Opinião

Direito e arte à flor da pele

Autores

  • Marcílio Toscano Franca Filho

    é árbitro da Court of Arbitration for Art (CAfA Rotterdam) do sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI Genebra) e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul (Assunção Paraguai). Professor da Faculdade de Direito da UFPB. Foi professor Visitante do Departamento de Direito da Universidade de Turim Itália.

  • Manoela Nasiasene Lins Feitosa Galvão

    é pesquisadora-bolsista PIBIC-CNPQ (IC) do LABIRINT (Laboratório Internacional de Investigações em Transjuridicidade) e graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.

20 de abril de 2021, 16h07

O escritor britânico Roald Dahl tornou-se mundialmente conhecido graças a obras como "A Fantástica Fábrica de Chocolate", "Matilda", "Os Gremlins" e "James e o Pêssego Gigante", entre outras histórias que marcaram a infância de várias gerações. Pouco são recordadas, porém, as suas narrativas de temática adulta.

Em "Skin", conto publicado numa edição de 1952 da revista The New Yorker, Dahl narra os passos de Drioli, tatuador russo que, em 1913, morava com a esposa, Josie, na Paris da belle époque. Aqueles anos feéricos eram um período de vacas gordas para o casal. Certo dia, depois de atender a muitos clientes e faturar um bom dinheiro, Drioli decidiu ir celebrar com Josie e um jovem artista plástico, seu conterrâneo, Chaïm Soutine, que havia conhecido pouco antes.

Após várias garrafas de vinho, Drioli, embriagado pelo sucesso financeiro e entusiasmado pelo talento artístico do jovem amigo, resolveu que registraria a arte de Chaïm Soutine em sua própria pele. Ensinou rapidamente a Soutine como manejar agulhas e tintas de tatuagem e lhe ofereceu as costas como tela. O rapaz teve facilidade instantânea com aqueles novos materiais e produziu uma belíssima obra: um retrato de Josie que ocupou todo o comprimento das costas de Drioli, com traços tão precisos e delicados que mais pareciam ter sido pintados com os seus habituais pincéis e pigmentos.

Nunca mais se viram. Duas grandes guerras devastaram a França. Josie morreu na Segunda Guerra Mundial. Drioli já não tinha mais clientes e envelhecera em situação miserável. Numa noite gelada de 1946, quando o ex-tatuador passou em frente a uma movimentada galeria na Rue de Rivoli, notou que lá se expunham os quadros do já então célebre artista que um dia tinha adornado suas costas, anos antes da fama: Chaïm Soutine (1894 – 1943).

Sujo e mal vestido, Drioli foi recepcionado com hostilidade na galeria. Depois de alguma confusão, removeu, enfim, seu casaco e sua camisa, para provar que ele próprio era um legítimo Soutine. O jogo virou. Imediatamente recebeu propostas dos colecionadores e marchands ali presentes. Um deles, dono do Hotel Bristol, em Cannes, ofereceu-lhe uma estada vitalícia, em troca de sua presença descamisada na piscina, expondo a obra aos hóspedes; outro prometeu que desembolsaria dez milhões de francos em troca da pele de suas costas, que seria cirurgicamente removida, em vida, e substituída por enxertos, operação sem dúvida arriscada, dada a elevada idade do russo.

Algumas semanas depois daquele vernissage na Rue de Rivoli, um inédito retrato de mulher, pintado de uma maneira pouco usual por Chaïm Soutine, bem enquadrado e exageradamente envernizado, foi exposto à venda em Buenos Aires. Nada é dito a respeito do paradeiro de Drioli. Sabe-se apenas que nunca houve um hotel chamado Bristol em Cannes.

Com um tom menos bizarro, a mesma temática serviu de roteiro cinematográfico para uma comédia franco-italiana de 1968, intitulada "Le Tatoué", dirigida por Denys de La Patellière. No filme, um sucesso de bilheteria, um marchand inescrupuloso tenta a todo custo comprar uma tatuagem feita por Modigliani nas costas um soldado da Legião Estrangeira, após uma noite de bebedeira no Café du Dôme, em Montparnasse [1].

