Opinião

Projeto do novo Código de Processo Penal é enorme retrocesso no combate ao crime

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

21 de abril de 2021, 6h35

O Projeto de Lei 8.045, de 2010, do Senado Federal (substitutivo), que tramita na Câmara dos Deputados e tem como relator o deputado federal João Campos, não é apenas ruim, é medonho do ponto de vista da apuração e punição de infrações penais. Ele dificulta sobremaneira a persecução penal, o que levará ainda mais ao incremento da impunidade no Brasil, notadamente dos crimes cometidos por organizações criminosas e do colarinho branco.

Vou dar apenas alguns exemplos da absurdez do projeto, que parece feito por encomenda por aqueles que não pretendem ver os mais poderosos criminosos condenados e sequer investigados.

Pela legislação em vigor, não há hierarquia entre as diversas espécies de prova. Não é sua natureza (prova direta ou indireta) que vai influir na convicção do magistrado. É a qualidade da prova, que poderá ou não convencer o juiz sobre a reconstrução histórica dos fatos, que é o seu objeto.

O projeto impede a condenação apenas com prova indiciária (artigo 197, §§2º e 3º), contrariando a doutrina e jurisprudência amplamente majoritárias, inclusive do Supremo Tribunal Federal.

No "mensalão" e na "lava jato", que apuraram crimes de suma complexidade e cometidos por organizações criminosas bem estruturadas, muitas vezes não foi possível a obtenção de prova direta. Várias condenações, mantidas pelos tribunais, foram baseadas apenas em prova indiciária, vez que impossível a apuração dos fatos por meio de prova direta.

Sem o emprego da prova indiciária, seriam pouquíssimas as condenações por crimes do colarinho branco praticados por grandes empresários e agentes políticos, notadamente lavagem de dinheiro, corrupção ativa e passiva, associação e organização criminosa.

Costuma-se dizer que os indícios não são provas, pois baseados em probabilidades, e não em certeza.

Isso não é verdade. Os indícios estão previstos no ordenamento processual objetivo no capítulo que trata justamente das provas.

O artigo 239 do Código de Processo Penal define a prova indiciária:

"Artigo 239— Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias".

Também há previsão do que seja indício e os requisitos para sua validade e emprego no Código de Processo Penal Militar:

"Artigo 382 — Indício é a circunstância ou fato conhecido e provado, de que se induz a existência de outra circunstância ou fato, de que não se tem prova.
Artigo 383 — Para que o indício constitua prova, é necessário: a) que a  circunstância ou fato indicante tenha relação de causalidade, próxima ou remota, com a circunstância ou fato indicado; b) que a circunstância ou fato coincida com a prova resultante de outro ou outros indícios, ou com as provas diretas colhidas no processo".

Não obstante o Código de Processo Penal Militar, por ser lei especial, não poder ser empregado para os crimes comuns, traz parâmetros para o emprego dos indícios como prova.

Indícios são fatos secundários, conhecidos e provados, relacionados com o fato principal, que autorize com o emprego de processo dedutivo/indutivo chegar-se à conclusão sobre algo.

Enquanto a prova direta se refere aos fatos a serem provados, ao objeto da prova, a prova indireta ou indiciária se refere a outros fatos próximos ou remotos ao indicado, que permitem por meio de processo lógico (indução e dedução) chegar ao objeto da prova.

Isoladamente, em regra, o indício não é uma prova plena. Mas vários indícios apontando sempre em uma mesma direção podem demonstrar a ocorrência de um fato ou circunstância.

Excepcionalmente, um único indício pode levar a uma conclusão correta, quando possuir especial força probatória.

Na prova indiciária são coletados diversos fatos convergentes e fortes que, após o emprego da dedução e da indução, podem trazer a necessária certeza sobre a ocorrência de um fato até então processualmente desconhecido (vide: "Prova indiciária ajuda a combater o crime organizado" — ConJur — 30/10/2016).

A respeito dos indícios como prova plena para a condenação, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

"Indícios e presunções, analisados à luz do princípio do livre convencimento, quando fortes, seguros, indutivos e não contrariados por contraindícios ou por prova direta, podem autorizar o juízo de culpa do agente" (STF: AP 481, Relator ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 8/9/2011).

