Embargos Culturais

Mário Losano e "Os Grandes Sistemas Jurídicos"

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

18 de abril de 2021, 8h02

O jurista italiano Mário Losano (nasceu em 1939) produziu extensa e qualificada obra de teoria geral do direito. Apresenta também fortíssima produção no campo do direito comparado. Espírito vivo e curioso, Losano estudou vários modelos normativos. É um jurista do mundo. Muito ligado afetivamente ao Brasil, deixou-nos inovador estudo sobre o jurista sergipano Tobias Barreto. Dialogou intensamente com Miguel Reale. Losano foi precursor dos estudos de informática jurídica. É um jurista com os olhos românticos no passado, e com a percepção intuitiva do futuro.

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Entre seus vários trabalhos, a Editora Martins Fontes publicou "Os grandes sistemas jurídicos". A tradução é de Marcela Varejão e a revisão de Silvana Cobucci Leite. Ao lado de "Os grandes sistemas do direito contemporâneo", de René David, o livro de Losano é excelente opção para quem pretenda estudar seriamente o direito comparado. São leituras questionam o leitor a todo tempo, no sentido de que compreendamos se o direito comparado seria, afinal, disciplina autônoma ou uma metodologia.

Losano expõe as linhas gerais dos sistemas jurídicos europeus e extra europeus. O livro é dividido em dez capítulos. Fecha-os com itinerários bibliográficos. Indica recursos na internet, enciclopédias jurídicas, atlas, bibliografias gerais, bibliografias de artigos de revista, fontes oficiais, dicionários jurídicos, obras históricas e obras gerais sobre os grandes sistemas jurídicos que explora. O levantamento bibliográfico confirma que o ponto central do direito comparado consiste, justamente, na exploração das fontes.

Losano apresenta inicialmente noções fundamentais de direito, de direito positivo, fixando terminologia mínima que deve ser dominada. Exibe as linhas gerais da tradição jurídica da Europa continental, com foco no direito privado, e com uma completíssima explicação sobre o Código de Justiniano. Losano problematiza a unificação do direito privado, e com esse objetivo alcança os códigos nacionais, especialmente a obra legislativa de Napoleão: um lado pouco explorado do pequeno caporal.

No passo seguinte apresenta as linhas gerais da construção do direito público europeu. Reflete sobre a estruturação do Estado contemporâneo. Trata das origens inglesas do constitucionalismo, da revolução norte-americana, dos elementos indispensáveis para a concepção de uma constituição. Explica também a origem e a função do direito administrativo, do direito tributário (especialmente quanto à redistribuição de renda), bem como quanto a relevância jurídica da religião do cidadão. Encerra essa parte tratando das origens do direito penal.

Losano dedicou extenso capítulo ao direito russo e soviético. Apresenta novidade, que consiste na fixação das origens bizantinas do direito russo. Dividiu essa tradição jurídica em várias fases, nomeadamente, a dos principados independentes (988-1917), a da dominação mongol (1237-1480), a do estado moscovita (1480-1689), a do império autocrático (1689-1906), a da monarquia constitucional (10906-1017), a do direito soviético (1917-1991), alcançando o caminho de direção ao capitalismo, especialmente no contexto das reformas da Comunidade de Estados Independentes (CEI). Losano aponta caminhos para estudo dos direitos da Iugoslávia, da Albânia, da Bulgária, da Tchecoslováquia, da Polônia, da Romênia e da Hungria.

O direito na América do Sul é o tema do capítulo que segue. Losano explora as origens do direito latino-americano na tradição jurídica da Península Ibérica. Aproxima essa tradição com a relação dos europeus com os indígenas, a propósito de um genocídio disfarçado em forma de escravidão e de servidão. Explica o "direito indiano", que consistia em sistema normativo que regia os nativos latino-americanos, subjugados pelos espanhóis. Losano conhece muito o direito brasileiro. Redigiu fragmento sobre a transposição do direito português para o Brasil. Concluiu essa parte do livro comentando a importância de três juristas sul-americanos: Andrés Bello, Augusto Teixeira de Freitas e Dalmacio Vélez Sársfield.

