Opinião

Carf: uma nova perspectiva para o futuro

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22 de abril de 2021, 10h33

Ultimamente não tem faltado ocasião em que o Carf seja pauta para variados e abalizados comentários de cunho jurídico nos meios de comunicação escrita, impressa e eletrônica.

Após ser instalado em 2009 [1], sucedendo aos 1º, 2º e 3º Conselhos de Contribuintes, o Carf passou por profundas alterações em sua estrutura e funcionamento, com seguidas [2] mudanças introduzidas no regimento interno, a impactar sua atuação como órgão julgador dos litígios fiscais.

Agora, o Carf encontra-se diante de situações desafiadoras e que tem demandado esforços institucionais para o esclarecimento da sociedade civil, além de ser objeto de manifestações da comunidade jurídica.

Em breve síntese, muito se tem debatido ante: 1) as controvérsias originadas da modificação da proclamação do resultado de julgamentos, nos casos em que se verifica empate na votação, quando não mais é proferido voto de qualidade do presidente de turma, resolvendo-se a controvérsia favoravelmente ao sujeito passivo [3]; e também 2) as repercussões advindas do posicionamento adotado por conselheiros em sessão de julgamentos, na apreciação de caso concreto, pela não aplicação cogente de súmula aprovada pelo Carf [4] ao identificarem particularidades que os fizeram estabelecer o distinguishing em relação a súmula vinculante.

Essas são questões de extraordinária importância, a merecer extenso debate nos meios jurídicos, sem a menor sombra de dúvida.

No entanto, sob outro prisma, com a pretensão de estimular o debate, tenho as seguintes considerações.

Eu me refiro à própria natureza jurídica do Carf, como órgão colegiado integrante da estrutura do Ministério da Economia [5] e que, mesmo sendo vinculado diretamente ao ministro de Estado, assim como a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB), órgão específico singular, desta sofre enorme influência, a despeito da atribuição conferida por lei ao primeiro para apreciar e julgar, em segunda instância, as exigências de tributos e contribuições lançados por autoridade fiscal dos quadros deste último órgão [6].

De se louvar a inestimável atuação do Carf na solução de controvérsias estabelecidas entre o Fisco e os contribuintes, desde a sua criação em fins de 1924, como Conselho de Contribuintes [7]. Não fora a excepcional qualidade dos seus membros, de sólida formação e qualificação profissional a par da dedicação ímpar, do que tenho sido privilegiada testemunha.

A composição do Carf, como sabido, é paritária, integrado por representantes da Fazenda Nacional escolhidos entre auditores fiscais indicados em lista tríplice encaminhada pela RFB [8], recaindo a representação dos contribuintes entre brasileiros com formação superior e registrados em órgão de classe há no mínimo três anos, com notório conhecimento técnico e exercício comprovado na área do Direito Tributário, indicados em lista tríplice pelas confederações representativas de categorias econômicas e centras sindicais [9].

Conquanto a reconhecida qualificação técnica dos seus membros, frequentemente, como antes dito, vem à tona situações controvertidas decorrentes da atuação do Carf.

O ponto que ressalto nesta oportunidade, todavia, tem a ver com a importância da instituição de mecanismos legais e político-administrativos, que levem ao empoderamento do Carf, como instituição autônoma, quiçá dotado de jurisdição.

Como consequência, a sociedade seria beneficiada com maior segurança jurídica (artigo 5º, CF/1988), pela garantia de estabilidade e solidez na orientação e interpretação das normas por meio das decisões prolatadas, tanto em relação as que afastarem quanto as que mantiverem os lançamentos de ofício e, pois, as cobranças de tributos e contribuições, sem as mazelas advindas das situações ao início mencionadas.

Nessa linha de pensamento, a alteração do arcabouço jurídico que levasse à constitucionalização do contencioso administrativo tributário poderia dar novos contornos a atuação do Carf, arrefecendo os questionamentos que hoje se avolumam.

Recente relatório elaborado pelo Núcleo de Tributação do Insper [10] analisa os órgãos de resolução de litígios fiscais em diversos países, apontando interessantes situações, que poderiam igualmente ser aproveitadas pelo Brasil.

É realçado nesse trabalho acadêmico haver previsão para transação de créditos tributários na Alemanha (no que diz respeito a questões de fato), na Itália (nas fases pré e pós-contenciosa), na França (exceto nos casos de repercussão criminal e comprovada má-fé) e nos Estados Unidos (judicial ou extrajudicialmente). Na Argentina foi instituído acordo voluntário conclusivo.

