Justiça Tributária

A modulação das decisões do STF, as razões do Fisco e a irresponsabilidade fiscal

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

19 de abril de 2021, 8h02

Modular significa projetar os efeitos da decisão do STF para o futuro, relativizando a regra geral de que as decisões que declaram a inconstitucionalidade de uma norma tenham efeitos "para trás", isto é, desde sua edição. Isso é regulado pela Lei 9.869/99, artigo 27, que permite que o STF, por maioria de dois terços de seus membros, "ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social" venha a "restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado".

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Essa norma possui duas condicionantes para sua aplicação, quais sejam, razões de: (1) segurança jurídica ou (2) excepcional interesse social. E só pode ser aplicada se oito ministros decidirem pela modulação. Isso aponta para duas travas: (1) uma, de motivação, e (2) outra, de quórum.

Centremos nossa atenção apenas na motivação.

O que pode ser considerado segurança jurídica? Existe na literatura jurídica brasileira duas obras de destaque sobre o tema, uma de Heleno Taveira Torres[1] e outra de Humberto Ávila[2], colegas de Departamento na Faculdade de Direito na USP. Sem o menor intuito de dissecar as mais de duas mil páginas que ambos escreveram sobre a matéria, pode-se dizer que segurança jurídica parte da ideia de estabilidade das relações jurídicas envolvidas, através da aplicação do Direito com integridade e completude, de tal modo que haja previsibilidade em sua aplicação. Em palavras menos nobres: havendo uma norma inconstitucional (que é um pressuposto), a regra geral aplicável é a da retroação dos efeitos da decisão, e somente em caso de possível abalo à segurança jurídica (à estabilidade e à previsibilidade das relações jurídicas) é que poderá ser aplicada a exceção, que é a modulação dos efeitos para o futuro.

Logo, nesta hipótese, trata-se de uma exceção que é condicionada à existência em concreto de um abalo à segurança das relações jurídicas em razão daquela decisão que declara que uma norma é inconstitucional. Só em caráter excepcionalíssimo se pode considerar infringente à segurança jurídica uma decisão que reafirma o texto constitucional, em face da norma que o viola. A afirmação da Constituição é que dá segurança jurídica, e não o contrário. Logo, esta motivação para modular deve ser usada sempre a favor da Constituição, e não contra ela.

E o que pode ser considerado excepcional interesse social?

Novamente trata-se de uma exceção à regra geral, caracterizando-se como um conceito jurídico indeterminado, que não é uma porta aberta para a discricionariedade judicial, pois seus termos são delimitados pelas palavras utilizadas na norma.

Para sua compreensão, deve-se dividir a análise em duas partes.

Observa-se inicialmente que a norma não permite a utilização da exceção em caso de interesse social. O texto é expresso na exigência de excepcional interesse social. A singela existência desse adjetivo “excepcional” já aponta para algo que seja absolutamente fora do padrão, um ponto verdadeiramente fora da curva. Em linguagem popular se pode dizer que a norma, ao exigir que haja excepcional interesse social para justificar a modulação dos efeitos da sentença, aponta para um caso que seja a exceção da exceção.

Falta ainda identificar o que seja interesse social, o qual, somente permitirá a modulação quando ocorrer de forma excepcional. Aqui se identifica uma confusão conceitual enorme entre interesse social, interesse público, interesse estatal e interesse corporativo. Tentemos esclarecer esse pântano conceitual em poucas linhas[3].

Comecemos pelo interesse público, que diz respeito aos interesses representados pelo Estado, pois, formalmente, este representa a sociedade. Logo, à primeira vista, o conceito de interesse público é coincidente com o interesse social.

Ocorre que nem sempre isso ocorre. Interesse social diz respeito aos interesses da sociedade genericamente considerada – a sociedade como um todo, incluindo em alguma medida o campo dos interesses difusos. Observe-se que a norma sob análise usa a palavra interesse social e não interesse público.

A distinção entre esses dois tipos de interesse (público x social) cinde a interpretação do conceito, permitindo identificar diversos outros interesses sob o manto formal do interesse público. Observemos pelo menos dois outros tipos de interesses, o estatal e o corporativo.

O interesse estatal diz respeito aos interesses do próprio Estado, ou, melhor dizendo, do governo de plantão[4], o que nem sempre é coincidente com o interesse social.

E o interesse corporativo ocorre quando diz respeito à uma específica fração de pessoas, que pode ou não ser composta de servidores públicos.[5]

Portanto, é uma tarefa árdua, porém necessária, distinguir quais interesses estão em jogo para bem decidir sobre a modulação dos efeitos, em especial porque muitas vezes eles se sobrepõem, e a norma que rege a modulação só permite quando ocorrer interesse social.

