Estado da economia

Modulação de efeitos no STF e interesse social: a má gestão deve ser tutelada?

Autor

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

18 de abril de 2021, 10h44

Após a boa notícia de que o direito financeiro deve estar presente no currículo obrigatório dos cursos jurídicos, nada melhor do que explicitar a importância da transparência fiscal do governo para a sociedade.

Spacca
Como amplamente noticiado, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, agendou para o dia 29 de abril o julgamento dos embargos de declaração da Advocacia Geral da União (AGU) no recurso extraordinário que decidiu pela exclusão do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) da base de cálculo do PIS e da Cofins (RE 574.706/PR, Tema 69 da Repercussão Geral).

Com esse recurso processual, cuja função original é resolver dúvidas, omissões ou contradições, o governo federal busca algo mais: (i) a modulação dos efeitos da decisão do Plenário do STF para algum momento posterior, de forma a garantir que somente seria inconstitucional a atual forma de apuração após tal marco temporal, o que significaria validar todos os recolhimentos indevidos anteriores de quem já discute o tema judicialmente; (ii) reduzir o crédito decorrente da derrota judicial, determinando-o a partir do ICMS apurado e recolhido por cada contribuinte e não pelo valor de ICMS destacado em cada nota fiscal.

Trata-se de uma estratégia ousada e arriscada, porque coloca sob a responsabilidade de uma Corte Suprema e às expensas da sociedade (i) esvaziar sua própria orientação decisória, que data de 2006 e foi sendo confirmada até a decisão com repercussão geral de abril de 2017; (ii) esvaziar o sistema de precedentes, já que o tema vinculante fixado foi adotado pelos juízos singulares e (iii) reformular a forma de apuração dos pagamentos considerados inconstitucionais, exposta no voto vencedor, da Min. Cármen Lúcia, de forma reduzi-la drasticamente.

Se se tratasse apenas de um esforço heroico de uma parte vencida em tribunal, de forma a tentar minimizar sua derrota, estaríamos somente diante de um exercício nobre da advocacia, validamente albergado em nosso ordenamento constitucional e processual. Contudo, tal aposta tem um custo social relevante, que impacta quem não está no controle do lance de azar.

Explico-me: bons gestores buscam evitar exposição a riscos e, quando inevitáveis, buscam minimizá-los; eles respondem perante os donos do capital social, perante os investidores e, de forma indireta, perante o mercado. Quando se trata de orçamento público, a situação não é diferente. O governo central deve controlar os riscos, as exposições e deve minimizá-los de todas as formas, justamente porque responde à sociedade, daí a importância da transparência fiscal e da responsabilidade fiscal intergeracional.

Em maio de 2017, lancei, aqui nesta coluna, a tese de que argumentos de terrorismo fiscal em virtude da derrota do governo não validariam a aplicação da regra de modulação de efeitos, que exige demonstração de segurança jurídica ou excepcional interesse social[1].  A razão para essa tese seria bem simples: seria possível identificar um interesse social do mercado em recuperar valores recolhidos indevidamente e seria possível localizar um interesse social decorrente das contas públicas. Todavia, como quem deu origem ao prejuízo orçamentário foi o próprio governo federal, não se pode tutelar o interesse de quem gerou a inconstitucionalidade e de quem a preservou anualmente.

O governo poderia ter evitado o aumento dos valores a serem devolvidos aos contribuintes se houvesse publicado uma singela medida provisória de poucos artigos, retirando o ICMS da base daquelas contribuições e aumentando a alíquota de forma a recuperar a arrecadação. Ou seja, a sociedade foi prejudicada de forma dupla por tal omissão: as empresas pagaram mais tributo do que a Constituição permite e a sociedade como um todo sofreu com o aumento mensal da derrota do governo, que se comporta como um apostador compulsivo que não sabe o momento de se retirar da mesa de azar, e que, pior, aposta com recursos alheios.

Importante registrar, ainda que a AGU consiga formar maioria no tribunal para reduzir ou eliminar os efeitos orçamentários de sua derrota de mais de 14 anos, tal vitória ainda será uma derrota ao país, já que o governo será responsável pelo custo da perpetuação e multiplicação das ações judiciais, pela necessidade de ingresso de ações rescisórias para tornar sem efeito as ações dos contribuintes que possuem decisões definitivas, pelo custo de fiscalização e, o pior, pelos efeitos econômicos maléficos de se retirar bilhões de reais de empresas que já se apropriaram desses valores, com base em autorizações judiciais específicas. Em termos mais diretos, tratar-se-ia de uma vitória às custas de outra derrota.

