jogo de azar?

Advogados rejeitam proibição de loot boxes, mas defendem ajustes

Autor

19 de abril de 2021, 7h29

Em fevereiro deste ano, a Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Anced) propôs sete ações civis públicas contra desenvolvedoras de jogos eletrônicos para pedir a suspensão das vendas de todos os produtos que contenham loot boxes. O Ministério Público do Distrito Federal já emitiu parecer favorável à proibição desses mecanismos.

Wikimedia Commons
As loot boxes carregam itens variados que só podem ser descobertos após sua aquisiçãoWikimedia Commons

O conceito é bastante famoso no universo dos videogames. As loot boxes são caixas de recompensas inseridas nos jogos, que podem ser adquiridas por meio de recursos do próprio game, moedas virtuais ou até dinheiro real. Elas contêm itens que podem ser aproveitados pelo jogador, mas não é possível saber exatamente quais. 

Ou seja, o jogador tem a garantia de que receberá algo, mas só conhece os detalhes após comprar as loot boxes e abri-las. Assim, a recompensa pode envolver desde os itens mais raros disponíveis no jogo até os itens mais comuns possíveis.

A princípio, esse tipo de recurso era apenas um elemento opcional dos games. Mas com o crescimento da indústria, as caixas de recompensa passaram a ser cada vez mais usadas pelas desenvolvedoras, até tomarem conta de certas produções. O jogo Star Wars Battlefront II, lançado em 2017 pela empresa Dice, é tido como o ápice desse fenômeno. A evolução no jogo dependia totalmente do sistema de loot boxes: o jogador só podia progredir se recebesse bons itens das caixas, o que nem sempre acontecia.

A partir disso, associações de todo o mundo passaram a questionar a validade dessa mecânica e a associá-la a jogos de azar. Agora, esse movimento chega ao Brasil. As ACPs ajuizadas pela Anced na Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal pedem, no total, R$ 19,5 bilhões em indenizações por danos morais coletivos e individuais. Mesmo com manifestação favorável, a promotora Luisa de Marillac Xavier dos Passos apontou que o valor de R$ 1,5 bilhão em uma das ações fugiria à realidade.

A Anced argumenta que as loot boxes contribuem para o vício ou até o desvio de personalidade, especialmente em crianças e adolescentes. Mas a legalidade desse conceito envolve um debate jurídico amplo e complexo.

Loteria virtual
João Pedro Ferraz Teixeira, especialista em Direito e Tecnologia da Informação, aponta semelhanças entre a mecânica das loot boxes e os jogos de azar: "A premiação a ser recebida pelo jogador é variável, tanto em relação ao valor quanto à própria qualidade do item, o que, em muitas hipóteses, pode se assemelhar, também, com o fracasso experimentado nos jogos de azar, já que há possibilidade do prêmio ser bastante inferior ao valor investido", explica o advogado, que é sócio do escritório COTS Advogados, especializado em Cyberlaw e Direito dos Negócios Digitais.

Mas João Vitor Gomes Corrêa, advogado atuante na área civil e consumerista, entende que tudo depende da forma como a empresa apresenta o conceito da loot box e se propõe a vendê-la. Ele exemplifica com o jogo Dota 2, da desenvolvedora Valve, no qual as loot boxes aparecem na tela com um visual de roleta de cassino, praticamente se assumindo como um jogo de azar. Por outro lado, alguns games adotam uma mecânica semelhante a um álbum de figurinhas.

michelmond
Mecânicas das loot boxes são comparadas aos jogos de azarmichelmond

Este último conceito é aproveitado para embasar a visão de Rodrigo Araujo, sócio administrador do escritório Hoffmann Advogados, especializado em Direito Digital: "Não considero que loot boxes violem direitos das crianças mais do que o sistema de vendas de envelopes de figurinhas".

No ordenamento jurídico brasileiro, são considerados jogos de azar todos aqueles que dependem exclusiva ou principalmente da sorte, conforme a Lei das Contravenções Penais. Segundo os juristas, a definição parece ser aberta demais para se chegar a conclusões sobre as loot boxes. Teixeira lembra que tal legislação foi elaborada na década de 1940, ou seja, muito antes da invenção dos videogames e do surgimento de novas modalidades de jogos de azar.

"Ainda que, de forma genérica, tal definição contribua para o enquadramento das loot boxes dentre o rol dos jogos de azar, é necessário que, assim como acontece internacionalmente, a matéria seja devidamente tratada pelo legislador, de modo a refletir a nova realidade em que vivemos, especialmente quanto às peculiaridades do mundo virtual", ressalta Teixeira.

Corrêa acredita que o melhor caminho é garantir a proteção do consumidor e então analisar se, em casos restritos, as caixas são realmente vendidas como jogos de azar. "A partir do momento que se garante transparência, para que o jogador compre uma loot box, mas consiga auditar seus números, é possível eliminar essa característica de jogo de azar".

Pagar para vencer
O advogado Felipe Bezerril, que atua com games no escritório Vital Advocacia Digital, propõe uma avaliação conforme o conceito de pay-to-win, que é usado como justificativa para a proibição. Muitos jogos que passaram a abusar da mecânica de loot boxes receberam essa definição: "pagar para vencer", ou seja, demandam gastos com loot boxes para a progressão do jogador.

De acordo com Bezerril, para o sistema de loot boxes de um jogo ser considerado pay-to-win, ele precisa afetar injustamente a jogabilidade: "Algumas publishers não utilizam loot boxes que façam diferença na mecânica do jogo, apenas afetam o visual", explica.

