paulo, 2017; INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA. O fim da liberdade: a urgência de recuperar o sentido e a efetividade das audiências de custódia. São Paulo, 2019; FERREIRA, Carolina Costa; DIVAN, Gabriel Antinolfi. As audiências de custódia no Brasil: uma janela para a melhora do controle externo da atividade policial. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 8, nº 1, 2018 p.530-549.

[4] artigo 9 (3).

[5] artigo 7 (5).

[6] INTERNATIONAL COMMISSION OF JURISTS (ICJ). Videoconferencing, Courts and Covid-19: Recommendations Based on International Standards. Novembro, 2020. Disponível em: < https://www.unodc.org/res/ji/import/guide/icj_videoconferencing/icj_videoconferencing.pdf> Acesso em 20 mar 2021.

[7] JOHNSON, M.T; WIGGINS, E. Videoconferencing in criminal proceddings: legal and empirical issues and directions for research. Law & Policy, v. 28, n. 2, apr/2006, p. 215.

[8] DIAMOND, S.; BOWMAN, L; WONG, M.; PATTON, M. Efficiency and cost: the impact of videoconferenced hearings on bail decisions. Journal of criminal law and criminology, v. 100, issue 3, 2010.

[9] POULAIN, A. B. Criminal Justice and Videoconferencing Technology: The Remote Defendant. Tulane law Review, 78, p. 1089-1167, 2004.

[10] JOHNSON, M.T; WIGGINS, E. Videoconferencing in criminal proceddings: legal and empirical issues and directions for research. Law & Policy, v. 28, n. 2, apr/2006, p. 215.

[11] DIAMOND, S.; BOWMAN, L; WONG, M.; PATTON, M. Efficiency and cost: the impact of videoconferenced hearings on bail decisions. Journal of criminal law and criminology, v. 100, issue 3, 2010, p. 891.

[12] 1. (a) The atmosphere and environment of incommunicado interrogation as it exists today is inherently intimidating, and works to undermine the privilege against self-incrimination. Unless adequate preventive measures are taken to dispel the compulsion inherent in custodial surroundings, no statement obtained from the defendant can truly be the product of his free choice. (Miranda v. Arizona, 384 U.S. 436, 1966)

[13] PONTE CARVALHO, Gabriela; PIZA DUARTE, Evandro . As Abordagens Policiais e o Caso Miranda v. Arizona (1966): violência institucional e o papel das cortes constitucionais na garantia da assistência do defensor na fase policial. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 4, p. 303-334, 2018.

Autores

  • Brave

    é professora da graduação e do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco e da graduação da Universidade de Pernambuco (UPE) e da Universidade Católica de Pernambuco, doutora em Direito pelo PPGD-UnB, mestre em Direito pelo PPGD-UFPE e pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia (UFPE/Unicap).

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