Direito Civil Atual

Breves apontamentos sobre a prescrição intercorrente na MP 1.040/2021

Autores

  • Raphael Fraemam Braga Viana

    é advogado doutorando e mestre em Direito Privado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor assistente do Centro Universitário Estácio.

  • Venceslau Tavares Costa Filho

    é doutor em Direito pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) professor adjunto da Faculdade de Direito da UPE (Universidade de Pernambuco) e da UniFafire membro da Comissão Especial de Responsabilidade Civil do Conselho Federal da OAB e advogado.

19 de abril de 2021, 11h03

Spacca
Apresentamos a apreciação dos leitores nossas reflexões sobre a Medida Provisória (MP) 1.040/2021 na Coluna Direito Civil Atual, da Rede de Direito Civil Contemporâneo [1]. A MP 1.040/2021 surge no ordenamento jurídico com a promessa de modernizar o ambiente de negócios do país e, para tanto, promove uma série de alterações no ordenamento jurídico brasileiro: 1) determina a unificação de inscrições fiscais federal, estadual e municipal no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ); 2) altera a lei das Sociedades Anônimas (SAs) com o intuito de proteger os acionistas minoritários; 3) traz nova regulamentação às profissões de tradutor público e intérprete comercial; 4) trata até da obtenção de energia elétrica.

Entre tais mudanças, poderia até passar despercebida a singela modificação no Código Civil, ao adicionar o artigo 206-A, para prever expressamente sobre prescrição intercorrente: "artigo 206-A. A prescrição intercorrente observará o mesmo prazo da prescrição da pretensão". A justificativa para tal mudança, segundo a exposição de motivos da MP, tem por objetivo "elevar a segurança jurídica, baliza transversal para melhoria dos indicadores do ambiente de negócios (…)". Entretanto, embora a mudança seja vista como positiva por parte da doutrina [2], não compartilhamos de tal otimismo. Em primeiro lugar, o suposto incremento da segurança jurídica no ambiente de negócios é argumento demasiadamente genérico e, por isso mesmo, serviria como uma espécie de coringa para inserir todo tipo de modificação no Código Civil. Sob essa justificativa, a MP poderia muito bem alterar qualquer dispositivo relacionado à Teoria Geral dos Negócios Jurídicos ou ao Direito das Obrigações. Além disso, é preciso destacar que a matéria relacionada à prescrição nem sempre terá relação com o ambiente de negócios, posto que existem normas sobre prescrição em todos os sub-ramos do direito privado [3].

Um segundo ponto que chama a atenção é, mais uma vez, a utilização desnecessária de medidas provisórias para alterar o Código Civil. Ora, o artigo 62 da Constituição Federal é claro ao afirmar a "relevância" e "urgência" como requisitos essenciais na edição de uma MP e, ao menos no que se refere à análise desta alteração específica do Código Civil pela MP n° 1.040/2021, não  se vislumbra qualquer fagulha de relevância ou urgência para justificar o tratamento da matéria por MP. Outrossim, o processo de elaboração de um Código Civil não obedece as mesmas regras pertinentes às leis ordinárias. Como pontuou Paulo Lôbo, o §4º do artigo 64 da Constituição Federal exclui a possibilidade do presidente da República solicitar urgência para a apreciação de Projeto de Código, pois: "o projeto de código, máxime de um Código Civil, repercute na vida cotidiana permanente das pessoas e não pode confundir-se com proposições que envolvem resultados almejados por políticas públicas que são, por sua natureza, contingentes" [4].

Ao enfrentarmos o conteúdo dessa "nova" norma contida no artigo 206-A do Código Civil, infelizmente terminamos por encontrar mais problemas. Trata-se de norma totalmente inócua, que não trará absolutamente nenhuma mudança na aplicação do instituto da prescrição intercorrente na jurisprudência, na doutrina ou em qualquer outro caso que envolva a matéria. Desde 1963, o Supremo Tribunal Federal possui enunciado de súmula (n° 150 [5]) reconhecendo a possibilidade da prescrição intercorrente e seu prazo; de maneira que inexiste qualquer tipo de dúvida ou discussão (na doutrina, na lei ou na jurisprudência); não pendendo qualquer controvérsia acerca do prazo em questão [6].

