Contas à vista

Regras superpostas ocultam e acatam voluntarismo fiscal

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20 de abril de 2021, 8h04

O projeto de lei orçamentária federal para 2021 deve ser sancionado ou vetado até esta quinta-feira (22/4), sendo que o silêncio do presidente implica sua sanção tácita, conforme o §3º do artigo 66 da Constituição de 1988.

Spacca
Sem orçamento aprovado tempestivamente no ano anterior, quase todo o primeiro quadrimestre deste exercício financeiro transcorreu sob o regime do artigo 65 da atual Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei 14.116/2020).

Tamanho atraso justificou a aprovação de uma recente alteração na própria LDO, por meio da Lei 14.127/2021, para permitir que o Executivo federal pudesse substituir as operações de crédito por outras fontes de recursos, em relação às despesas que estavam condicionadas à aprovação da quebra da "regra de ouro" por maioria absoluta do Congresso (artigo 167, III da CF).

Caso não tivesse ocorrido tal alteração, a União não teria como continuar a pagar considerável parcela de salários e benefícios previdenciários já a partir deste mês de abril. Como se pode ler na reportagem de Rosana Hessel para o Correio Braziliense, o PLOA/2021 previu R$ 453,7 bilhões de despesas condicionadas à aprovação excepcional da quebra da "regra de ouro", sendo que nesse montante "estão incluídos, por exemplo, R$ 272,1 bilhões em benefícios pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), ou seja, 38,2% dos R$ 712 bilhões previstos para o ano, e R$ 119,2 bilhões de salários de servidores — 41,6% dos gastos estimados para o pagamento anual da folha do funcionalismo, de R$ 286,7 bilhões".

O impasse na lei orçamentária anual de 2021 sintetiza, a bem da verdade, a própria descoordenação entre as diversas regras fiscais que definem seus limites estruturais. Aliás, são tantas regras dispersas, complexas e, por vezes, superpostas, que o atual pacto implícito entre Executivo e Legislativo parece ser o de acatar pura e simplesmente o seu descumprimento.

Em meio à pior fase da pandemia, falta planejamento e sobra acomodação de interesses voluntariosos para satisfazer o curto prazo eleitoral dos agentes políticos. Se o Executivo não vetar as emendas parlamentares inseridas a partir de uma fictícia margem fiscal decorrente da subestimativa de despesas obrigatórias, tampouco o Congresso impugnará o manejo abusivo de créditos extraordinários para atender a despesas previsíveis neste segundo ano de enfrentamento da Covid-19. Assim, cada qual enche seu próprio pirão orçamentário para tentar impactar as eleições de 2022, afinal, farinha pouca, irracionalidade operacional primeiro…

Não deixa de ser sintomático o fato de que tenhamos já aprovado duas emendas constitucionais para gerir a pandemia (Emendas 106/2020 e 109/2021), mas ambas foram imprudentemente dotadas de curto fôlego. Ao invés de rever o teto e programar uma resposta bienal para o enfrentamento da Covid-19, a Emenda do Orçamento de Guerra se fiou na tese de que a pandemia findaria em 31 de dezembro do ano passado. Por outro lado, a Emenda Emergencial está assentada na tese igualmente frágil de que bastariam R$ 44 bilhões para custear por, no máximo, quatro meses a retomada do auxílio emergencial em 2021. Em ambos os casos, prevaleceu a aposta temerária na retomada plena da vigência do teto como âncora fiscal de 2021, enquanto se negou enfrentamento suficiente às dimensões sanitária, assistencial e econômica da pandemia.

No envio do PLOA-2021, em agosto de 2020, sequer houve a projeção dos riscos fiscais decorrentes da altamente provável persistência da pandemia para além de 31 de dezembro passado. Ali nenhum centavo foi alocado para a compra de vacinas, tampouco para o auxílio emergencial ou mesmo para a manutenção dos leitos de UTI necessários ao enfrentamento da Covid-19. Segundo o relatório recentemente divulgado no âmbito do Processo 014.575/2020-5 do Tribunal de Contas da União:

"Há que se registrar que na lei orçamentária federal de 2021, aprovada pelo Congresso Nacional em 25/3/2021 e ainda pendente de sanção presidencial e de publicação, não constam dotações para a ação orçamentária 21C0, ação orçamentária específica para o controle das despesas relativas ao combate à pandemia da Covid-19. Para efeitos comparativos, em 2020, a dotação orçamentária para esta ação foi de R$63,74 bilhões".

Eis o contexto em que o Ministério da Economia chegou a aventar recentemente a hipótese de uma terceira PEC para abrir brechas contingentes na legislação fiscal brasileira.

Ora, soluções erráticas e insuficientes, porquanto oferecidas a conta-gotas, sem o devido planejamento impessoal e republicano, aproveitam primordialmente aos que seguem a lógica de criar dificuldades para vender facilidades.

