Garantias do Consumo

Vulnerabilidade estrutural e fissuras nas políticas de promoção aos consumidores

Autores

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

  • Clarissa Costa de Lima

    é juíza de Direito do TJ-RS doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul especialista em Direito Europeu dos Contratos pela Universidade de Savoie ex-presidente do Brasilcon (2012-2014) diretora adjunta da Revista de Direito do Consumidor e vice-presidente do Brasilcon (2020-2022).

  • Guilherme Magalhães Martins

    é professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ professor permanente do programa de doutorado em Direito Instituições e Negócios da UFF pós-doutor em Direito da USP doutor e mestre em Direito Civil pela Uerj procurador de Justiça no MP-RJ segundo vice-presidente do Instituto Brasilcon e diretor do Iberc.

  • Sophia Martini Vial

    é doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul assessora parlamentar no Distrito Federal e diretora secretária-geral do Brasilcon.

21 de abril de 2021, 11h26

Entre tantos instrumentos para consolidação de direitos fundamentais, as políticas públicas detêm funcionalização significativa, especialmente porque, sendo geridas pela atividade estatal, ainda prescindem da ampla participação da sociedade civil organizada e dos cidadãos para alcançar efeitos úteis e justos previstos nas diretrizes fixadas na legalidade constitucional. Eis a vertente democrática, diretiva e propositiva das políticas públicas e, claramente, vinculada às "desigualdades" [1].

O tema da "desigualdade" desafia inúmeras análises que variam em conteúdo, pesquisa e técnicas de abordagem. Em outros núcleos que não relacionados ao Direito, as perspectivas são altamente relevantes. No âmbito da filosofia uma das bases possíveis é a associação da desigualdade à injustiça. Neste ponto, célebre é a passagem aristotélica pela qual se anuncia que a justiça é uma igualdade e a injustiça uma desigualdade [2]. Na economia, há parte significativa da investigação científica que informa dicotomia entre desigualdades e concentrações, salientando a assimetria entre trabalho e capital [3]. Já a sociologia, por sua vez e com arrimo na mobilidade social, enfatiza o surgimento de grupos étnicos minoritários e menos privilegiados [4].

No Direito ciência que nos ocupa , a desigualdade é matéria de sensível atenção. Nisso importa asseverar que a desigualdade deixou de ser objeto compartilhado somente entre Filosofia, Economia e Sociologia (como visto), encontrando pertencialidade perante o sistema jurídico. Vale dizer que não se trata de "abstração meramente ideológica": ao contrário, está inclusa entre os elementos polifacéticos [5] que compõem o constitucionalismo cooperativo [6].

Configurando obstáculo que atinge o livre desenvolvimento da personalidade, a desigualdade acaba por viabilizar ao sistema jurídico nova "estratégia metodológica" que não se afina à insuficiente "conformação". Cuida-se da adoção de método "dever-fazer", porquanto dá-se corpo à racionalidade teleológica nos lindes jurídicos para transformação social [7].

Observe que entre os fins constitucionais esfera jurídica adequada para atuação das políticas públicas (CF, artigo 3º) — destacam-se: 1) implementação de sociedade triplamente qualificada (livre, justa e solidária); 2) garantia do desenvolvimento nacional; 3) erradicação da pobreza e da marginalização; 4) promoção do bem de todos, sem quaisquer discriminações (quanto à origem, raça, sexo, cor e idade); 5) bem como a óbvia e necessária ‘redução das desigualdades’.

Via de consequência, sedia justamente nos objetivos da República Federativa do Brasil a "vulnerabilidade" (previamente contida nas alocações "discriminação" e "redução das desigualdades"). Não que a vulnerabilidade incorpore totalmente os conceitos de desigualdade (potencialização de injustiças mediante comparação entre sujeitos) ou discriminação (adoção de atitude preconceituosa), mas soma-se como importante figura de evitabilidade de ignomínias.

A vulnerabilidade, enquanto figura jurídica, é vocábulo largamente utilizado nas declarações e convenções internacionais de direitos humanos [8]. Incialmente internalizada no Brasil através do Código de Defesa do Consumidor (artigo 4º, inciso I) e, posteriormente, em demais legislações de promoção de agentes constitucionalmente identificados, a vulnerabilidade tomou corpo na jurisprudência [9] (law in action), cumprindo satisfatoriamente duas funções normativas: regra (enquanto presunção normativa[10] e principiológica (enquanto dimensão de peso[11].