Em relação ao referido enunciado n° 150 da Súmula do STF, cabe aqui trazer interessantes reflexões feitas por Atalá Correia em tese de doutorado defendida perante a Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, da Universidade de São Paulo:  a) ao "pacificar" que a execução prescreve no mesmo prazo da ação, o enunciado pode levar a conclusão equivocada de que a prescrição está associada à ação processual e que existiriam dois prazos diversos e independentes, um para que se persiga o reconhecimento do direito (cognição) e outro para a execução, "tal como se a sentença produzisse efeito de novação própria da litis contestatio do processo formulário"; b) do enunciado não se pode inferir que existe uma pretensão para cada processo possível, especialmente diante do advento da Lei n° 11.232 de 2005, que acolheu o sincretismo das fases processuais e dispensou a necessidade de nova citação para a execução, "bastando na sistemática do Código de Processo Civil de 2015, intimação para pagar, sob pena de multa" [7]. 

Em verdade, o  dispositivo introduzido pela MP pouco contribui para uma melhor compreensão do fenômeno da prescrição, posto que a mesma norma fala de prazo da "prescrição intercorrente" e de prazo da "prescrição da pretensão"; o que pode levar o intérprete desavisado a pensar que existem dois tipos diferentes e excludentes de prescrição: 1) prescrição da pretensão; 2) prescrição intercorrente. Entretanto, isto não é verdade. A "prescrição intercorrente" e a "prescrição da pretensão" não são conceitos excludentes e nem tipos diferentes de prescrição. Diferentemente do que assevera o enunciado n° 150 da Súmula do STF, a prescrição não fulmina o direito de ação, mas a pretensão [8].

Na terminologia de Pontes de Miranda, diz-se que o fato jurídico que gerou tal direito permanece no mundo jurídico, e continua no plano da existência e da validade (se se tratar de atos jurídicos). Somente a eficácia é que resta obstada, ou (na linguagem de Pontes de Miranda) "encoberta". O direito, portanto, continua existindo, mas encontra-se "encoberto" pelo manto da prescrição, "que foi tecido nas tramas do tempo" [9]. A prescrição intercorrente é espécie de prescrição, e portanto resulta na extinção de uma pretensão (qual seja a pretensão a tutela executiva) pela consumação do respectivo prazo prescricional no curso do procedimento, após interrupção do curso do lapso temporal da prescrição. Poderíamos traçar um paralelo até mesmo com a ideia de negócio jurídico e negócio jurídico processual. Ora, neste caso, é possível aplicar a teoria do negócio jurídico e todos os seus consectários para ambas as situações, as quais  não são excludentes e nem se traduzem em tipos diferentes de negócios jurídicos [10].

