Opinião

O STJ e a divergência sobre a compensação em embargos à execução fiscal

Autores

  • Bianca Delgado Pinheiro

    é coordenadora do Departamento Tributário do escritório Rolim Viotti Goulart e Cardoso Advogados professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação MBA autora de artigos e capítulos de livros publicados e palestrante em seminários e congressos pós-graduada em Gestão Corporativa de Tributos conselheira no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais–CARF (2011-2014)

  • Simone Bento Martins Cirilo

    é coordenadora de Contencioso Tributário do escritório Rolim Viotti Goulart Cardoso Advogados e mestre em Direito Público pela PUC-MINAS.

19 de abril de 2021, 6h03

Neste mês de abril, o ministro Gurgel de Faria, do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar monocraticamente os embargos de divergência no Recurso Especial nº 1.795.347/RJ, entendeu pela impossibilidade de o contribuinte defender, em embargos à execução fiscal, a extinção do crédito tributário mediante compensação que não foi homologada administrativamente, se posicionando no sentido de que não estaria caracterizada a divergência apontada no recurso. 

No caso concreto, o contribuinte apresentou embargos à execução fiscal para desconstituir a cobrança, sob a alegação de extinção do crédito tributário por compensação, já que à época do requerimento administrativo havia saldo credor legítimo em montante suficiente para sua homologação. Contudo, tanto a sentença quanto o acórdão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região entenderam que não seria possível discutir a compensação administrativa em embargos à execução fiscal, em razão da vedação prevista no artigo 16, §3º, da Lei de Execuções Fiscais (LEF), o que ensejou a interposição de recurso especial pelo contribuinte.

O recurso não foi provido por decisão monocrática pelo ministro Og Fernandes, posteriormente confirmada pela 2° Turma, ao fundamento de que "nos termos do artigo 16, §3º, da Lei n° 6.830/1980, indeferida a compensação na esfera administrativa, não é possível homologar a pleiteada compensação em sede de embargos à execução fiscal, conforme o entendimento desta Corte. É que a alegação de compensação no âmbito dos embargos restringe-se àquela já reconhecida administrativa ou judicialmente antes do ajuizamento da execução fiscal (…)".

Contra essa decisão, o contribuinte opôs embargos de divergência demonstrando que a decisão que negou provimento ao seu recurso especial diverge de decisão proferida pela 1° Turma. O recurso foi admitido, sendo os autos remetidos ao ministro Gurgel de Faria que proferiu a decisão objeto desse artigo.

A questão relativa à alegação de compensação em embargos à execução fiscal não é nova, sendo que a 1° Seção do STJ já havia se posicionado de forma favorável aos contribuintes no julgamento do Recurso Especial 1.008.343, em recurso repetitivo (Tema 294).

Conforme acórdão publicado em 1º/2/2010, a 1° Seção indicou expressamente que a compensação tributária adquire a natureza de direito subjetivo do contribuinte (oponível em sede de embargos à execução fiscal), em havendo, entre outros elementos essenciais, "a existência de débito do fisco, como resultado: a) de ato administrativo de invalidação do lançamento tributário, b) de decisão administrativa, c) de decisão judicial, ou d) de ato do próprio administrado, quando autorizado em lei, cabendo à Administração Tributária a fiscalização e ulterior homologação do débito do fisco apurado pelo contribuinte", conforme trecho abaixo:

"A compensação efetuada pelo contribuinte, antes do ajuizamento do feito executivo, pode figurar como fundamento de defesa dos embargos à execução fiscal, a fim de ilidir a presunção de liquidez e certeza da Certidão de Dívida Ativa (CDA), máxime quando, à época da compensação, restaram atendidos os requisitos da existência de crédito tributário compensável, da configuração do indébito tributário, e da existência de lei específica autorizativa da citada modalidade extintiva do crédito tributário".

O que mais surpreende, no entanto, é o fato de esse mesmo precedente, proferido de forma favorável aos contribuintes há mais de dez anos em sede de recurso repetitivo (como reconhecido por diversas vezes) ter sido utilizado como fundamento para justificar também a improcedência da pretensão por alguns ministros do STJ [1], principalmente da 2° Turma [2], entendendo que somente a compensação homologada é que seria passível de ser alegada em embargos à execução.

Diante do cenário jurisprudencial dúbio atualmente existente no STJ, e da surpreendente decisão monocrática nos Embargos de Divergência nº 1.795.347/RJ, demonstraremos a interpretação equivocada do julgamento do recurso repetitivo, indo de encontro aos procedimentos legais de compensação, à Lei de Execuções Fiscais e às regras atuais do processo civil, além de gerar grande insegurança jurídica.

