Relações de Consumo

O reembolso nos shows e eventos cancelados não foi cancelado

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

22 de abril de 2021, 8h01

Um dos primeiros setores afetados pela pandemia da Covid-19 foi o de eventos e turismo, uma vez que a Organização Mundial da Saúde adotou como critério cientifico de prevenção o isolamento social, provocando, como efeito colateral, uma crise financeira em um mercado cujo sucesso pressupõe a aglomeração de pessoas.

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Com a continuidade da situação pandêmica por mais tempo do que o inicialmente previsto, e o consequente agravamento da situação econômica das empresas, o governo federal publicou uma série de medidas emergenciais, tais como a Medida Provisória nº 948/2020, convertida na Lei nº 14.046/2020, e a Medida Provisória nº 1.036/2021, prorrogando sua vigência até 31 de dezembro deste ano.

Segundo o artigo 2º, caput, da Lei nº 14.046/2020, o fornecedor de shows e eventos não será obrigado a reembolsar o consumidor quando lhe assegurar a remarcação dos serviços ou disponibilizar como crédito o valor pago, para ser usado na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis, até dezembro de 2022. O fornecedor poderá escolher livremente se devolve ou não valor pago. Tal situação, embora compreensível pela imprevisibilidade da pandemia (caso fortuito) e irresistibilidade (força maior), não deixa de ser inusitada, invertendo a lógica de proteção ao consumidor, pois, em tempos de normalidade, negar reembolso constitui cláusula contratual abusiva (CDC, artigo 52, II).

Reembolso, só se o fornecedor quiser.

A leitura atenta do dispositivo, no entanto, nos oferece outra interpretação. De acordo com o §8º do mesmo artigo 2º, percebe-se que a livre escolha em reembolsar ou não o consumidor não se aplica a qualquer hipótese. O artigo 2º, caput, isenta de reembolso a empresa que remarcar o evento ou conceder o crédito. Mas não toda empresa. É que o §8º desse mesmo artigo 2º diz expressamente que somente estarão livres do dever de reembolsar, os fornecedores que não tiverem consigo disponíveis os valores correspondentes aos ingressos vendidos. É o caso daquelas empresas que pagaram artistas ou produtores, e não conseguiram reaver o dinheiro pago. Agora, se o fornecedor já tiver sido reembolsado pelos artistas ou produtores contratados e já estiver de posse do dinheiro pago pelos consumidores, nesse caso, deverá devolver, sem a opção de remarcação ou concessão de crédito. Tal interpretação tem coerência. Se a empresa não dispõe dos recursos financeiros creditados pelo consumidor, porque tais recursos não lhes foram devolvidos pelos artistas contratados, ela não tem como restituí-los ao consumidor; agora, se os valores ainda estiverem em poder da sociedade empresária, as regras passam a ser outras.

Aplicam-se os princípios da boa-fé objetiva (CDC, artigo 4º, III) e a transparência (CDC, artigo 4º, caput), devendo as empresas, antes de exercitarem suas opções, comprovar que não dispõem dos recursos financeiros creditados, e que tais recursos financeiros não lhe foram devolvidos pelo artista ou do produtor do evento, sob pena de prejuízo direto ao consumidor.

Num momento tão grave de crise sanitária e econômica, muitos consumidores que reclamam ao Procon têm optado pelo reembolso do valores já pagos, alegando a dificuldade financeira que estão enfrentando. Se é certo que na crise todos devem perder um pouco para que todos ganhem alguma coisa, é também certo que, de posse do dinheiro dos ingressos, não há justificativa para a empresa não devolvê-los ao consumidor.

Autores

  • Brave

    é procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo, secretário estadual de Defesa do Consumidor e diretor executivo do Procon-SP, mestre pela USP, doutor pela PUC-SP, professor e autor de diversas obras jurídicas. Foi deputado estadual-SP por três mandatos, presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, presidente do Colégio de Presidentes das Assembleias Legislativas do Brasil (2015-2017) e da Comissão de Justiça.

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