Opinião

LSN: Lei do Silêncio Nacional? (Parte 2)

Autor

  • João Linhares

    é promotor de Justiça em Mato Grosso do Sul; mestre em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona-Espanha; especialista em Direito Constitucional e Direitos Fundamentais pela PUC-RJ.

21 de abril de 2021, 16h14

Continuação da Parte 1

Segundo dados da Polícia Federal, obtidos através da Lei de Acesso à Informação (LAI), até o fim de 2020, considerando-se um interlúdio de 18 meses, foram abertos 41 inquéritos com suporte na LSN, dos quais 26 em 2019 e 15 no primeiro semestre de 2020. De janeiro de 2000 até 7 de junho de 2020, o Estado brasileiro instaurou 155 procedimentos para investigar possíveis violações dessa lei. No corrente ano de 2021, a normativa foi utilizada pelo menos 19 vezes. A intensa polarização política intensificou o seu uso, máxime contra opositores do atual governo.

Essa atmosfera termina por refletir — ou com força para fazê-lo pela intimidação — numa autocensura ou num "efeito resfriador" (chilling effect) da informação, da opinião e até mesmo da produção intelectual, cultural e artística, por conta do receio de condenações criminais por calúnia e/ou difamação contempladas no artigo 26 da LSN.

Há manifesto prejuízo ao pluralismo e ao "livre mercado de ideias", que, na dicção da doutrina amparada na verve do então juiz da Suprema Corte dos EUA Oliver Wendell Holmes, "marketplace of ideas", desemboca no comprometimento de tomada das melhores decisões pela coletividade.

Deveras, se é verdade que não há democracia sem pluralidade (espaço reservado para a diferença e para o conflito típico das sociedades abertas e difusas), e que esta, por sua vez, demanda o diálogo das pessoas consigo próprias e com os demais componentes do tecido social, num intercâmbio permanente de múltiplas e concorrentes ideologias e concepções, donde resulta, desta arte, um ambiente propício à tolerância, ao desenvolvimento e ao progresso, bem assim à formação da identidade individual e coletiva e à diversidade política, não se sustenta a exegese que, com fulcro no artigo 26 da LSN, cria empeço a contumélias aos chefes dos poderes.

Em verdade, a instauração de inquéritos policiais por crime contra a segurança nacional contra a honra de tais autoridades revela-se como forma de nítida retaliação aos críticos deles e de inaceitável censura, pois apta a gerar autocensura por intimidação/receio, travestida de pretensa legalidade.

Sublinhe-se que o STF, na pena do ministro Celso de Mello, em fevereiro de 2014, externou a sobrevalorização da liberdade de expressão sobre os direitos da personalidade de pessoas públicas, notórias ou que se envolvam em fatos de interesse coletivo, no Recurso Extraordinário com Agravo 722.744-DF, verbis:

"A crítica jornalística, desse modo, traduz direito impregnado de qualificação constitucional, plenamente oponível aos que exercem qualquer atividade de interesse da coletividade em geral, pois o interesse social, que legitima o direito de criticar, sobrepõe-se a eventuais suscetibilidades que possam revelar as figuras públicas, independentemente de ostentarem qualquer grau de autoridade".

Na mesma esteira, colhe-se o acórdão prolatado pelo Excelso Pretório no bojo da ADPF 4815, que conferiu interpretação conforme aos artigos 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para declarar inexigível autorização para obras de cariz biográfico.

Some-se o teor da ADPF nº 187, proposta pela Procuradoria-Geral da República, em cujo cerne vindicava-se a interpretação conforme do artigo 287 do Código Penal; o tribunal constitucional julgou, por unanimidade, procedente a arguição suscitada para liberar as chamadas "marchas da maconha", ou a defesa de legalização das drogas ou de qualquer entorpecente. O fundamento foi a liberdade de reunião e de expressão do pensamento.

Nesse fanal, apesar de tutelar os direitos da personalidade no mesmo rol em que insculpiu o direito à liberdade de expressão, a Lei Magna proibiu veementemente a censura prévia (artigo 5º, incisos, IV, IX, XIV, c.c artigo 220, §§1º e 2º), estatuindo o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização e crimes (artigo 5º, inciso X, e artigo 53, a contrario sensu).