Inicialmente, a correta interpretação do artigo 16, §3º, da LEF, deve levar em conta o histórico legislativo, especialmente ao se ter em vista o período de edição da lei. A Lei de Execuções Fiscais foi editada no ano de 1980 com o objetivo de regulamentar a cobrança judicial de créditos tributários de titularidade da Fazenda Pública. À época, o instituto da compensação, apesar de já estar autorizado desde 1967 pelo Código Tributário Nacional (CTN) como modalidade extintiva do crédito tributário, não possuía qualquer regulamentação legislativa, configurando-se, portanto, uma hipótese "sem uso" de extinção, na medida em que dependeria da instituição de procedimentos por meio de lei.

Nesse cenário, em que inexistia a compensação na via administrativa, foi editado o artigo 16, §3º, objeto da controvérsia ora tratada, que dispõe que não será admitida como matéria de defesa de embargos à execução fiscal a reconvenção e a compensação.

Justamente em função da inexistência de um procedimento de compensação regulamentado por lei quando da edição desse dispositivo, é possível entender pela impossibilidade de se interpretar que a vedação contida no artigo 16, §3º, da LEF, alcança a compensação administrativa não homologada, impedindo sua arguição como defesa em sede de embargos à execução fiscal.

Foi somente em 1991, com a Lei 8.383/91 (artigo 66), que foi estabelecido o procedimento de compensação de iniciativa do próprio contribuinte. Essa lei previa a compensação entre tributos da mesma espécie, nas hipóteses de recolhimento indevido ou a maior, com débitos apurados em períodos subsequentes. Nessa época não era sequer necessário apresentar o pedido de compensação à autoridade administrativa quando os débitos compensados fossem vincendos. Via de regra, a compensação era realizada na própria escrita fiscal. Por evidente, essas compensações se sujeitavam à posterior homologação da Receita Federal, expressa ou tacitamente, no prazo de cinco anos, e em caso de qualquer irregularidade, os débitos não compensados deveriam ser objeto de autuação.

Depois de algumas alterações na Lei, em 1996 sobreveio a Lei 9.430, que introduziu, por meio do artigo 74, os procedimentos de compensação da forma em que autorizados atualmente, possibilitando a compensação com tributos de espécies distintas, e condicionada a prévio requerimento administrativo (IN SRF 21/97). Em 2002, com a edição da Lei 10.637/2002 (IN SRF 210/2002), o artigo 74 da Lei 9.430 foi alterado para que o contribuinte não mais precisasse apresentar o requerimento de compensação, mas tão somente uma declaração de compensação, sob condição resolutória de sua posterior homologação.

Com algumas mudanças procedimentais, esse é o regime de compensações atual. Portanto, mais de uma década depois da edição da Lei de Execuções Fiscais, foram redesenhadas as regras do regime compensação administrativa de tributos federais, admitindo-se o procedimento por iniciativa dos contribuintes sujeito a posterior homologação por parte da Receita Federal.

Ora, não é possível afastar a interpretação histórica da sistemática da compensação prevista em 1980 pelo artigo 16, §3º, da LEF. Não há como cogitar que a intenção do legislador, ao editar a Lei de Execuções Fiscais, tenha sido a de proibir alegação que era impossível na época, pois fundamentada em algo que inaplicável diante da inexistência de lei.

Nesse sentido, a única interpretação possível e razoável para o artigo 16, §3º, da LEF, é que se veda ao contribuinte invocar a existência de crédito fiscal de sua titularidade para compensar o débito já executado. Ou seja, o que deve ser rejeitada é a busca, por meio de embargos à execução fiscal, de decisão autorizando a compensação judicial como meio de extinção do débito.

E, por esse motivo, ao vedar como matéria de defesa, juntamente com a compensação, a reconvenção, em uma interpretação sistêmica, verifica-se que a LEF pretendeu coibir a alegação de um contradireito em âmbito judicial, que seria capaz de neutralizar o direito da Fazenda Pública de receber o crédito tributário, o que é totalmente diferente de alegar a extinção do débito por meio de compensação na esfera administrativa.

Em suma, de acordo com a interpretação temporal e sistêmica do artigo 16, §3º, da LEF, verifica-se que o contribuinte deve promover a compensação tributária em âmbito próprio (administrativo) e não em sede de embargos à execução fiscal.

E essa situação é totalmente diferente de se alegar a compensação previamente declarada à Receita Federal, como causa de extinção do crédito tributário executado, não se arguindo o mero encontro de contas na esfera judicial.

Sendo os embargos à execução fiscal uma ação de conhecimento de caráter declaratório-constitutivo, é possível que sejam produzidas todas as provas necessárias para que se atestar a invalidade do ato administrativo que deixou de homologar a compensação, com a finalidade de que seja ilidida a presunção de liquidez e certeza da Certidão de Dívida Ativa (CDA).