Preferem retalhar a Constituição sucessivas vezes a corrigir as causas estruturais do impasse fiscal brasileiro. É afrontosa, pois, a hipótese de mais uma PEC (a terceira em plena pandemia!) para acomodar o cínico descumprimento das regras fiscais, sem que se busque a correção das mazelas de concepção do teto e da descoordenação entre tais regras.

Quem planta arremedos normativos, obviamente colhe insegurança jurídica, algo já diagnosticado até mesmo no âmbito do Ministério da Economia. Como se pode ler na reportagem de Fábio Pupo e Daniel Carvalho para a Folha de S. Paulo (disponível aqui):

"O entrave nas medidas é observado após Executivo e Legislativo ignorarem a Covid-19 no Orçamento de 2021. Agora, precisam criar as medidas por créditos extraordinários —instrumentos que ficam fora do Orçamento e são permitidos pela Constituição apenas em casos imprevisíveis e urgentes.
A situação se complica pelo fato de técnicos do Ministério da Economia sentirem insegurança na criação das medidas, por verem possíveis controvérsias no uso do instrumento.
(…) Bolsonaro agora tem que decidir se sanciona o Orçamento como está, arriscando uma acusação por crime de irresponsabilidade; ou se veta ao menos parcialmente a proposta, desagradando ao Congresso.
De qualquer forma, enquanto a peça ainda está em aberto, fica reforçada a tese de que poderiam ser feitas modificações nos números para acomodar a Covid dentre as despesas tradicionais. Ou seja, um cenário em que não se configuraria o requisito da imprevisibilidade para criar créditos extraordinários.
'Ainda que lancemos mão de crédito extraordinário, existe a preocupação de que não teremos a segurança necessária. Porque você poderia ter o espaço para fazer dentro do Orçamento. E o crédito, constitucionalmente falando, está fora do Orçamento', afirmou recentemente Bruno Bianco, secretário especial de Previdência e Trabalho".

Vale lembrar que, ao longo deste segundo ano pandêmico, já foram abertos créditos extraordinários no valor total de R$ 53.849.000.168 para atender a despesas previsíveis, como se pode ler nas Medidas Provisórias 1032, 1037, 1038, 1041 e 1043, todas de 2021.

Essas cinco MPs teleologicamente operam como uma inconstitucional burla ao teto de despesas primárias, ao princípio da separação de poderes e ao devido processo legislativo orçamentário, como tratamos aqui.

Vale a pena ler o caráter absolutamente genérico, repetitivo e imprudente da exposição de motivos de cada qual dessas MPs:

1) MP 1032, de 24/2/2021 (disponível aqui):

"6. Já a imprevisibilidade decorre da situação excepcional causada pela pandemia de Covid-19, cujos efeitos ultrapassaram o exercício financeiro de 2020. A situação epidemiológica atualmente verificada não era certa em meados de 2020, quando da elaboração do Projeto de Lei Orçamentária de 2021 – PLOA 2021, atualmente em tramitação no Congresso Nacional, como indica a própria redução do número de casos e mortes no decorrer do segundo semestre de 2020, além da perspectiva da imunização. Portanto, a situação fática de extrema gravidade colocada pela evolução da pandemia observada em janeiro de 2021 requer a adoção de medidas urgentes e singulares, para garantia do direito da população à saúde".

2) MP 1037, de 18/3/2021 (disponível aqui):

"7. Assim, encaminha-se o presente crédito extraordinário, em conformidade com o artigo 3º da Emenda Constitucional nº 109, de 15 de março de 2021, EC nº 109, que, entre outras providências, suspende condicionalidades para concessão de auxílio emergencial residual para enfrentar as consequências sociais e econômicas da pandemia.
8. Ressalta-se que, de acordo com a EC nº 109, as despesas decorrentes da concessão do auxílio não serão consideradas na apuração da meta de resultado primário estabelecida no caput do artigo 2º da Lei nº 14.116, de 31 de dezembro de 2020, e nem no limite para despesas primárias de que trata o inciso I do caput do artigo 107 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Além disso, as operações de crédito realizadas para custear a concessão do referido auxílio ficam ressalvadas do limite determinado no inciso III do caput do artigo 167 da Constituição Federal".

3) MP 1038, de 18/3/2021 (disponível aqui):

"10. Já a imprevisibilidade é oriunda da impossibilidade de antever, para o presente exercício financeiro, a extensão temporal do enfrentamento da situação emergencial e de seus efeitos na economia, tendo em vista que, na maior parte dos municípios brasileiros, as medidas de isolamento social ainda persistem em algum grau, decorrente do elevado patamar de disseminação da Covid-19 e de óbitos, mesmo após um ano do registro do primeiro caso.
11. Além disso, é importante salientar que a própria promulgação da EC nº 109 gerou despesas imprevisíveis com relação especificamente aos gastos operacionais, que precisam e devem ser incorridos para a efetiva concessão do benefício Auxílio Emergencial 2021, AE-21. Portanto, entende-se que o fato de existir a previsão de criação do auxílio, na forma da referida Emenda Constitucional, por si só tem o efeito da imprevisibilidade da despesa acessória com a operação do benefício nos bancos conveniados e com a manipulação de dados pela Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social – Dataprev, e com a respectiva necessidade de contratação de pessoal temporário exclusivo para atender a concessão do benefício AE-2021".