Logo, não se está aqui a afirmar que o direito à honra, à imagem, à intimidade e à privacidade deva ser esquecido ou relegado às calendas. Sequer se está a expender que para figuras públicas inexista essa franquia constitucional. O que se está a dizer é que admitir a aplicação da Lei de Segurança Nacional contra críticos do governo ou dos chefes dos poderes, com espeque no mencionado artigo 26 (o que qualifica a increpação e a torna ainda mais preocupante), significa apartar a sociedade de fatos que lhe são de nítido interesse e que tão só algumas poucas pessoas tenham conhecimento deles, vulnerando o direito à transparência e o princípio da máxima divulgação (artigo 5º, inciso XIV, CF), bem como interditando o debate plural e público entre diversas concepções de pensamentos e de ideologias.

A padronização comportamental, de pensamento ou de ideologias não encontra fôlego numa democracia, pois é típica de Estados autocráticos, onde não há pluralismo e espaço à diferença.

Nessa tessitura, a abrangência do artigo 26 da LSN dificulta o efetivo controle democrático do governo pelo povo e retrai as críticas ao governo, limitando o diálogo público, buscando uma padronização da crítica/pensamento para que seja "chapa-branca", em face da possibilidade de aplicação de severas medidas penais a quem ousar destoar do "parâmetro" estabelecido unilateralmente pelo governo de plantão.

E é da essência democrática que, como bem assinalou George Orwell, "se liberdade significa alguma coisa, é sobretudo o direito de dizer às pessoas algo que elas não queiram ouvir".

Não se mostra compatível com a CF o citado artigo 26 da LSN, haja vista que discrepa flagrantemente da garantia da liberdade de expressão, especialmente porquanto a crítica, mesmo que desairosa e contundente, não vulnera a segurança nacional e tampouco coloca em xeque qualquer instituição de Estado.

Não se pode olvidar, nesse prisma, que para a incidência da LSN devem coexistir dois requisitos de natureza objetiva e subjetiva imprescindíveis, a saber: 1) motivação e escopo político do agent; 2) lesão real ou potencial à soberania nacional, ao regime representativo e democrático, à federação ou à integridade territorial [1]. Sem isso, não há ensanchas à invocação de delitos desse jaez. E, longe de qualquer dúvida, críticas corrosivas ou verrinas aos chefes dos poderes não colocam em risco, sequer no plano abstrato, quaisquer desses objetos jurídicos tutelados pela norma em tela.

Ademais, o chefe do poder não é o poder em si e em com este não se confunde; deve prestar contas à sociedade, que pode censurá-lo e apontar, com toda a liberdade, seus erros e acertos, de forma lhana ou com veemência.

A própria Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), intérprete derradeira da Convenção Americana de Direitos Humanos/Pacto de São José da Costa Rica, em caso paradigmático (Álvarez Ramos vs. Venezuela [2] — 30/8/2019), enfrentou questão similar e cujos argumentos, feitas as devidas alterações, calham à fiveleta, verbis:

"(…) 113. En esa misma línea, en peritaje que consta en autos123 se señaló que se necesita la concurrencia de al menos tres elementos para que una determinada nota o información haga parte del debate público, a saber: i) el elemento subjetivo, es decir, que la persona sea funcionaria pública en la época relacionada con la denuncia realizada por medios públicos; ii) el elemento funcional, es decir, que la persona haya ejercido como funcionario en los hechos relacionados, y iii) el elemento material, es decir, que el tema tratado sea de relevancia pública. En el presente caso, la Corte encuentra acreditados estos tres elementos porque la nota i) hace referencia de manera textual a la administración del señor Lara al frente de la Asamblea Nacional; ii) se refiere al ejercicio de las funciones del señor Lara como funcionario público, y iii) el manejo o gestión de dineros o recursos públicos de la Caja de Ahorros y Previsión Social de los trabajadores de la Asamblea Nacional es un tema de interés público. 114. Por otro lado, la jurisprudencia de este Tribunal ha establecido que en el marco del debate sobre temas de interés público, no solo se protege la emisión de expresiones inofensivas o bien recibidas por la opinión pública, sino también la de aquellas que chocan, irritan o inquietan a los funcionarios públicos o a un sector cualquiera de la población" (grifos do autor).