Pois bem, as alegadas razões do fisco para modulação fazem parte do grupo de interesses estatais, que são diferentes do interesses sociais. Explico a razão.

Entenda-se por razões do fisco o usual argumento exposto em incontáveis pedidos de modulação feitos pelos advogados públicos perante o STF alegando o impacto que eventual decisão que adote a regra geral (que anula a norma inconstitucional desde sua edição) acarretará aos cofres públicos. Com isso, diversas cifras são apontadas ao ser esgrimado o argumento, quando, no mais das vezes, o que existe é má gestão e irresponsabilidade fiscal dos governos, como escrevi anteriormente (aqui). Logo, esta alegação parte de uma hipotética identificação plena entre o interesse público e o interesse social, pois menos dinheiro nos cofres públicos poderá afetar toda a sociedade. Porém, será verdadeira essa alegação, ou se está defronte apenas de interesses estatais?

Penso que estas razões do fisco podem até dar a impressão de equivalência entre o interesse público e o interesse social. Todavia, abrindo o foco de análise, pode-se afirmar que se trata de um interesse meramente estatal, isto é, governamental, e que adotar a modulação como padrão para fins tributários ampliará a irresponsabilidade fiscal dos sucessivos governos que se valem de aumento de tributos sem amparo constitucional. Não se pode analisar esta questão sem observar a intergeracionalidade, pois se trata de algo que impactará as futuras gerações.

Isso nos leva a afirmar que a modulação dos efeitos da sentença em matéria tributária concede aos diferentes governos, sucessivos no tempo, um sinal verde para criar tributação inconstitucional sem ser responsabilizado por isso. Dessa forma, ao modular, o STF permite que os governos aumentem a carga tributária de modo inconstitucional, cubram o rombo das despesas públicas, façam superavit primário, e não devolvam um centavo aos contribuintes que arcaram com esse dano financeiro e com o desrespeito constitucional. E isso se torna uma carta de alforria para procedimentos idênticos pelos governos seguintes. Logo, trata-se de um interesse estatal, e não de um interesse social.

Observe-se que é falso o argumento de que haverá irresponsabilidade fiscal se o STF não modular suas decisões em matéria tributária. A realidade aponta para o outro lado. Haverá irresponsabilidade fiscal se o STF modular pois, os sucessivos governos contarão com o beneplácito do STF na eterna modulação de efeitos, sem a necessidade de devolver os recursos que indevidamente arrecadou para cobrir a irresponsabilidade fiscal governamental. Para quem achar esta análise estranha, recomendo a leitura do texto que escrevi nesta Conjur sobre a irresponsabilidade fiscal dos sucessivos governos federais no caso do uso do ICMS na base de cálculo do Pis e da Cofins em face do Anexo de Riscos Fiscais (aqui).

Já passou a hora de o Poder Judiciário, no caso, o STF, fazer respeitar suas decisões. Modular sob o argumento ad terrorem das razões do fisco é fiscalmente irresponsável, e só acarretará um efeito bola de neve, pois os sucessivos governos continuarão a adotar procedimentos irresponsáveis — interesse estatal.

É chegada a hora de dar um basta nessa indiscriminada modulação, sob pena de desmoralizar o sistema, tal como ocorre com os sucessivos adiamentos do pagamento de precatórios, o que já acarretou a completa desmoralização das decisões do Poder Judiciário, cuja eficácia foi pelo ralo.

O STF não pode deixar que essa desmoralização de suas decisões e essa irresponsabilidade fiscal corroam o sistema tributário constitucional, através da modulação dos efeitos de suas decisões, pois se está defronte a interesses estatais e não a interesses sociais — o que afasta a aplicação do art. 27 da Lei 9.869/99, pois não se está defronte a um interesse social, e muito menos a um excepcional interesse social. Tudo indica em sentido contrário.


[1] Torres, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica: metódica da segurança jurídica do Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

[2] Ávila, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012.

[3] Para uma análise mais detalhada, consultar o item 2.2.1 em meu livro Orçamento Republicano e Liberdade Igual, Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2018.

[4] Sobre a distinção entre Estado e governo, ver o instigante livro de OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Indagação sobre os limites da ação do Estado. São Paulo: RT, 2016.

[5] Um caso de interesse corporativo do setor público se identifica na Reclamação 21.586 no qual o STF analisou o pedido do MPF para que seus membros apenas viajem de classe executiva nos voos internacionais, inclusive quando o fazem com acompanhantes.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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