4) MP 1041, de 30/3/2021 (disponível aqui): 

"16. Já a imprevisibilidade verifica-se na situação excepcional causada pela Covid-19, cujos efeitos ultrapassaram o exercício financeiro de 2020. A situação epidemiológica atualmente verificada não era certa em meados de 2020, quando da elaboração do Projeto de Lei Orçamentária de 2021 – PLOA-2021, em tramitação no Congresso Nacional, como indica a própria redução do número de casos e mortes no decorrer do segundo semestre de 2020, além da perspectiva da imunização".

5) MP 1043, de 16/4/2021 (disponível aqui): 

"15. Já a imprevisibilidade verifica-se na situação excepcional causada pela Covid-19, cujos efeitos ultrapassaram o exercício financeiro de 2020. A situação epidemiológica atualmente verificada não era certa em meados de 2020, quando da elaboração do Projeto de Lei Orçamentária de 2021 – PLOA-2021, como indica a própria redução do número de casos e mortes no decorrer do segundo semestre de 2020, além da perspectiva da imunização.
16. Ademais, os limites disponibilizados ao Ministério da Saúde, parametrizados pela aplicação mínima constitucional, também não permitiriam a acomodação de despesas extraordinárias como as necessárias para enfrentamento da pandemia, a maior da história recente da humanidade. É certa, por outro lado, a situação fática de extrema gravidade colocada pela sua evolução, observada a partir de janeiro de 2021, que requer a adoção de medidas urgentes e singulares para garantia do direito à vida da população".

Ora, sustentar que não se sabia sobre o risco de agravamento da pandemia no longo intervalo de tempo entre agosto de 2020 até março deste ano é literalmente atentar contra os fatos e falsear o requisito constitucional da imprevisibilidade para abertura de créditos extraordinários. Passaram-se sete longos meses de inércia do Executivo federal, durante os quais o PLOA-2021 poderia ter sido alterado no curso da sua tramitação no Congresso, mediante envio de mensagem modificativa pelo Executivo. Todavia, a pretexto de manter artificialmente inalterado o teto de despesas primárias da Emenda 95/2016, preferiu-se apostar em remendos normativos a conta-gotas e também insistiu-se na inconstitucional manobra de créditos extraordinários para atender a despesas previsíveis (cheques em branco).

A costura de um acordo de acomodação tanto das emendas parlamentares sem lastro fiscal real, quanto dos créditos (extra)ordinários absolutamente previsíveis neste segundo ano da pandemia, encontrou seu ponto culminante no Substitutivo ao Projeto de Lei do Congresso Nacional nº 2/2021 apresentado pelo Deputado Federal Efraim Filho – DEM/PB (disponível aqui) e aprovado no mesmo dia para viabilizar a sanção do orçamento, como se pode ler aqui.

Assim serão acomodadas as emendas parlamentares paroquiais, enquanto cinicamente continuarão a sustentar nas exposições de motivos das medidas provisórias que abrem créditos extraordinários que as despesas de enfrentamento à pandemia neste ano não eram previsíveis mesmo durante o longo intervalo de tempo entre o envio do PLOA, em 31/8/2020, até sua aprovação, no dia 25 de março.

Para tanto poderão ser contingenciadas despesas discricionárias essenciais ao funcionamento da Administração Pública (como, por exemplo, conta de energia) para acomodar tais emendas parlamentares. Bem como serão excetuados da meta de resultado primário e do teto os créditos extraordinários nas searas sanitária, assistencial (auxílio emergencial nos moldes definidos pela EC 109/2021) e econômica (onde se incluem o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte e o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda).

Na prática, tal acordo celebrado entre governo e Congresso apenas acata o voluntarismo fiscal que premia o curto prazo eleitoral e dá causa ao acúmulo de mortes evitáveis.

O desfecho da novela orçamentária brasileira deste 2021 é um sonoro "faz de conta" em que não há prioridades a serem planejadas no médio prazo, nem pandemia a ser gerida de forma sistêmica.

Façamos todos de conta que somos uma democracia e que nossa Constituição pode ser retalhada e teleologicamente ignorada. Enquanto fazemos de conta, os recursos públicos são mal gastos em mais uma acomodação patrimonialista ocultada por regras fiscais superpostas e ineptas para atingir os fins a que se destinam.

Afinal, qual é a razão mesmo de termos tantas regras fiscais se não for para permitir acordos nada republicanos que acatem seu descumprimento a um custo político-partidário ainda maior?

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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