Conquanto é na dogmática (law in books) que se observa a vulnerabilidade como ponto específico de desigualdade ou discriminação, sem que haja a necessidade de cotejos, comparações e confrontos. Em obra premiada, Cláudia Lima Marques e Bruno Miragem após abordarem a "desigualdade" ensinam: "Já a vulnerabilidade é filha deste princípio, mas noção flexível e não consolidada, com traços de subjetividade que a caracterizam: a vulnerabilidade não necessita sempre de uma comparação entre situações e sujeitos" [12].

Pois bem. Situada a vulnerabilidade como parte específica (e diferenciada) da desigualdade e também anotado que entre os escopos da República federativa se encontra o objetivo constitucional de "superação das desigualdades" (nelas incluídas as vulnerabilidades), vertem-se nas políticas públicas (policies) os instrumentos essenciais para imunização das falhas setoriais.

As políticas públicas, como instrumentos de ação do Estado e com a participação da sociedade, podem ser definidas como prestações positivas estatais de caráter vinculativo (deveres fundamentais) e fragmentadas em várias etapas de concreção para atendimento de necessidades, desigualdades e lesividades em conjunto ordenado por diversos elementos (pessoas, instituições, recursos orçamentários), contando, para tanto, com leis, decretos, contratos, atos e atividades administrativas [13].

Nesse ponto, há outra observação a ser ponderada: como as políticas públicas versam sobre imunizações às falhas de setor ou desigualdades sociais e regionais, que refletem diretamente em direitos fundamentais (CF, artigo 5º, inciso XXXII), não parece correto que possam ser obstadas, paralisadas ou suspensas. Há aqui certo limite que advém da cláusula de proibição de retrocesso [14].

Para as políticas públicas de promoção aos consumidores, entretanto, os retrocessos saltam aos olhos, são visíveis em todos os aspectos [15]. A efetividade de direitos conquistados pelos consumidores com a vigência de trinta anos do Código de Defesa do Consumidor aos poucos vem sendo desmontada, esvaziada, depauperada. Passo por passo decretos, atos e atividades desenvolvidas pelas instâncias executivas federais vêm inserindo temas totalmente inconsistentes e inadequados à promoção dos consumidores, inserindo em grande parte pautas muito mais afinadas com o mercado do que com os vulneráveis.

Define-se como racismo estrutural aquele preconceito aceito, institucionalizado que encara as desigualdades entre raças como situação corriqueira, em que decorre a evidente naturalidade da subserviência de grupos em desvantagem frente à hegemonia daqueles que ostentam poderes, especialmente decisórios [16].

O conceito acima tem grande valia para as "políticas públicas" hoje no Brasil que potencializam o desmantelamento, a olhos nus, de direitos, interesses e instrumentos outrora constituídos com muito sacrifício. No que respeita a proteção ao consumidor é a clara demonstração deste novo tipo de vulnerabilidade: a estrutural. Nela não há compromisso com a superação das falhas de mercado; há clara aceitação de imposições e mecanismos adotados pelas grandes corporações; e, passa a ser normal a adoção de discursos e orientações oriundas do poder persuasivo dos empresários.

Aproxima-se, sem medo de errar, o "estado de coisas inconstitucional" nos direitos dos consumidores. Mobilizar e resistir é a solução.

 


[1] Canotilho, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, p. 464. Na assertiva: “O bloco constitucional dirigente não visa só (como se deduz logo da sua adjectivação) constituir um limite à direção política. A sua função primordial é bem outra: fornecer um impulso directivo material permanente e consagrar uma exigência de actuação”.

[2] Aristóteles. Ética a Nicômaco, Liv. I, Cap. III

[3] PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Trad. Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, p. 239. Deduz: “Na prática, a primeira regularidade observada quando se busca medir a desigualdade das rendas é que a desigualdade do capital é sempre mais forte do que do trabalho. A distribuição da propriedade do capital e das rendas que dele provêm é sistemicamente mais concentrada do que a distribuição das rendas do trabalho”.

[4] GIDDENS, Anthony. Sociologia. 5ª ed. Lisboa: 2007, p. 299. Avança: “o termo ‘subclassse’ é usado muitas vezes para descrever o segmento da população localizado no fundo da estrutura de classes. Os membros da subclasse têm níveis de vida significamente mais baixos que a maioria das pessoas na sociedade”.

[5] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 44.

