Opinião

Homenagem a José Luciano de Castilho Pereira

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22 de abril de 2021, 15h08

Perdemos na segunda-feira (19/4) o magistrado José Luciano de Castilho Pereira. Juiz do Trabalho, desembargador do TRT da 10ª Região, ministro do TST, José Luciano foi, ao longo de sua longa e brilhante carreira, o modelo do bom juiz. É importante ressaltar esse aspecto da sua trajetória. Ele dispunha de tantas outras qualidades e era de tal forma carismático que, na lembrança de sua presença entre nós, poderíamos deixar de ressaltar seu imenso talento como julgador. Esperamos fazer justiça a essas duas dimensões de sua existência nesta pequena homenagem.

Faltam palavras para descrever o ambiente estimulante e de calor humano que emanava da Justiça do Trabalho em Brasília na segunda metade da década de 1980. Reunidos no mesmo prédio, estavam as Juntas de Conciliação e Julgamento, o Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região e a Procuradoria Regional do Trabalho da 10ª Região. No térreo do mesmo edifício — um prédio funcional, sem luxo, no final da Asa Norte — havia o Plenário e as salas de sessão das duas turmas do tribunal. No primeiro andar, as dez Juntas de Conciliação e Julgamento e a sala da Ordem dos Advogados do Brasil. No segundo andar, o Ministério Público do Trabalho e a área administrativa do tribunal. No terceiro, os gabinetes dos desembargadores.

O primeiro andar era particularmente animado, especialmente no início da tarde, quando ocorriam as audiências de conciliação. Partes, advogados, servidores, testemunhas, estagiários, estudantes circulavam pelos corredores, gabinetes e salas de audiência. O Brasil vivia um momento conturbado, mas pleno de esperança. Havia sucessivas crises econômicas, que eram combatidas com planos ortodoxos e heterodoxos, protestos e greves. Ao mesmo tempo, o país vivia o contexto de elaboração de uma constituição democrática, com o início dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte em 1º/2/1987.

Nesse cenário, uma pessoa se destacava. Era o juiz José Luciano de Castilho Pereira, presidente da 8ª JCJ de Brasília. Todos comentavam sua habilidade na condução das audiências, sua gentileza no trato com partes, advogados e testemunhas, sua generosidade com servidores e estagiários. Além disso, suas sentenças eram escritas num estilo próprio, aforístico, inimitável. Seu texto tinha forte carga autoral. E as decisões eram sempre equilibradas e procuravam oferecer a solução justa para a controvérsia.

Em todas as audiências que conduzia, como mineiro de boa cepa, procurava enxergar muito além dos discursos jurídicos contidos nas peças processuais, para alcançar a essência das pessoas e traduzir as narrativas que levaram aos conflitos. Reconhecia a relevância do trabalho humano como meio de vida digna de trabalhadores, ao mesmo tempo em que conferia prestígio à atividade empresarial, sempre vinculada à sua função social, gerando empregos, tributos e riquezas. Granjeou, por isso, respeito e admiração de todos os atores e segmentos sociais.

Com sua forma singular de pensar as relações jurídicas no mundo do trabalho, José Luciano produziu reflexões fecundas de significado, vaticinando realidades e cenários normativos futuros, de que são exemplos a mediação pré-processual de conflitos coletivos e o juízo crítico na aplicação de precedentes e diretrizes sumulares a casos aparentemente semelhantes.

Na gestão de conflitos coletivos, levou ao TST a experiência inaugurada ainda no TRT da 10ª Região, quando ocupou o cargo de vice-presidente. Ao contrário de levar os dissídios coletivos a julgamentos colegiados, com resultados sempre imprevisíveis, levava os atores sociais ao seu gabinete, para longas e aprazíveis conversas, das quais resultavam, invariavelmente, conciliações. Nessas ocasiões, sempre cultivando o bom humor dos espíritos evoluídos, ressaltava a seus interlocutores que não poderia faltar pão de queijo em autênticos espaços mineiros, apontando para o livro com fotos da iguaria, sempre mantido no centro de sua mesa de reuniões.

Entre suas provocativas reflexões, dirigidas a diferentes gerações de magistrados, ponderava "não haver nada mais diferente do que dois casos iguais". Com essa observação, desafiava-os a enxergar as singularidades de cada situação concreta e de seus protagonistas, como condição essencial para a produção das mais justas e adequadas respostas judiciais.

Como um humanista completo, José Luciano reconhecia os diferentes significados do trabalho e de seu sistema jurídico regulador. Considerava que, muito além de meio de emancipação destinado ao atendimento de necessidades materiais básicas da classe operária, o trabalho representava autêntico valor imanente à natureza humana, capaz de fortalecer a identidade dos indivíduos e dar sentido às suas vidas, um verdadeiro caminho para o aprendizado, para a realização de vocações, para a socialização. Compreendia também que o Direito do Trabalho, ao disciplinar direitos e deveres de trabalhadores e empregadores, representava o parâmetro ético e democrático de intervenção nessas relações naturalmente assimétricas e conflituosas, no contexto das sociedades estruturadas em bases capitalistas.

Sempre carismático e solidário com todos, especialmente os mais humildes, permanentemente tratados com especial distinção, José Luciano era também um mineiro orgulhoso, um ufanista de sua cidade natal, Pedro Leopoldo. Não se cansava de evocar Guimarães Rosa, lembrando que "as pessoas não morrem, ficam encantadas… a gente morre é para provar que viveu".

Escrevemos estas linhas em homenagem a José Luciano de Castilho Pereira com evidente tristeza. Como ex-servidores do TRT da 10ª Região, aprendemos muito com ele. Depois, quando ingressamos em instituições ligadas ao mundo do trabalho (magistratura e Ministério Público), persistimos aprendendo, mesmo após sua aposentadoria, no contato com José Luciano, ser humano singular.

Ele era também um grande cultor da literatura. Tinha preferência por José Saramago, que o impressionou muito (especialmente o "Ensaio sobre a cegueira"), mas sua maior admiração era por Guimarães Rosa, autor mineiro como ele, que refletiu de modo admirável sobre as principais questões existenciais da nossa época.

Como disse Jorge Luis Borges em uma bela e madura reflexão, "a imortalidade está na memória dos outros e na obra que deixamos". Temos a certeza de que ele vive em muitas memórias e que nos transmitiu uma importante obra. Como declarou Borges naquela mesma ocasião, "cada um de nós é, de alguma forma, todos os homens que morreram antes". A contribuição e o legado de José Luciano de Castilho Pereira às pessoas, ao ofício de julgar e ao mundo do trabalho são potencialmente infinitos. Lembrando de seu estilo de escrita, de seu texto inimitável, invocamos Guimarães Rosa: "Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito".

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