Com efeito, não aceitar indícios como provas aptas a condenar, exigindo a corroboração por provas diretas, afetará sensivelmente o combate a diversas espécies de crimes, a maioria deles de suma gravidade, incluindo corrupção, lavagem de dinheiro, associação e organização criminosa e até mesmo homicídios, que, em muitas oportunidades, não é possível a obtenção de prova direta pelos mais variados motivos.

Mas não é só.

Atualmente, para o deferimento de medidas cautelares probatórias em geral, como buscas e apreensões, quebras de sigilo e interceptação telefônica, bastam fundadas razões ou indícios razoáveis de autoria ou participação, a depender de sua espécie. Pelo projeto, serão necessários indícios suficientes da autoria ou de que alguém oculta objetos que interessem a um dado processo (artigo 264; artigo 275, inciso I; artigo 283, inciso II). Ora, essas medidas existem justamente para que se busquem indícios suficientes de autoria e prova da existência de um crime. A exigir indícios suficientes de autoria ou participação em dado delito (quebras de sigilo e interceptação telefônica), ou de que alguém oculta provas em sua residência ou outro local privado (busca e apreensão) para o deferimento da medida cautelar, inúmeros crimes deixarão de ser apurados e haverá uma enorme brecha para que sejam alegadas nulidades.

Havendo os indícios suficientes de autoria e a prova da existência do crime, a denúncia já pode ser oferecida e recebida, não sendo lógica a exigência desses requisitos para o deferimento de uma cautelar probatória. Tal proceder praticamente obstará o deferimento dessas cautelares e a prova não poderá ser obtida, e a solução, muitas vezes, será o arquivamento do procedimento investigatório.

Aliás, nesse quesito o projeto passa a consagrar a certeza da autoria e da materialidade para que a denúncia seja recebida. Assim, o juízo de certeza, que sempre foi afeto à sentença, passa a ocorrer no recebimento da denúncia, impedindo que a acusação produza prova no contraditório, a fim de demonstrar a prática do delito. O projeto diz expressamente que, na dúvida, a denúncia será rejeitada (artigo 390, §1º).

Outra pérola a demonstrar o não conhecimento da realidade brasileira é a exigência de que, para o reconhecimento pessoal, sejam apresentadas àquele que irá realizá-lo, de forma obrigatória, quatro pessoas com alguma semelhança física com o suspeito, inclusive na fase judicial (artigo 231, inciso II). Atualmente, este proceder é realizado, desde que possível, uma vez que na imensa maioria das vezes não há pessoas disponíveis para serem apresentadas para o reconhecimento, notadamente com alguma semelhança (artigo 226, inciso II, do CPP). Imaginem um flagrante de roubo e durante a madrugada. Indago: onde o delegado de polícia irá arrumar quatro pessoas com essas características para serem apresentadas? Lembro que a norma atual, além de exigir o procedimento, se possível, não apresenta número mínimo de pessoas. No que concerne à fase processual (instrução ou plenário do júri), esse procedimento sequer é aplicável (artigo 226, parágrafo único, do CPP).

O projeto, embora contenha avanços, traz dispositivos extremamente prejudiciais à segurança pública e para a apuração dos crimes em geral, podendo aumentar sensivelmente a impunidade no país, que já é alarmante, além de criar fontes de nulidades, que serão muito bem aproveitadas pelos defensores.

Cabe à sociedade civil e às associações representativas dos órgãos de segurança e da persecução penal em geral conscientizar a população e os parlamentares sobre o perigo de aprovar projeto de lei que, a pretexto de modernizar a legislação processual penal, vai no sentido contrário do que quer a maioria da sociedade, que não mais está disposta a viver no país da corrupção e da impunidade, onde a lei penal alcança apenas a camada menos privilegiada, poupando os maiores marginais, que são justamente aqueles que mais mal causam a todos, ao receber propinas, desviar dinheiro público e fraudar licitações e contratos, dinheiro este que poderia estar sendo empregado na melhoria da qualidade de vida dos mais necessitados.

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    é procurador de Justiça - MPSP, professor, palestrante, mestre em Direito da Relações Sociais pela PUC/SP, especialista em Direito Penal pela ESMP/SP, autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicados pela Editora Juruá.

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