Cumpre anotar outrossim que a Corte IDH preceituou, no acórdão acima, no que atine ao tema:

"119. El artículo 13.2 de la Convención Americana señala que el ejercicio del derecho a la libertad de expresión no puede estar sujeto a censura previa sino a responsabilidades ulteriores. Ahora bien, este precepto no establece la naturaleza de la responsabilidad exigible, pero la jurisprudencia de este Tribunal ha señalado que la persecución penal es la medida más restrictiva a la libertad de expresión, por lo tanto su uso en una sociedad democrática debe ser excepcional y reservarse para aquellas eventualidades en las cuales sea estrictamente necesaria para proteger los bienes jurídicos fundamentales de los ataques que los dañen o los pongan en peligro, pues lo contrario supondría un uso abusivo del poder punitivo del Estado.
(…) 121. Se entiende que en el caso de un discurso protegido por su interés público, como son los referidos a conductas de funcionarios públicos en el ejercicio de sus funciones, la respuesta punitiva del Estado mediante el derecho penal no es convencionalmente procedente para proteger el honor del funcionario.
122. En efecto, el uso de la ley penal por difundir noticias de esta naturaleza, produciría directa o indirectamente, un amedrentamiento que, en definitiva, limitaría la libertad de expresión e impediría someter al escrutinio público conductas que infrinjan el ordenamiento jurídico, como, por ejemplo, hechos de corrupción, abusos de autoridad, etc. En definitiva, lo anterior debilitaría el control público sobre los poderes del Estado, con notorios perjuicios al pluralismo democrático"
(grifos do autor).

O aludido tribunal internacional ainda enfrentou a matéria (defesa da honra de servidores públicos e uso do direito penal contra críticos) nos casos Kimel vs. Argentina e Lagos del Campo vs Peru, sempre chegando praticamente a idêntica conclusão.

Noutro bordo, apenas para que não fique sem menção, insta obtemperar que a requisição ou instauração de inquérito policial contra opositores do governo por censuras a ele, com adminículo no artigo 26 da LSN, pode configurar, em tese, crime de abuso de autoridade, incrustado no artigo 27 da Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019.

Por conseguinte, inexiste compatibilidade vertical do artigo 26 da LSN com a Carta da República, por discrepar da liberdade de pensamento, de expressão e do pluralismo político e democrático, assim também por obstar a participação da sociedade no controle governamental, e porque não há vulneração alguma à segurança nacional nas críticas endereçadas aos chefes dos poderes.

A honorabilidade de tais agentes públicos persiste sendo objeto de resguardo, mas, preferencialmente, na seara cível e somente dando margem à invocação do Direito Penal (crimes contra a honra previstos no Código Penal), quando absoluta e excepcionalmente necessário, conforme as balizas já alhures delineadas.

Destarte, se atendidas tais balizas, penso que poderemos romper essa bolha de cegueira deliberada dos que, "vendo, não veem", como expôs Saramago, para sermos "o povo que viu e que vê. O povo que vigia e que espera", aquela gente que cultiva os ideais imorredouros dos inconfidentes, que não podem ser jamais silenciados em nossa memória, cujo exemplo "pelos séculos continuará clamando na carne dos netos de nossos netos, cobrando de cada qual sua dignidade, seu amor à liberdade" [3].

Abaixo à Lei do Silêncio Nacional!


 

[1] Vide no STF: RC 1472, Tribunal Pleno, Rel. Minº Dias Toffoli, Rev. Ministro Luiz Fux, unânime, j. 25/05/2016 e RC 1473, Primeira Turma, Rel. Minº Luiz Fux, j. 14/11/2017.

[3] RIBEIRO, Darcy. Ob. cit., p. 116.

Autores

  • Brave

    é promotor de Justiça em MS desde dezembro de 2000, especialista em Controle de Constitucionalidade e Direitos Fundamentais pela PUC-RJ e mestre em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona (Espanha). Eleito, por unanimidade, integrante da Academia Maçônica de Letras de MS, é professor no curso de pós-graduação em Segurança Pública e Fronteiras da Universidade Estadual de MS.

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