Opinião

O tempo e a manipulação do resultado do processo penal

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18 de abril de 2021, 18h15

É curioso como um dos mais eficientes instrumentos de manipulação de processos e decisões judiciais passa quase sempre desapercebido: o tempo.

Apesar das reformas processuais que vão sendo feitas, pouca importância se dá a esse aspecto tão sorrateiro, mas tão relevante para qualquer tipo de ação judicial.

Nos processos criminais, o transcurso do tempo é o principal causador da sensação de impunidade. O transcurso de meses e anos sem identificação, absolvição ou punição do acusado gera não só indiferença, mas crença coletiva de inexistência de sistema de repressão estatal. Inversamente, o tempo pode ser usado como instrumento de injustiças extremas e indescritíveis, como o caso do homem que ficou preso por dezesseis anos sem que tivesse sido formalmente acusado pelo Ministério Público.

Em 2009, o Supremo Tribunal Federal decidiu que, no âmbito criminal, não seria possível executar provisoriamente a pena imposta antes do trânsito em julgado da ação penal (HC 84.078). Em 2016, o tema voltou a ser apreciado e o entendimento foi alterado para a possibilidade de execução provisória da pena antes do fim da ação (HC 126.292).

No mesmo ano de 2016, foram propostas duas ações declaratórias de constitucionalidade (as ADCs 43 e 44) para que fosse emitido pronunciamento definitivo sobre a questão, dessa vez com efeito vinculante e obrigatório (artigo 28, parágrafo único, Lei 9.868/99). No entanto, referidas ações só foram julgadas no final de 2019, após muita pressão e críticas à atuação da então presidente do STF, que simplesmente não via motivos para que as duas ADCs fossem colocadas em julgamento.

Ações judiciais não precisam de motivo para serem apreciadas. Qualquer pleito, ainda que absurdo, deve ser apreciado o mais rápido possível, ainda que venha a ser sumariamente indeferido. E, no caso, os pedidos das ações não eram absurdos e foram julgados procedentes, após três anos, com consequências significativas para boa parte da população carcerária brasileira.

Ocorre que a inexistência de prazo efetivo para que ações sejam julgadas pode funcionar como poderosa ferramenta de manipulação das consequências e efeitos dos processos, sendo os exemplos mais recentes e proeminentes os que envolvem os julgamentos do ex-presidente da República.

No caso das ADCs 43 e 44, a inércia na apreciação dos pedidos formulados permitiu a manutenção, por anos, da prisão de aproximadamente 4,9 mil pessoas, bem como a manutenção da prisão provisória do ex-presidente da República, em contexto de forte polarização política.

E, especificamente no caso do ex-presidente, o Habeas Corpus que discute a suspeição na ação penal do tríplex foi ajuizado em 2018 (HC 164.493). Nesse mesmo ano de 2018, o julgamento foi iniciado e interrompido, haja vista pedido de vista. Nessa ocasião, o ministro Gilmar Mendes desejava afetar o caso do Pleno do STF, no que foi acompanhado pelo ministro Ricardo Lewandowski, mas ambos ficaram vencidos, permanecendo o caso na 2ª Turma. O julgamento foi retomado somente em 2021, três anos depois, com a devolução da vista.

Ocorre que em 2020 foi ajuizado outro Habeas Corpus pela defesa do ex-presidente, agora questionando a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba para instrução e julgamento da ação penal (HC 193.726). No mesmo ano de 2020, o relator do caso, ministro Edson Fachin, decidiu afetar o julgamento desse Habeas Corpus ao Pleno do STF. No entanto, em 8 de março, o mesmo relator, pressentindo ou não que o primeiro Habeas Corpus, a respeito da suspeição, seria julgado, voltou atrás e revogou a própria decisão de afetação do caso ao Pleno e reconheceu, monocraticamente, a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba, cuidando, desde logo, de assentar que o Habeas Corpus sobre a suspeição estaria então prejudicado, ou seja, não poderia ser apreciado por perda de objeto.

No dia seguinte, foi devolvido para julgamento o primeiro Habeas Corpus, sobre a suspeição do juiz, que aguardava a vista desde 2018. A 2ª Turma, por maioria, considerou que a decisão monocrática do dia anterior, sobre a competência, não impossibilitava o exame da suspeição, e o voto-vista, que reconheceu a parcialidade do então juiz, foi acompanhado pela maioria. Interposto recurso de agravo pelo Ministério Público, o caso voltou a ser afetado ao Pleno pelo relator, denotando movimento oscilante de difícil conciliação com a razoabilidade, ainda que juridicamente válido.

Sem discutir o que foi decidido quanto ao mérito em quaisquer dos casos citados, é notório que o poder de julgar ou colocar ou não uma ação em pauta para julgamento, sem qualquer limitação de prazos mínimo ou máximo, permite a criação de verdadeiro jogo de xadrez, dentro do qual uma consequência, previsível ou não, pode ser atrasada ou adiantada, conforme a conveniência do juiz de turno.

Da mesma forma, sucessivas afetações e desafetações de casos a determinado órgão de julgamento podem transparecer, em tese, tentativa injustificável de manipulação dos resultados, a depender da composição ou do momento em que realizados.

É preciso recuperar e prestigiar a institucionalidade do Poder Judiciário o mais rápido possível.

Não há dúvida de que a realização de justiça pressuponha apuração de fatos e ponderação sobre questões e, por isso, demande tempo. A questão que se coloca, no entanto, é outra. A ausência de critérios temporais efetivos para apreciação ou julgamento de casos submetidos ao Poder Judiciário permite, em tese, a criação de distorções e alterações das regras do jogo e, no entanto, apesar do avanço processual, trata-se de ponto reiteradamente preterido e relegado a meras recomendações legais ou regimentais raramente observadas (por ex.: artigo 800, CPP; artigo 111, RISTF).

Dentro de um sistema processual que se pretende democrático, cujas regras devem ser previamente conhecidas por todos os atores do processo, não há como conceber a existência de prazos peremptórios para todas as partes atuantes (acusação, defesa, peritos e assistentes), mas não para o órgão julgador. A aspiração a qualquer aperfeiçoamento do processo como instrumento de realização de justiça deve necessariamente passar pela criação de regras mais contundentes e previsíveis sobre o tempo e o momento de julgamento dos casos, ou, no mínimo, mediante a previsão de consequências processuais em caso de não atendimento, pelo órgão julgador, aos prazos já previstos nas leis e regulamentos

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