Segundo ele, em games online de multijogadores em massa — os chamados MMOs —, as loot boxes vêm com itens usáveis que deixam os personagens mais fortes, o que caracteriza o pay-to-win. Por outro lado, em jogos como Counter-Strike, também distribuído pela Valve, e League of Legends, da Riot Games, os itens das loot boxes servem apenas para embelezamento dos personagens e seus equipamentos. Nesses casos, não há pay-to-win.

Reprodução
Alguns games exigem a compra de loot boxes para a progressão do jogador Reprodução

Araujo concorda que as modalidades pay-to-win, especificamente, podem ser equiparadas a jogos de azar, "visto que influenciam diretamente na performance do jogador no momento da partida, o que realmente pode estimular o interesse por aquisição de uma quantidade maior de loot boxes para obtenção de vantagens competitivas".

Demanda de produção
De acordo com Corrêa, muitas desenvolvedoras de games argumentam que as loot boxes não seriam jogos de azar porque seus itens permanecem dentro dos jogos e não podem ser sacados. Porém, em jogos como Counter-Strike, já há algum tempo é possível vender os itens na internet.

Devido ao descontentamento com a aleatoriedade do mecanismo e aos casos de má-fé na comercialização, no Brasil os próprios jogadores pedem a proibição das caixas de recompensas. "Nosso mercado consumidor rejeita completamente a presença de loot boxes em jogos", aponta Corrêa.

Segundo o advogado, o país se encaminha para o banimento das loot boxes, o que ele enxerga como negativo. Corrêa lembra que atualmente, apesar dos lucros altos, os jogos também têm custos extremamente elevados de produção, muitas vezes ultrapassando a casa dos US$ 300 milhões. "As loot boxes também são uma forma de as empresas se sustentarem", destaca.

Araujo vai além: "Muitas vezes as loot boxes são os únicos meios de um determinado jogo se manter financeiramente, visto que o mesmo tem distribuição gratuita". Ao contrário de Corrêa, ele crê em uma decisão favorável às desenvolvedoras, com base nas movimentações recentes para regulação dos jogos e apostas no país.

"Este tipo de barreira, para simplesmente retirar ou suspender a venda desses itens, não acabará com a venda propriamente dita, pois é a maior fonte de receita das empresas. No máximo elas irão sair do país, e quem vai perder é o cenário brasileiro, em termos de visão de mercado", aponta Bezerril. 

Ele também defende um ponto de equilíbrio para conter excessos e exigir transparência. Segundo o advogado, fixar alguma indenização bilionária apenas "taparia o sol com a peneira" e faria com que as desenvolvedoras deixassem de investir no mercado brasileiro, "sem encarar os reais problemas decorrentes da exploração de loot boxes".

Reprodução
Crianças são mais vulneráveis aos efeitos negativos das loot boxes

Proteção de menores
Se a ilegalidade total das loot boxes não é unanimidade, os perigos às crianças e adolescentes, levantados pela Anced em suas ações, não chegam a ser contestados. "Diferentemente dos adultos, as crianças não têm a clara percepção de que, ao adquirir uma loot box, estão, na verdade, entrando em uma espécie de jogo de azar, bem como não possuem a devida clareza ou entendimento sobre o valor dispendido para tanto, tornando-se, assim, vulneráveis às práticas perpetradas os jogos virtuais", indica Teixeira.

Corrêa lembra que adultos chegam a gastar milhares de reais em loot boxes, o que torna as crianças ainda mais suscetíveis a vícios. Ele entende que essas mecânicas sequer deveriam existir em jogos próprios para crianças, ou mesmo jogos com classificação etária livre. Mas, "em jogos voltados para um público consumidor de maior idade, ou para o jovem adulto, talvez seja possível trabalhar com loot boxes de forma mais transparente, que elas possam existir dentro do que a legislação permitir e dentro da segurança para o consumidor", acrescenta.

Para Araujo, o problema está na fundamentação adotada pela Anced, que se utilizou do artigo 80 do Estatuto da Criança e do Adolescente para atribuir responsabilidade às desenvolvedoras pelos danos causados às crianças: "O artigo 22 do mesmo texto legislativo também transfere esta responsabilidade aos pais e responsáveis legais, quando determina o dever de cuidado das crianças e adolescentes. Por isso, entendo não ser válida esta interpretação". Além do acompanhamento dos responsáveis, ele defende uma melhor fiscalização da classificação etária dos jogos por parte dos órgãos competentes.

Soluções e providências
Corrêa reforça que prefere um caminho de transparência e progressividade do que de proibição total, para que as empresas sejam punidas caso realmente usem a mecânica de loot boxes de má-fé. "Talvez não precise de uma nova legislação, apenas aplicar os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor aos jogos eletrônicos em geral", conclui.

123RF
Judicialização das loot boxes pode afetar mercado de videogames 123RF

Bezerril vai de encontro a essa visão. Para ele, "o avanço nesta questão depende de muito mais esforço para entender o mercado do que querer legislar a qualquer custo".

O pensamento é acompanhado por Araujo, que não enxerga necessidade de abolição das loot boxes: "Acredito não haver necessidade de maiores regulamentações, sendo possível alguns ajustes por meio de termo de ajustamento de conduta (TAC), com algumas pequenas mudanças, como as que desenvolvedoras já adotam em outros países".

Já Teixeira entende que o país precisa de atenção quanto aos mecanismos que se assemelham a jogos de azar. "O que precisamos é de regulamentação, isto é, de definições claras do que é permitido ou não, de modo que seja garantida a proteção dos jogadores, especialmente das crianças, e, de outro lado, a liberdade das empresas modelarem e inovarem em seus negócios", arremata.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!