Para que se preserve o acesso à Justiça e se observem os princípios da instrumentalidade de formas, da economia processual e o intento de resgatar a vocação do processo para resolver o conflito, tão caros ao nosso ordenamento jurídico, principalmente após o Código de Processo Civil (CPC)/2015, é totalmente defensável que a impugnação à liquidez e certeza do crédito tributário seja feita tanto em ação judicial de iniciativa do contribuinte (anulatória, declaratória) quanto em resposta à execução fiscal, por meio justamente dos embargos à execução.

O STJ [3], inclusive, possui entendimento firmado no sentido de que é possível o recebimento dos embargos à execução como ação anulatória autônoma na hipótese em que esses tenham a finalidade de obter declaração de ilegitimidade do débito fiscal e não tenha sido oferecido a garantia à penhora, porquanto ambas as ações têm natureza jurídica de ação cognitiva autônoma e a conversão encontra compatibilidade com os princípios da instrumentalidade das formas e da economia processual.

Além disso, o fato de os tribunais entenderem que há litispendência entre os embargos à execução fiscal e a ação anulatória de débito fiscal comprova a coincidência das partes, do pedido e da causa de pedir.

Convém lembrar que, caso a execução fiscal seja julgada em desfavor do contribuinte quanto ao ato administrativo que não homologou a compensação, a garantia, pressuposto para a oposição de embargos, provavelmente, resguardará a Fazenda, afastando qualquer prejuízo a esta. Ou seja, a vedação da alegação da compensação como matéria de defesa em embargos à execução fiscal só beneficia a Fazenda Pública.

Fica evidenciado, portanto, que o propósito legal não era proibir a alegação da extinção do crédito tributário por compensação, que não foi homologada (ou não declarada). Não se apresenta pertinente o argumento de que a compensação passível de defesa em sede de embargos à execução fiscal somente poderia envolver aquela previamente homologada.

Diferentemente do julgamento do Ministério das Relações Exteriores — Escritório de Representação em São Paulo (Eeresp) nº 1.795.347/RJ, a compensação homologada na esfera administrativa sequer redundaria execução fiscal, na medida em que o crédito tributário estaria extinto na própria via administrativa (artigo 156, II, do CTN). Não faz sentido limitar a inteligência do precedente do REsp nº 1.008.343/SP à hipótese de equívoco da administração tributária ou da Procuradoria da Fazenda Nacional no ato cobrança de crédito extinto.

Esperava-se, com o julgamento dos ditos embargos de divergência, que o tema se consolidasse (novamente, diga-se de passagem) em favor do contribuinte, diante do anterior posicionamento da 1ª Seção do STJ, em sede do recurso repetitivo de relatoria do então do ministro Luiz Fux.

A decisão foi proferida monocraticamente, sendo possível a interposição de agravo para o órgão colegiado, encontrando-se pendente a análise, primeiramente, dos embargos de declaração já opostos pelo contribuinte recorrente.

De todo modo, o cenário se mostra preocupante, diante da alteração jurisprudencial das duas turmas, mais ainda pelo fato de que a Receita Federal não mais tem atuado diretamente nas investigações fiscais, na maioria dos casos, deixando de promover a devida análise nas apurações e livros quando da verificação dos procedimentos de compensação (o que, na maioria das vezes, se dá com base no cruzamento de dados eletrônicos), levando ao aumento exponencial de compensações não homologadas, impondo-se ao contribuinte a defesa da natureza, existência e exigibilidade dos créditos e da legitimidade das compensações, mediante oposição de embargos à execução fiscal, que possibilitam, mediante prévia garantia, a regularização fiscal e renovação de Certidão Positiva de Débitos com efeito de negativa.

Caso prevaleça tal entendimento, restará ao contribuinte discutir a extinção do crédito tributário, mediante compensação, apenas em sede de ação anulatória ou repetição de indébito, conforme o caso, evidenciando-se um contrassenso processual, que, ao final, apenas o penalizará, sujeitando-o à dificuldade de garantia do juízo, ou mesmo impondo a este prévio depósito judicial, para fins de suspensão da exigibilidade fiscal.

 


[1] Vide: AgRg no AREsp 217561/PR; AgRg no REsp 1482273/SC; AgRg no REsp 1271064/RS; AgRg no REsp 1142293/RS; e AgRg no REsp 1085914/RS.

[2] Vide: AgInt no AREsp 1327944 / SP; REsp 1724042 / RJ; AgInt no REsp 1694942 / RJ; AgRg no AgRg no REsp 1487447 / RS; AgRg no AREsp 483254 / ES; e AgRg no Ag 1364424 / PR.

[3] Vide RESP nº 574.357/SP.

Autores

  • é coordenadora do Departamento Tributário do escritório Décio Freire Advogados, professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e MBA e ex-conselheira no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais — CARF/MF.

  • é advogada e consultora tributária, coordenadora do contencioso Tributário no Rolim, Viotti, Goulart e Cardoso Advogados, mestra em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, autora de artigos e capítulos de livros publicados.

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