Opinião

O princípio do promotor natural e o STF

Autor

  • Eduardo Appio

    é juiz federal na 2ª Turma Recursal dos JEFs do Paraná em Curitiba e pós-doutor em Direito Constitucional pela UFPR (2007).

20 de abril de 2021, 13h36

O princípio do promotor natural não se encontra expressamente inscrito na Constituição Federal de 1988. A nossa Carta prevê que o Ministério Público é titular da ação penal pública (artigo 129), ou seja, detém a prerrogativa exclusiva de exercer o monopólio da repressão estatal dos crimes mais graves.

O Supremo Tribunal Federal reconheceu ainda em 1992 (STF, Pleno, HC 67759 de 06/08/1992 — relator ministro Celso de Mello) que o princípio do promotor natural é imanente em nosso sistema constitucional, sendo que "(…) a matriz deste princípio assenta se nas cláusulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição".

A mesma Constituição Federal estabelece que o Ministério Público deve ser o defensor dos direitos individuais indisponíveis, entre os quais avulta o direito à liberdade. O Ministério Público, neste novo quadrante, tem não apenas o poder, como fundamentalmente o dever de pedir em juízo ou fora dele a absolvição de alguém acusado sem provas.

Estaria o Ministério Público Federal de Curitiba também vinculado a essas disposições constitucionais, de maneira que por aplicação do princípio do promotor natural todas as denúncias criminais apresentadas em face do ex-presidente Lula seriam potencialmente nulas por decorrência direta da recente decisão do Supremo Tribunal Federal (caso já definitivamente julgado no último dia 14), que decidiu, em última instância, que Curitiba não é o foro competente de ações que não envolvam a Petrobras?

A questão certamente irá suscitar acalorado debate, na medida em que se algumas vozes defendem o princípio da unidade do Ministério Público, outras tantas asseguram que aplicável o princípio do promotor natural.

Com a Constituição de 1988, o Ministério Público passou de mero acusador para a posição de tutor da legalidade dos atos de repressão estatal e também de controlador da atividade externa da polícia. A função de controle externo da atividade policial deriva, sem dúvida alguma, da enorme confiança que o constituinte (artigo 129, VII, da Carta de 88) depositou nos ombros de promotores de Justiça e procuradores da República (lato sensu). Em suma, nenhuma outra instituição de República teve uma ampliação tão vasta de novas funções e responsabilidades com a nova Carta, motivo pelo qual a própria estrutura do Ministério Público teve de ser substancialmente aumentada, de maneira a garantir sua presença até mesmo nos menores municípios do Brasil.

Com a nova estrutura que teve de ser criada  a qual foi garantida pela edição da Lei Complementar 75/1993 e da Lei Federal 8.625/1993 —, o Ministério Público passa a ganhar uma grande importância e seus órgãos não se furtam a cumprir a obrigação de promover o arquivamento de inquérito e peças de informação quando se deparam com um inocente, o mesmo valendo pelo pedido de absolvição em sede de alegações finais. Em data recente, foi lhes assegurada a prerrogativa de realizar acordos de delação premiada e também de deixar de promover a ação penal (acordo de não persecução  artigo 28-A do CPP).

O problema surge quando o Ministério Público passa a desempenhar funções típicas de investigação, até então afetas, de modo privativo, às Policias Civil e Federal. O próprio Supremo Tribunal passa, então, a aceitar que o Ministério Público possa investigar crimes com estrutura própria (RE 593727 julgado em 14/5/2015), o que cria uma grande dificuldade prática, pois se a polícia antes era controlada pelo Ministério Público, quem, doravante, irá controlar a atividade "policial" do Ministério Público? Todos sabemos que em uma República o sistema de freios e contrapesos assegura que o exercício de poder público (especialmente na tutela da liberdade humana e repressão penal) pressupõe um controle bastante atento e independente.

A independência se assenta em um agir imparcial e impessoal, de maneira que nenhum ato de investigação e consequente promoção de ação penal esteja imune a ulterior revisão judicial. Ademais, o MP tem a obrigação constitucional de prevenir a ocorrência de abusos no âmbito das polícias.

Com esse sentido maior de garantir a plena e total imparcialidade de promotores de Justiça e de procuradores da República, são presentes em ambas as carreiras as garantias de um agir isento, ou seja, a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos. Se o regime de direitos é o mesmo da magistratura, podemos falar, com tranquilidade, em isonomia entre as carreiras com o mesmo estatuto de deveres funcionais, sempre com especial ênfase na imparcialidade.

O próprio projeto de lei que hoje tramita no Senado (Projeto Streck/Anastasia, PL 5282/2019) tem como foco garantir uma atuação imparcial dos órgãos do Ministério Público, determinando que ampliem o foco da investigação realizada no inquérito de maneira a abranger provas que venham, eventualmente, assegurar a liberdade de um inocente. O referido projeto proíbe o chamado "agir estratégico" por parte do Ministério Público. Não existe projeto similar no âmbito da magistratura, pois todos sabemos que o maior dever de um juiz é ser imparcial. Nunca se cogitou do contrário e os institutos da suspeição e impedimento, contidos no Código de Processo Penal (CPP), resolvem potenciais conflitos de interesse dos juízes.

Considerando que ambos possuem um estatuto muito similar de direitos e deveres  a ponto de o Supremo Tribunal falar em simetria entre as carreiras —, resulta evidenciado que o princípio do promotor natural  a exemplo de seu irmão gêmeo, o princípio do juiz natural  assume uma grande importância para o imparcial desempenho das funções do Ministério Público. Cada promotor de Justiça e procurador da República que atua no país está atrelado a uma determinada circunscrição territorial e até mesmo o procurador-Geral da República (PGR) não pode avocar ou atuar em feitos que tramitem em outras unidades. A proscrição da figura da avocatória pelo PGR foi uma das grandes conquistas das associações de Ministério Público. Ora, se a avocatória não é mais permitida em nosso sistema (decisão do Supremo Tribunal na Questão de Ordem no pedido de avocação 16 DF em 12/10/1988  uma das primeiras decisões do Supremo Tribunal sob a nova Constituição), como seria possível, por decorrência lógica, defender o princípio da unidade do Ministério Público em pleno século 21? Fica a dúvida.

A atuação do Ministério Público se dá, por conseguinte, através do provimento de cargos e correlatas funções específicas a serem desempenhadas em um determinado território (comarca ou circunscrição judiciária). Não se pode conceber que um promotor de Foz do Iguaçu (PR), por exemplo, atue em um inquérito em São Paulo, o que suscitaria o chamado conflito positivo de atribuições.

O princípio do promotor natural é, muito provavelmente, a bandeira histórica mais importante das associações de Ministério Público nos últimos 20 anos.

Enfim, caberá à doutrina e à academia analisar todas as consequências do leading case firmado pelo Supremo Tribunal no último dia 14, definindo se todas as denúncias ofertadas pelo MPF em face do ex-presidente Lula são nulas (por malferimento do princípio do promotor natural) ou se, alternativamente, vigora o principio da unidade do Ministério Público em todo o país.

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