[6] HÄRBELE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Trad. Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

[7] PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 199. Sobre a estratégia de transformação anota “um defeito dos juristas, que são quase sempre homens do passado e quase nunca homens do futuro” […] “A normatividade constitui caráter fundamental da juridicidade e não somente o dever-ser, mas também o dever-fazer está presente na Constituição, como em outras regras que compõe o ordenamento”.

[8] Ver por todas a Declaração e Programa de Ação de Viena. Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de 1993. Precisamente na Seção I, parágrafo 24. Verbis: “Deve ser dada grande importância à promoção e à proteção dos Direitos Humanos de pessoas pertencentes a grupos que se tenham tornado vulneráveis, incluindo os trabalhadores migrantes, à eliminação de todas as formas de discriminação contra eles, bem como ao reforço e a uma mais efetiva aplicação dos instrumentos existentes em matéria de Direitos Humanos. Os Estados têm uma obrigação de adotar e manter medidas adequadas a nível nacional, sobretudo nos domínios da educação, da saúde e da assistência social, com vista à promoção e proteção dos direitos das pessoas pertencentes a sectores vulneráveis das suas populações, e a garantir a participação das que, de entre elas, se mostrem interessadas em encontrar uma solução para os seus próprios problemas”.

[9] TJPR. AC – 1461876-5. Apelação cível. Empréstimo bancário. Cobrança de forma diversa da pactuada. Desconto indevido de valores sobre proventos de aposentadoria. Pessoa idosa. Condição de vulnerabilidade. Danos morais. Configuração. Valor da indenização. Critérios doutrinários e jurisprudenciais. Incidência de correção monetária e acréscimo de juros moratórios. Sucumbência a cargo da instituição financeira. Honorários advocatícios. Fixação. Recurso provido. 1. Os descontos indevidos em proventos de aposentadoria trouxeram abalo psicológico negativo à mutuária, compatível com a ofensa moral, tanto mais por se tratar de pessoa idosa, cuja condição de vulnerabilidade se reconhece. 2. Ao fixar o valor da indenização por danos morais cabe considerar as circunstâncias do caso, o alcance da ofensa e a capacidade econômica dos envolvidos, sem olvidar o caráter pedagógico- sancionador de futuros desvios da condenação. 3. Em hipótese de responsabilidade civil contratual, os juros de mora incidem desde a data da citação, e a correção monetária, a partir da data do arbitramento da indenização. 4. Diante do êxito total da autora, responderá o réu, integralmente pelo pagamento das custas, despesas processuais e honorários advocatícios, fixados nesta oportunidade.

[10] LOPEZ, Teresa Ancona. A presunção no direito, especialmente no direito civil. In Doutrinas Essenciais de Direito Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 1.323-1.345.

[11] DWORKIN, R. Taking Rights Seriously, Harvard University Press, p. 26.

[12] O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 120. E continuam: “Poderíamos afirmar, assim que a vulnerabilidade é mais um estado da pessoa, um estado inerente de risco, ou um sinal de confrontação excessiva de interesses identificado no mercado, é uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação”.

[13] Ver por todos: BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2013.

[14] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 172. Explica: “A progressividade dos direitos econômicos, sociais e culturais proíbe o retrocesso ou a redução de políticas voltadas à garantia de tais direitos”.

[15] Busca de meios alternativos para solução de conflito baseados em modelos sem deveres de proteção (arbitragem, ODR etc.). Alteração do Decreto do SAC. Instituição do Colégio de Ouvidores. Federalização do CNDC. Afora que a pandemia demonstrou o mais sórdido: defesa das companhias aéreas e das empresas de eventos culturais em detrimento da promoção econômica do consumidor.

[16] Ver por todos: ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento; Justificando, 2018.

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    é mestre e doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, promotor de Justiça em Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

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    é doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, juíza de Direito em Porto Alegre, ex-presidente e atual primeira vice-presidente do Brasilcon.

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    é promotor de Justiça titular da 5ª Promotoria de Tutela Coletiva do Consumidor e do Contribuinte da Capital – Rio de Janeiro, professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito – Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor permanente do Programa de Doutorado em Direito, Instituições e Negócios da Universidade Federal Fluminense, doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ, segundo vice-presidente do Instituto Brasilcon e diretor do Iberc.

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    é assessora legislativa do Senado Federal, doutora em Direito pela UFRGS, ex-presidente da Associação Brasileira de Procons e ex-diretora-executiva do Procon Municipal de Porto Alegre.

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