Em novembro de 2018, novamente nesta coluna (aqui), adicionei à tese original outro elemento: a irresponsabilidade das contas públicas na classificação de risco (sempre avaliada de forma otimista como de apenas possível de derrota, por vezes em desobediência ao próprio regramento da AGU[2]) e a ausência de critérios objetivos na quantificação do risco de derrota:

"Repetimos: como pode o governo federal insistir nessa estratégia impensada e mesquinha, ao invés de, humildemente, solucionar logo a situação com uma simples medida provisória de poucas linhas, algo que deveria ter sido editado há muitos anos? O prejuízo é de toda a sociedade."

Quando se trata de contas públicas, contudo, há outras características mais relevantes do que a discussão judicial tributária. A insistência compulsiva em apostar alto em uma tese joga para a sociedade a conta da irresponsabilidade de gestão e para ministros de um tribunal superior o dilema de ter que escolher entre tutelar o direito ou a proteção de uma gestão fiscal descuidada e pouco orientada aos interesses sociais.

De lá para cá, além do acréscimo de bilhões de reais mensais na mesa de aposta, houve nova manifestação da PGFN (Ofício SEI nº 92231/2021/ME, de 14/04/2021), endereçado ao presidente do STF, Ministro Luiz Fux, defendendo as razões da modulação de efeitos ou da redução do valor de sua derrota.

Minha intenção é apenas tratar da parte fiscal desse tema, deixando aos demais colegas as já conhecidas e relevantes análises sobre segurança jurídica.

A PGFN alega que o valor de sua (governo federal) aposta representa R$ 258,3 bilhões de reais, se calculado pelo método que ela pretende que seja aceito, ou seja, a partir do ICMS recolhido e não pelo destacado. Afirma que, se o Plenário não concordar com os embargos declaratórios do governo, "o impacto se multiplicará a valores imprevisíveis".

A afirmação da PGFN, sutilmente classificada como potencial geração 'de externalidades sobre inúmeras questões jurídicas correlatas", de difícil apuração de suas consequências jurídicas e econômicas, chama atenção por dois motivos:

1) a apresentação de um número que não vem da Lei de Diretrizes Orçamentárias e que, se fosse estimar a derrota do governo de acordo com  os termos da decisão de 2017 que fixou o tema seria de montante "imprevisível";

2) o caráter contraditório do governo, pois, se o valor potencial da derrota é muito superior, o que o governo fez durante todos esses anos em que deveria (LRF) ter apresentado números confiáveis e explicações metodológicas de sua apuração, ainda que fosse para explicitar as suas dificuldades? Trata-se de orçamento simbólico, controle de contingências manipuladas para não impactar meta fiscal, mas que sempre é alterado quando se trata de impor pressão a julgadores?

Em outros termos, a tese lançada anteriormente nesta coluna parece ainda mais viva: um bom gestor não continuaria a jogar mais fichas em uma aposta incerta, a depender de 11 ministros, cuja função jurisdicional é guardar a constituição, o que não se confunde com remediar erros fiscais tranquilamente evitáveis.

Para elaborar o raciocínio, o art. 4, §3º da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) determina que: "a lei de diretrizes orçamentárias conterá Anexo de Riscos Fiscais, onde serão avaliados os passivos contingentes e outros riscos capazes de afetar as contas públicas, informando as providências a serem tomadas, caso se concretizem".

O último número apresentado pelo governo da contingência em análise está presente na Tabela 16 do Anexo de Risco Fiscal da LDO de 2020 (Lei nº 13.898/2019[3]), em que foram apontados os seguintes valores: R$ 229 bilhões em relação a cinco anos de discussão e R$ 45,8 bilhões por ano. Veja-se:

"PIS e Cofins. Base de cálculo, inclusão do ICMS. Ré: União Questiona-se a inclusão da parcela relativa ao ICMS na base de cálculo da contribuição para o PIS e da Cofins (sistemática da tributação por dentro). Julgado pelo Plenário do STF em repercussão geral desfavorável à Fazenda Pública, mas com embargos de declaração opostos pela PGFN postulando a modulação dos efeitos da decisão, pendente de decisão. RE 574.706 Cálculo para 01 ano: R$ 45,8 bilhões; cálculo para 05 anos: R$ 229 bilhões."

O número apresentado pela PGFN em seu ofício, contando com uma vitória de mudança de critério de apuração, é próximo daquele que, em tese, atenderia aos ditames constitucionais e legais de contas públicas de gestão de risco. Ao declarar, contudo, que a contingência real, que significa o que está em jogo no julgamento do STF, é muito superior e incalculável, lança uma desconfiança ainda maior sobre como o governo federal (em mais de uma gestão presidencial) tem conduzido a política fiscal do país e o processo orçamentário em específico.