Então, se essa nova norma do artigo 206-A do Código Civil serve de algo, é tão somente para dificultar ainda mais as explicações técnicas a respeito do conceito de prescrição e da ideia da prescrição intercorrente. A realização de alterações nas normas de direito privado tão somente com o escopo de apresentar mais uma "novidade" legislativa sem qualquer propósito de resolver reais problemas se mostra uma conduta irresponsável que, infelizmente, vem acontecendo com certa frequência. Ao invés de enfrentar os reais problemas dos institutos de direito privado, que perduram muitas vezes há décadas, a mera alteração legislativa para introduzir um simulacro de novidade legislativa numa norma que em nada fará diferença na aplicação do direito não aconteceu apenas nessa introdução do artigo 206-A do Código Civil. Sem a necessidade de maior esforço, é possível lembrar-se da Lei n° 12.376/2010, que foi criada tão somente para alterar o nome de outra lei: o Decreto-Lei n° 4.657/1942 deixou de ser conhecido como "Lei de Introdução ao Código Civil" e passou a ser denominado de "Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro". A própria Lei n° 12.376/2010, em seu artigo 1º, diz que tal mudança serve para ampliar o campo de aplicação do Decreto-Lei n. 4.657/1942. Este tipo de modificação representa uma má técnica legislativa, pois pode criar problemas interpretativos que não existiam. O que impediria, portanto, um intérprete de considerar que, por conta do artigo 1º da Lei n° 12.376/2010, o Decreto-Lei n° 4.657/1942 não deveria ser aplicado para situações fora do âmbito do Código Civil em momento anterior a vigência da mencionada lei de 2010? São normas inócuas, que não possuem qualquer intenção de alterar entendimentos já aplicados nos tribunais e, quando muito, terminam por causar um certo estranhamento ou confusão a respeito dos casos anteriores à sua vigência por conta da seguinte falsa premissa que o julgador pode vir a considerar no momento da decisão: "Se a alteração legislativa ocorreu agora, é porque, no período anterior à alteração, a interpretação do instituto deve ter sido diferente".

Mesmo dentro do espectro da ideia da prescrição intercorrente há espaço para resolver problemas até hoje não pacificados, de forma que seria muito mais útil uma alteração legislativa que  sanasse uma série de impasses jurisprudenciais quanto a prescrição intercorrente. Pode-se questionar, v.g., como ficaria a fluência do prazo da prescrição intercorrente a partir da teoria dos capítulos de sentença: a prescrição intercorrente das pretensões que decorrem de diferentes capítulos de sentença deveria correr em separado, de forma autônoma; ou com termo inicial unificado, a partir do trânsito em julgado do último capítulo [11]? Apesar de existirem respeitáveis opiniões afirmando que as regras constantes dos parágrafos do artigo 921 do Código de Processo Civil "sepultaram dúvidas" acerca do curso da prescrição intercorrente no caso de suspensão do processo e sobre as providências a serem adotadas pelo juízo após a suspensão [12]esta não é a nossa compreensão. Observe-se, por exemplo, que o juiz deverá determinar a suspensão da execução por um ano caso não sejam localizados bens penhoráveis do executado (CPC, artigo 921, §1º). Durante este lapso o curso do prazo de prescrição intercorrente fica suspenso. Se não houver a localização de bens penhoráveis neste prazo, o juízo deve determinar o arquivamento do feito por um ano (CPC, artigo 921, §2º). Neste caso, questiona-se se cabe falar em prescrição, posto que não se fala em paralisação da execução por inércia (ou omissão) do autor.

Parece-nos correta a interpretação  de que se trata de uma nova hipótese de caducidade, "a pressupor o simples fato da suspensão da execução devido à ausência de bens penhoráveis por lapso temporal idêntico ao previsto nas regras de direito material que definem os prazos prescricionais para o exercício da pretensão respectiva, sendo irrelevante cogitar aí se houve ou não inércia por parte do exequente" [13]. Mas, nos termos do §4º do artigo 921 do CPC, concluído o prazo de suspensão previsto no §1º sem manifestação do exequente,  começa a correr o prazo da prescrição intercorrente. O juízo poderá não determinar o arquivamento porque o exequente peticionou requerendo expedição de ofícios na tentativa de localizar bens do devedor? Veja-se que, na opinião de Tereza Arruda Alvim Wambier e outros autores, a marcha da prescrição intercorrente depende do arquivamento da execução: "só passa a correr a prescrição se for arquivada a execução. Enquanto ela estiver 'viva', diligenciando-se na busca de bens do executado, não se cogita do início da contagem da prescrição" [14].

Trata-se de questão ainda aberto; sem solução clara. Assim, a falta de enfrentamento de problemas efetivos no momento das alterações legislativas na ordem civil e a preferência em positivar entendimentos já pacificados apenas nos reforça a ideia de que algumas alterações, feitas pelo Legislativo e pelo Executivo, não passam apenas de  aparentes novidades que, como já vimos, são capazes de contrariar a própria intenção da nova norma, ao gerar mais insegurança jurídica. Trata-se de técnica de redação legislativa perigosa, o que ressalta a necessidade de uma mudança de postura no tratamento das alterações da legislação na ordem civil.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFam).