Esse caminho [11] é um avanço que em muito boa hora foi por nós adotado, com a Lei nº 13.988, de 14/4/2020, que dispõe sobre a transação resolutiva de litígios sobre a cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não [12].

É apontada ainda pelo mencionado relatório a existência de medidas de autorregularização pelos contribuintes na Argentina, na Alemanha, na França, na Itália e nos Estados Unidos, previamente ao lançamento de ofício, o que, certamente, se também aqui adotadas seriam de extrema eficácia.

Por outro turno, a arbitragem na solução de litígios tributários encontra amparo em Portugal, na Itália e nos Estados Unidos. 

Aqui entre nós, encontra-se em tramitação no Senado Federal o Projeto de Lei nº 4.257, de 2019, de autoria do senador Antonio Anastasia, que modifica a Lei nº 6.830/80, para instituir a execução fiscal administrativa e a arbitragem tributária.

Quanto à estrutura dos órgãos de julgamento de controvérsias fiscais, o relatório aponta diferenças relevantes comparado ao modelo que há no Brasil. Exemplo é a composição por julgadores com a função de juízes (Alemanha, Portugal, Estados Unidos e Itália) com mandato vitalício (Alemanha e Itália). Outra distinção é o mecanismo de seleção dos candidatos (por indicação do ministro das Finanças ou com a participação do Legislativo e do Executivo).

Vale ressaltar as experiências em alguns desses países, quanto à soberana do contencioso administrativo, cujas decisões não são objeto de revisão judicial, a não ser quando envolverem matéria constitucional.

Certamente esse caminho teria inúmeros percalços que o tornariam de difícil senão inviável concretização no Brasil, pois implicaria em alterar o princípio da inafastabilidade da apreciação pelo Poder Judiciário de qualquer lesão ou ameaça a direito que, em nosso país, adota o modelo de jurisdição una, sempre cabendo à Justiça a decisão final sobre controvérsias entre Fisco vs. contribuintes.

Com efeito, seria necessária proposta de emenda à Constituição Federal para alterar o inciso XXXV, artigo 5º, de forma a que o livre acesso ao Judiciário para apreciação de lesão ou ameaça a direito, admitiria exceção no caso da opção pelo cidadão de submeter-se ao contencioso administrativo para solução de litígios exclusivamente de natureza fiscal, cujas decisões passariam a constituir coisa julgada entre as partes, vale dizer, na essência, atividade jurisdicional. A única exceção seria a de submeter ao crivo do Judiciário tão somente decisão do contencioso administrativo que tratasse de matéria constitucional.

Há, contudo, uma alternativa cuja implementação viabilizaria o fortalecimento do Carf como órgão julgador dos litígios fiscais.

Refiro-me à transformação do Carf em autarquia vinculada [13] ao Ministério da Economia, para exercer as atribuições que hoje lhe são conferidas, preservada a sua missão, os seus objetivos e a sua visão de futuro [14].

O novo órgão seria integrado por membros indicados entre os cidadãos pelo chefe do Poder Executivo, sendo previamente aprovados, por voto secreto, após arguição pública, pelo Senado Federal [15], de notório saber jurídico e reputação ilibada, mantidos todos os demais requisitos hoje estipulados [16]. A fixação de mandato fixo, com uma recondução, além de dedicação exclusiva, assegurada remuneração compatível com a natureza, responsabilidade e complexidade do cargo [17], além da estipulação de quarentena, na hipótese de término de mandato seriam por certo condições e requisitos para a investidura no cargo.

A perda de mandato de qualquer dos membros somente poderia ocorrer em virtude de decisão do Senado Federal, por provocação do presidente da República ou ainda em razão de condenação penal irrecorrível ou de processo disciplinar, nos termos das Leis nº 8.112/90 [18] e nº 8.249/92 [19]

A autonomia político-administrativa do Carf ante a aqui preconizada natureza jurídica de autarquia federal seria tanto mais evidenciada por não se submeter a controle hierárquico, embora sujeita, por evidente, aos controles administrativos e ao cumprimento dos objetivos que justificaram a sua instituição. E com orçamento próprio [20].

Com essa configuração legal, poderíamos almejar maior protagonismo do Carf, fazendo com que suas decisões irradiem efeitos perante toda a sociedade, pela acurácia e solidez dos seus fundamentos, trazendo segurança jurídica.

A par disso, outra importante consequência adviria da diminuição da litigiosidade exacerbada que hoje predomina no país, a afogar o Judiciário, pela esperada maior aceitação dos contribuintes das decisões proferidas pelo órgão especializado nas questões fiscais [21]. A jurisprudência construída, ademais, serviria de guia aos intérpretes e operadores do Direito, e às súmulas editadas atribuir-se-ia efeito vinculante, de cumprimento obrigatório pelas instâncias julgadoras de primeira instância e, porque também não, pela fiscalização, da RFB.