O que me faz retomar o questionamento: se é o governo central que deve ser protegido pela decisão excepcional de modulação de efeitos com base no critério legal de excepcional interesse social (art. 27 da lei citada) ou se, em verdade, a sociedade como um todo, e as empresas em específico, não estão sendo vítimas de uma aposta judicial irresponsável?

Apenas como exemplo, se a primeira decisão majoritária do STF desfavorável ao governo foi em 2006 (6×1), e sabendo-se que o governo poderia editar medidas provisórias para expurgar o vício de inconstitucionalidade da apuração das contribuições em tela, imagine-se um simples cálculo de, mesmo sem qualquer reajuste com Selic ou controle de inflação e arrecadação, multiplicar pelos anos em que o governo arriscou-se em uma lide de forte repercussão fiscal, ou seja, 14 anos fiscais, o custo anual da derrota apontado na LDO 2020.

Em outros termos, a edição de uma medida provisória poderia ter evitado uma contingência de R$ 30,23 bilhões por ano (números governo da LDO 2020, subtraídos da arrecadação de IR e CSLL estimada em 34%), multiplicado por 14; ou seja, essa iniciativa simples teria permitido proteger R$ 423,19 bilhões do tesouro, quase 3 vezes o valor apontado em 2020 na LDO como de risco da tese. Uma singela iniciativa dessas evitaria a necessidade de apelo a argumentos de natureza fiscal para a proposta de modulação de efeitos da decisão do Plenário do STF e a pressão sobre ministros que têm como função a proteção da Constituição.

Do ponto de vista fiscal, certamente tal condução durante os últimos 14 anos nos deixou em uma situação sem vencedores. A sociedade perde com a falta de responsabilidade fiscal, os custos jurisdicionais são elevados, as empresas aproveitaram-se de valores autorizados judicialmente, e eventual virada de mesa judicial pode gerar novos custos públicos e efeitos econômicos negativos severos sobre o mercado. Nunca foi tão fácil localizar um erro estratégico de política fiscal.

Por fim, do ponto de vista mais jurídico-argumentativo, ao menos em relação ao pedido de modulação por meio de embargos de declaração, o que está em jogo é a aplicação ou não da regra do art. 27 da Lei 9.868/1999, que prescreve que o STF pode (e não deve), mediante dois terços de seu colegiado, modular os efeitos de uma decisão (de 2017) de inconstitucionalidade com base no critério de segurança jurídica ou excepcional interesse social.

A aplicação desse expediente poderia se dar de duas formas:

1) ou se descuida dos requisitos legais de modulação e simplesmente se alega o custo fiscal da derrota do governo como fundamento da modulação, o que seria o afastamento do direito positivo específico (artigo 27) e do dever de fundamentar decisões judiciais (teste de pedigree e artigo 97, IV da CF/1988[4]);

2) ou o artigo 27 deverá ser interpretado em seus termos ao caso concreto, nessa situação, na decisão se um dos dois requisitos foi atendido: (i) segurança jurídica (não tratada aqui) ou (ii) o tal excepcional interesse social.

O texto de hoje traz mais elementos à discussão exposta nesta coluna em 2017 para reafirmar: a excepcionalidade adotada pelo legislador, quando se trata de apelar para a cláusula de interesse social (“excepcional interesse social) e que o interesse social a ser tutelado é o da sociedade e do mercado e não o das diatribes orçamentárias de quem poderia ter evitado a elevada contingência da discussão judicial. Impossível não relembrar o princípio geral de direito de que ninguém deve se valer de sua própria torpeza. Em economia e na vida aprendemos que os atos e omissões indesejáveis não devem ser incentivados se não os pretendemos ver repetidos.

*Dedico esse texto à memória de meu estimado amigo, recém e precocemente falecido, Marcos "Kichi" Kichimoto, uma pessoa especial e querida por diversas e diversos amigos que ele colecionou na indústria da música, do entretenimento e da boa gastronomia. Que Deus, que o recebeu de braços abertos, conforte a sua família.


[1] Lei 9.868/1999: “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado” (grifou-se).

[2] Regramento esse que, posteriormente, é alterado para afirmar que somente será considerado de risco provável a derrota judicial do governo após o julgamento de embargos declaratórios, ou seja, o risco fiscal do governo permanece como possível mesmo após a declaração vinculante de inconstitucionalidade, fazendo com que o impacto fiscal nas contas públicas, o contingenciamento sejam postergados; algo que deve chocar os contabilistas e o advogados, vinculados a diversas regras de classificação muito mais realista da exposição de risco.

[4] Art. 93, incisos IX, “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!