Passadas muitas décadas desde que Roald Dahl publicou "Skin", a ficção tornou-se mais uma vez realidade: Em busca de novas linguagens, o artista belga Wim Delvoye, até então mais conhecido por tatuar e expor porcos, convenceu, em 2006, Tim Steiner, um musicista de Zurique, a oferecer suas costas para que ele as tatuasse e as pusesse à venda como uma obra de arte.

Após numerosas e cansativas sessões de trabalho, a obra veio ao mundo batizada de "Tim". Apossando-se da extensão das costas de Steiner em sua totalidade, vê-se uma madona radiante, coroada por um crânio à mexicana, adornada por pássaros e rosas vermelhas e azuis, com crianças segurando flores de lótus e dois peixes compondo sua base, e, claro, a icônica assinatura de Delvoye, escrita na mesma fonte do logotipo da Walt Disney [2].

"Tim" foi vendida em setembro de 2008 ao jovem colecionador alemão Rik Reinking, por 150 mil euros, mesmo valor dos porcos tatuados (para combater o especismo) e de cujo montante um terço foi destinado ao "portador" da obra, um terço à galeria de arte e um terço ao autor. Por limitações legais, o negócio tomou lugar na Suíça, graças a uma Loi sur la prostituition, que serviu como base jurídica para validar o pacto [3]. Entre as condições do contrato assinado por Tim Steiner, o homem-tela, está que ele deverá expor-se três vezes por ano, em eventos públicos ou privados.

Por óbvio, um empreendimento tão pungente e polêmico não passaria ileso de críticas, a começar pelas dúvidas acerca do tratamento "reificante" de Tim Steiner, ao obrigá-lo a se submeter a uma maratona próxima de algumas práticas de tortura psicológica.

A decisão do colecionador Rik Reinking de adquirir "Tim" também traz à memória a figura de Ilse Koch, a temida "Bruxa de Buchenwald", esposa de Karl Otto Koch, comandante do campo de concentração de Buchenwald, a qual, supostamente, com o aval de Erich Wagner  médico que estudava as tatuagens dos judeus aprisionados , colecionava a pele tatuada dos prisioneiros para fazer luminárias e abajures com os quais decorou sua casa.

Por mais que a iniciativa de Delvoye possa ser inusitada, singular, controvertida e atacada por tantos e diversos motivos, ela não é particularmente original. Em 1967, uma certa senhorita P. acionou a justiça francesa contra o diretor, o assistente de direção e a produtora do filme "Paris Secret", que a haviam contratado para estrelar a produção, três anos antes. A ação demandava não só uma indenização de 200 mil francos mas também a devolução de um "retalho" da pele da autora. Pelo contrato assinado em 1964, a senhorita P., então com 17 anos, deveria fazer uma tatuagem para interpretar uma personagem do filme. Tudo seria filmado. Quinze dias depois, um cirurgião plástico a "destatuaria". O que ela não sabia é que o eufêmico procedimento de "destatuagem" era, na verdade, uma cirurgia de remoção de um pedaço de sua pele, que seria vendido "ao preço de um pequeno Picasso". Em 1972, a Cour de Cassation decidiria, em última instância, pela ilegalidade de um contrato "sórdido, imoral e ilícito" [4].

Em 1975, o artista Ulay (1943-2020), pioneiro da performance art e parceiro de Marina Abramović em muitas iniciativas, também havia tatuado as palavras "GEN-E-T-RATION ULTIMA RATIO" em seu antebraço, cuja camada de pele foi cirurgicamente removida e exposta, numa manifestação de "body art"  a arte que utiliza o próprio corpo do artista como expressão.

Além disso, o médico japonês Fukushi Masaichi (1878-1956), antes mesmo de Roald Dahl imaginar os destinos de Drioli, Josie e Soutine, já tinha uma grande coleção de pele tatuada, que utilizava como seu principal objeto de estudo, após a constatação de que a tinta das tatuagens extirpava as lesões epidérmicas sintomáticas da sífilis. Hoje, essa coleção está exposta no Museu de Patologia da Universidade de Tóquio, com mais de uma centena de peças.