É uma realidade cada vez mais realçada a complexidade do sistema tributário brasileiro, com o extraordinário volume de atos legais e infralegais, que assoberbam os contribuintes. Esses não dão conta de acompanhar tamanha produção legiferante em toda a sua complexidade, extensão e alterações frequentes.

Sendo assim, propiciar as condições necessárias para alçar o Carf a patamares os mais elevados, como órgão de última instância administrativa dos litígios tributários, sem dúvida reforçaria maior previsibilidade às relações Fisco vs. contribuintes, com impacto positivo na melhoria do ambiente de negócios, os quais teriam maior fluidez, gerando benefícios à economia do país, ante a certeza e segurança jurídica na interpretação e aplicação das normas tributárias.

Nesse cenário acima idealizado o profícuo e substancioso debate instaurado acerca da constitucionalidade ou não da norma legal que extingue o voto de qualidade poderia ser resolvido bastando para tanto que o Carf, na configuração que aqui se preconiza, contasse com número ímpar de membros em cada turma julgadora.

Ao presidente de turma caberia o voto de qualidade nas decisões, quando o empate decorresse da ausência de membro em virtude de suspeição ou impedimento.

E, em relação à aplicação de súmulas, sem dúvida que o melhor cenário é o que acolha o livre discernimento de cada um dos membros do colegiado para justificar e fazer o distinguihing, deixando expresso no voto.

São pretensiosas sugestões lançadas unicamente para adicionar ao debate instaurado sobre o Carf proposta em outra direção, mas que, igualmente a todas as demais, contribua para o democrático avanço de nossas instituições.

 


[1] Portaria MF nº 41, de 17/02/2009

[2] Portarias MF nºs. 256/2009, 446/2009, 586/2010, 343/2015, 39/2016, 152/2016, 169/2016, 329/2017 e 153/2018.

[3] artigo28, da Lei nº 13.988/2020, que acrescentou o artigo 19-E à Lei nº 10.522/2002, cuja constitucionalidade é objeto das ADI nºs 6.399, 6.403 e 6.415, em pauta no Plenário virtual do STF.

[4] [4] RICarf, Anexo II, artigos 45, inciso VI e 72.

[5] Decreto nº 9.745/2019.

[6] Decreto nº 70.235/72, artigo25.

[7] "Conselho Administrativo de Recursos Fiscais — 85 anos de imparcialidade na solução dos litígios fiscais", Rio, Capivara, 2010, Martins, Ana Luísa.

[8] RICarf, Anexo II, artigo 29, inciso I.

[9] RICarf, Anexo II, artigo 29

[10] "Contencioso administrativo tributário federal. Uma análise comparativa entre Brasil e sete países": https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2021/03/Contencioso-administrativo-tribut%C3%A1rio-federal_Uma-an%C3%A1lise-comparativa-entre-Brasil-e-sete-pa%C3%ADses.pdf, acesso em 17/4/2021.

[11] artigo171, do CTN: "A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e consequente extinção de crédito tributário".

[12] A PGFN editou as Portarias nº 9.917/2020, 9.924/2020, além do Edital nº.3/2020, quanto à dívida ativa da União.

[13] CF/88, artigo 37, inciso XIX.

[14] Carf: Missão – assegurar à sociedade imparcialidade e celeridade na solução de litígios tributários; Objetivos – contribuir para a segurança jurídica na área tributária, para o aperfeiçoamento da legislação tributária e para reduzir os litígios judiciais e administrativos. Visão de Futuro — ser reconhecido pela excelência no julgamento dos litígios tributários.

[15] CF/88, artigo 52, inciso III, alínea "f"

[16] RICarf, artigo 29, inciso II.

[17] Por evidente, atendido o disposto no artigo 37, inciso XI, da CF/88.

[18] Lei nº 8.112/90 dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.

[19] Lei nº 8.249/92 dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, função na administração pública direta ou fundacional.

[20] CF/88, artigo 165, § 5º. Inciso I.

[21] Filio-me à doutrina que acolhe o ingresso em Juízo pelo contribuinte contra a decisão final, por força do artigo 5º, inciso XXXV, da CF/88, sendo vedado ao Fisco, contudo, por não lhe cabe questionar a decisão final administrativa proferida por Órgão integrante da própria Administração, mesmo que indireta, que, de outra forma, torná-lo-ia absolutamente inútil.

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