[1] Agradecemos aos coordenadores da coluna (Ministros Luís Felipe Salomão, Antonio Carlos Ferreira e Humberto Martins, e Professores Doutores Ignacio Poveda, Otávio Luiz Rodrigues Jr, Larissa Leal, Torquato Castro Jr, Maria Vital, José Antonio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva) pela oportunidade de contribuir.

[2] Cf.:"Além do aprimoramento técnico, a previsão expressa traz mais segurança e reforça o sistema de garantias, uma vez atende à necessidade de que as hipóteses e prazos prescricionais sejam previstos em lei.". (FARIA, Juliana Cordeiro de; MARX NETO, Edgard Audomar. A prescrição intercorrente e a Medida Provisória 1.040/2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-05/direito-civil-atual-prescricao-intercorrente-medida-provisoria-10402021#:~:text=A%20Medida%20Provis%C3%B3ria%20n.,13.847%2F2019)1. Acesso em: 06 de abril de 2021)

[3] Veja-se, por exemplo, o caso do direito de família, no tocante a prescrição da pretensão aos alimentos.

[4] LÔBO, Paulo. Inconstitucionalidades da MP da "liberdade econômica" e o direito civil. Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2019-jun-06/paulo-lobo-inconstitucionalidades-mp881-direito-civil Acesso em: 06 de abril de 2021.

[5] "Prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação".

[6] Inclusive a exposição de motivos da Medida Provisória sob análise indica que se pretende apenas "cristalizar" entendimento já sufragado pelo STF: "Com o objetivo de elevar a segurança jurídica, baliza transversal para melhoria dos indicadores do ambiente de negócios, promove-se alteração pontual no Código Civil para cristalizar o instituto da prescrição intercorrente já consagrado pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula nº 150". Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01l45nsa9q0t8nf0bxjukg31zb5591236.node0?codteor=1985757&filename=Tramitacao-MPV+1040/2021 Acesso em: 06 de abril de 2021.

[7] CORREIA, Atalá. Prescrição e Decadência: entre passado e futuro. São Paulo: Universidade de São Paulo [Tese de Doutorado], 2020, p. 189-190.

[8] COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Breves reflexões sobre a prescrição no Código de Processo Civil de 2015. In: FREIRE, Alexandre; DIDIER JR, Fredie; MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi Medeiros (orgs.). Coleção Novo CPC – Doutrina selecionada – Volume 2: Processo de Conhecimento e disposições finais e transitórias. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 84.

[9] Ibidem, p. 88.

[10] A diferença reside no fato de o "negócio jurídico processual" se tratar de um negócio jurídico que tem por objeto o ajuste, graças à autonomia da vontade das partes, de alguma regra processual à peculiaridade de determinado caso individual.

[11] FELLITE, Beatriz Valente; PRADO, Maria da Glória Ferraz de Almeida. A teoria dos capítulos de sentença e suas implicações no âmbito do cumprimento de sentença. Revista de Processo, v. 213 (novembro de 2012). São Paulo: RT, p. 85-121,versão digital.

[12] Esta é a posição de: OLIVEIRA, Guilherme Peres de. artigo 921. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (orgs.). Comentários ao Còdigo de Processo Civil. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1.212.

[13] NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. A prescrição intercorrente na execução segundo o projeto do Código de Processo Civil. In: DIDIER JR, Fredie; ARAÚJO, José Henrique Mouta; KLIPPEL, Rodrigo (coords.). O projeto de novo Código de Processo Civil – estudos em homenagem ao Prof. José de Albuquerque Rocha. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 318.

[14] WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros Comentários ao Novo Còdigo de Processo Civil. 2 ed. São Paulo: RT, 2016. RT Online.

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