Recentemente, a história de "Tim" chegou até a prestigiosa Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. "The Man Who Sold His Skin" (2020), dirigido pela cineasta tunisina Kaouther Ben Hania, é uma obra cinematográfica indicada ao Oscar de 2021, na categoria de melhor filme estrangeiro. A película baseou-se, segundo a própria diretora, em Delvoye e Steiner.

O longa conta a história de Sam Ali, um jovem sírio refugiado no Líbano, o qual é recrutado por uma marchand, para que um artista utilize suas costas como tela, tatuando, também, um visto Schengen, que permite sua entrada na vasta maioria dos países europeus. Ainda que um visto tatuado não seja um visto legal, é um boa metáfora, já que o recém-adquirido status de Ali de obra de arte viva significa que ele, de fato, pode locomover-se para qualquer lugar do mundo onde ele é exibido.

À luz do Direito brasileiro, transpor a conjuntura que permitiu que "Tim" fosse criado e mercantilizado esbarraria em obstáculos como a vedação constitucional a todo tipo de comercialização de órgãos, tecidos e substâncias humanas (artigo 199, §4º, CF) ou a Lei 9.434/97, cujo artigo 15 fixa pena de reclusão, de três a oito anos, e multa, para quem comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano.

Demais disso, há o artigo 13 [5], que consagra o princípio da indisponibilidade do próprio corpo, e o artigo 14 [6], ambos do Código Civil, que também se apresenta como baliza da integridade física post mortem, permitindo tão somente a disposição gratuita do próprio corpo com justificativas altruísticas ou científicas. No caso de "Tim", não se fala em gratuidade, já que um contrato oneroso foi estabelecido, no entanto, poder-se-ia questionar: haveria algum altruísmo em renunciar a seu corpo em prol da arte?

A despeito de tais complexas reverberações jurídicas e implicações morais, é indiscutível a contribuição de Delvoye e de "Tim"  tanto enquanto obra, quanto como indivíduo  para esgarçar os limites do jurídico, do visual, do literário, do performático, do cinematográfico e da própria vida, até o ponto de completa indistinção entre todas essas dimensões. Mais uma vez, um artista e sua obra obrigam-nos a repensar conceitos (não apenas jurídicos) desafiados pela ficção da arte. Agora, é preparar a pipoca e esperar a cerimônia do Oscar.

 


[1] DELAVAUX, Céline; VIGNES, Marie-Hélène. Les Procès de l’artigo Paris: Palette, 2013, p. 324.

[2] NUSSBAUM, Valentin. Vendre sa peau: Le marché de l’art entre fictions et realités. In: IMESCH, Kornelia; DAGUET, Karin; DIEFFENBACHER, Jessica; STREBEL, Deborah ((edts.). Transdisziplinarität in Kunst, Design, Architektur um Kunstgeschichte. Oberhausen: Athena-Verlag, 2017, p. 99.

[3] DELAVAUX, Céline; VIGNES, Marie-Hélène. Les Procès de l’artigo Paris: Palette, 2013, p. 324.

[4] DELAVAUX, Céline; VIGNES, Marie-Hélène. Les Procès de l’artigo Paris: Palette, 2013, p. 324-327.

[5] "Artigo 13 – Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial".

[6] "Artigo 14 – É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo".

Autores

  • é professor de Direito da Arte na UFPB; doutor em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal); pós-doutor em Direito no Instituto Universitário Europeu de Florença (Itália); professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Turim (2017-2020), árbitro do sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) para a área de artes e patrimônio cultural (Genebra) e árbitro da Court of Arbitration for Art (Rotterdam).

  • é pesquisadora-bolsista PIBIC-CNPQ (IC) do LABIRINT (Laboratório Internacional de Investigações em Transjuridicidade) e graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.

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