Após tratar dos direitos codificados Losano explorou a relação entre costume e direito, do ponto de vista da concepção das fontes normativas. Exemplificou com estudo sobre o direito consuetudinário inglês, explicando a solução do "equity" em face dos problemas do rígido "common law". Seguiu para os direitos consuetudinários africanos. As tradições normativas africanas foram amalgamadas com os modelos jurídicos dos europeus dominantes. O caso da África do Sul, por exemplo, é expressivo. De igual modo, o direito praticado na Índia, que é resultado de tradição religiosa milenar, da influência muçulmana e do domínio inglês.

O capitulo sobre o direito islâmico pareceu-me o mais aliciante. Losano explica os fundamentos jurídicos islâmicos a partir do Corão, no contexto da tradição sagrada (Suna), das interpretações concordantes das várias comunidades muçulmanas (ijma) e das fórmulas surpreendentes de interpretação analógica (qiyas). O direito de família e o sistema de propriedade são os campos que compartilham a maior parte da influência religiosa.

No tema do divórcio, é interessante o uso do Talaq, expressão do idioma árabe que significa divórcio. Pronunciada três vezes, seguidamente, por qualquer meio, inclusive eletrônico, a expressão permite que o esposo muçulmano comunique à esposa que estão divorciados. A decisão é unilateral. Prática religiosa justificável para alguns, medida abominável para outros, o Talaq-e-biddat (isto é, o Talaq triplamente pronunciado) é assunto de recorrente discussão.

Quanto ao direito público muçulmano, o livro de Losano remete-nos a uma modalidade tributária conhecida como Zakat. Tratam-se de valores cobrados dos mais ricos e entregues aos mais pobres. O tributo é calculado com base na propriedade e nas riquezas individuais. O Zakat é objeto de discussão entre as várias escolas do direito islâmico, a exemplo dos Hanafis, dos Jafaris, dos Shafiis e dos Hanbalis. O beneficiário é aquele que nada detém, o pobre, mesmo se fisicamente hábil para o trabalho; é o faquir. Os destituídos seriam aqueles que se encontram em posição pior do que a do faquir.

É princípio do islamismo a ideia de que todas as coisas do mundo pertencem a Deus. Quando as possuímos, a relação seria transitória, e as possuiríamos em regime de confiança. No momento em que doamos parcela do que pretensamente possuímos, obtemos purificação e crescimento. Essas duas últimas palavras traduzem literalmente a concepção de Zakat. De tal modo, por Zakat entende-se a quantidade de dinheiro que todo adulto livre, mentalmente equilibrado e financeiramente capaz, homem ou mulher, deve pagar para os materialmente mais necessitados.

Ao longo dos séculos os muçulmanos têm entregue o Zakat, originariamente em ouro e prata, e posteriormente em todas as demais formas de expressão monetária. O Zakat é devido na passagem do ano lunar. O contribuinte pode deduzir a quantidade de dinheiro que deve a outrem. É expressão de caridade corânica na sua forma mais pura. O Zakat é um dos cinco pilares do Islã, marcado pela ideia da necessidade de se dar esmolas aos pobres.

Losano apresenta-nos interessantíssimos painéis indicativos de penas do direito muçulmano, em suas práticas mais antigas. Provava-se a sodomia mediante quatro testemunhas ou confissões. O réu seria morto por espada e em seguida cremado. Alternativamente, seria sepultado vivo. O homicídio seria provado por duas testemunhas ou por confissões. A sanção consistia na morte, de acordo com o talião, executada pela família da vítima. Concomitantemente, uma indenização, mediante pagamento em dinheiro ou em bens à família da vítima.

O uso de bebidas alcoólicas era comprovado por duas testemunhas, ou confissões. Um homem livre seria penalizado com oitenta chicotadas; o escravo, com quarenta. No caso do furto, duas testemunhas, ou confissões, justificavam a amputação da mão, na altura do pulso, efetuada por um médico. Adúlteros (cujo delito seria comprovado por quatro testemunhas ou confissões) eram penalizados com a lapidação (apedrejamento).

O livro de Losano mostra-nos, no limite, que há muitas semelhanças entre a história do direito e o direito comparado. O historiador do direito compara (de algum modo) as instituições de seu tempo com as instituições dos tempos passados. Os comparatistas comparam instituições de um tempo idêntico. A esse último método chama-se método sincrônico. Àquele primeiro, de diacrônico. Mário Losano é um jurista culto, erudito. "Os grandes sistemas jurídicos" é um livro para quem pretende sair do lugar-comum.

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