O voto de qualidade é justo?
20 de abril de 2021, 11h34
O artigo 112 do Código Tributário Nacional aduz que "a lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto: (…) Inciso II — à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos". Portanto, in dubio pro contribuinte.
Seguindo a mesma linha, o Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) impõe que a presidência das seções e das câmaras sejam exercidas por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, e que estes terão, além do voto ordinário, o de qualidade.
Percebe-se que enquanto o CTN, em casos de dúvida, aponta em favor do contribuinte, o Decreto 70.235/72 e o Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Ricarf) vão em direção oposta, impondo o desempate pelo voto de qualidade, a ser proferido por representante fazendário.
Recentemente foi sancionada a Lei 13.988/2020, que, em seu artigo 28, afirma:
"A Lei n° 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte artigo 19-E:
'artigo 19-E — Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o parágrafo 9° do artigo 25 do Decreto n° 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte".
Esse artigo de lei traz equilíbrio aos embates travados entre o Fisco e os contribuintes, e visa a reestabelecer a garantia do devido processo legal, assegurar o contraditório e a ampla defesa previstos na Constituição Federal em seu artigo 5°, LIV e LV.
Parece ser óbvio o que o artigo 19-E da Lei 10.522/02 pretende corrigir. Afinal, é uma anomalia a legislação permitir que um mesmo julgador profira dois votos no processo administrativo, o chamado voto duplo ou de qualidade. Ora, se tal hipótese não é permitida nos processos judiciais, uma vez que o magistrado que atua em um processo no primeiro grau não poderá exercer funções jurisdicionais caso o processo seja objeto de revisão em grau superior, por que seria admitida tal hipótese na esfera administrativa?
O Código de Processo Civil, no artigo 144, é claro quanto a essa limitação: "Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo: Inciso II — de que conheceu em outro grau de jurisdição, tendo proferido decisão".
Assim como o juiz singular, os órgãos colegiados devem primar pela imparcialidade. Evidentemente, esse senso de neutralidade e equilíbrio se esvai quando o voto de um julgador tem mais valor do que o de outro, um voto que vale por dois. Ainda mais quando, em regra, o julgador que detém o poder de voto de qualidade simplesmente repete o seu voto.
Nas lides em que o Estado atua como parte, a balança da Justiça deve manter o mesmo horizonte, o Estado não pode ter poderes ilimitados ou superiores, sob pena de a Administração Pública cometer severas arbitrariedades.
Sobre o tema, o ministro Luís Roberto Barroso ensina:
"(…) No tópico anterior procurou-se descrever o conteúdo jurídico do direito à imparcialidade, desdobramento necessário da garantia do devido processo legal. Um dos elementos identificados ali foi a impossibilidade de uma pessoa influenciar mais de uma vez a solução de uma determinada disputa, ainda que desempenhando funções públicas distintas (…).
(…) No momento em que se admite que uma mesma pessoa vote duas vezes em um julgamento, estar-se-á admitindo, por óbvio, que um mesmo indivíduo influencie duplamente a decisão do caso. A repercussão negativa sobre a garantia de imparcialidade é clara. E se o julgador em questão, por qualquer motivo, não for imparcial na apreciação do feito? É impossível conhecer e controlar a motivação íntima das pessoas (…).
(…) É interessante observar ainda que o segundo voto do julgador, proferido no mesmo julgamento, no mesmo momento, será, obviamente, igual ao primeiro. Na realidade, o segundo voto será apenas a repetição do primeiro e não o resultado de uma apreciação nova dos elementos dos autos, levada a cabo por alguém descomprometido com qualquer conclusão. O prejuízo à imparcialidade e à isenção é evidente. E sendo a imparcialidade inerente à garantia do devido processo legal, também esta resta violada (…)" [1].
O momento é de reflexão e decisão. Estão em julgamento perante o Supremo Tribunal Federal três ações diretas de inconstitucionalidade que debatem o voto de qualidade: a ADI 6399, proposta pelo Ministério Público Federal, a ADI 6403, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro, e a ADI 6415, proposta pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil. As ADIs estão sendo julgadas simultaneamente sob a relatoria do ministro Marco Aurélio.
Sob os aspectos formais o voto do ministro acata a tese da inconstitucionalidade. No entanto, sob os aspectos materiais valem destacar trechos do voto que desconstituem os alicerces do voto de qualidade, vejamos:
"(…) Com o artigo 19-E, não se criou — nem faria sentido falar de — voto de qualidade em benefício do contribuinte, sujeito passivo da obrigação tributária, parte mais fraca da relação, que oferece resistência contra o Estado todo-poderoso. Inexiste estipulação de duplo voto ou peso maior da manifestação de certo integrante, em caso de empate. A leitura do preceito direciona a conduzir que, uma vez não formada maioria no colegiado, não se tem confirmado o lançamento do tributo.(…) Considerados os ares da Constituição de 1988, dita, por Ulisses Guimarães, cidadã, é inadequada a evocação, de forma linear, da presunção de legitimidade, atributo do ato administrativo, decorrente do chamado princípio implícito da supremacia do interesse público sobre o privado, para justificar inconstitucionalidade do processo. Interesse público de quem?
(…) Consideradas as alusões à soberania e ao princípio da impessoalidade, tem-se que o Carf, nada obstante haja, na composição, representantes de interesses fazendários e dos contribuintes, não deixa de ser órgão público, administrativo. A alteração do critério de desempate, no julgamento de processo fiscal, não lhe retira o caráter estatal. Inexiste contrariedade ao princípio da legalidade — ao qual adstrita a Administração —, a impor respeito às regras estabelecidas, uma vez editada lei de conversão.
(…) A origem de toda a discussão está na previsão legal de colegiados de composição partidária. Essa é a perplexidade maior; criação de órgãos colegiados, com atribuição de decidir, mas compostos de número para de julgadores. Fosse ímpar, inexistiria o impasse. É dificuldade criada pelo legislador, sendo inadequada a premissa segundo a qual a Fazenda, com o voto de qualidade, deve possuir o controle das decisões proferidas em sede administrativa.
(…) A adoção, no contencioso fiscal, de solução favorável ao contribuinte, em caso de empate na votação, não conflita com Constituição de 1988. É opção legitima e razoável do legislador, estando em harmonia com o sistema de direitos e garantias fundamentais".
Qualquer decisão, seja na esfera judicial ou administrativa, tem de primar pela imparcialidade dos julgadores, trata-se de princípio sine qua non do devido processo legal, portanto, não é razoável que em um órgão colegiado o voto de um julgador valha mais do que o de outro. Espera-se que essa distorção seja corrigida com o fim do voto de qualidade em caso de empate no julgamento de processo administrativo de determinação do crédito tributário, e, caso o STF entenda que o aspecto formal do artigo 28 da Lei 13.988/2020 não foi adequado, que se corrija a forma, o caminho, mas que se alcance o destino que interessa a todos, a justiça.
[1] Luís Roberto Barroso, A ATRIBUIÇÃO DE VOTO DUPLO A MEMBRO DE ÓGÃO JUDICANTE COLEGIADO E O DEVIDO PROCESSO LEGAL, Revista do IBRAC, páginas 45/74, volume 16, número 1-2009.
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