Opinião

A representação no estelionato

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

18 de abril de 2021, 13h14

A Lei nº 13.964/2019, que entrou em vigor no dia 23 de janeiro de 2020, acrescentou o §5º ao artigo 171 do Código Penal e alterou a natureza da ação penal para o estelionato em todas suas formas. Com efeito, para as figuras típicas previstas no aludido artigo haverá necessidade de representação do ofendido ou de seu representante legal como condição de procedibilidade para que possa ser promovida a ação penal pelo Ministério Público.

A norma traz exceções em que a ação penal continuará a ser pública incondicionada, levando em consideração a qualidade da vítima. Assim, a ação não dependerá de representação quando a vítima for: 1) a Administração Pública, direta ou indireta; 2) criança ou adolescente; 3) pessoa com deficiência mental; 4) maior de 70 anos de idade ou incapaz.

Nessas situações, entendeu o legislador que a qualidade da vítima exige maior proteção legal, não podendo ela optar pela propositura, ou não, da ação penal, que continuará a ser obrigatória, desde que presentes os elementos necessários para sua deflagração.

No que concerne à retroatividade da norma, há basicamente duas posições.

Pela primeira delas, quando necessária a representação do ofendido ou de seu representante legal, como se trata de norma com reflexo na esfera penal, vez que poderão ser aplicadas ao autor do fato sanções penais, deve retroagir para beneficiar o investigado ou acusado. Por isso, mesmo que já exista processo em curso, anterior à vigência da novel norma, o ofendido ou seu representante legal deverá ser intimado para que manifeste o interesse no prosseguimento do feito, mediante a apresentação de representação, anotando ainda que, pelas penas cominadas e natureza do delito, é possível a realização de acordo de não persecução penal, nos termos do artigo 28-A do Código de Processo Penal, desde que presentes os demais requisitos necessários.

O ofendido, nos crimes de ação penal pública condicionada à representação ou nos casos de ação penal privada, salvo disposição em contrário, possui seis meses para o oferecimento da representação ou para a propositura da queixa-crime.

Esses seis meses são contados do dia em que o ofendido tomou conhecimento da autoria delitiva ou, no caso de ação penal privada subsidiária da pública, do dia em que se esgota o prazo para o oferecimento da denúncia (artigo 103, do CP).

A novel legislação não indicou prazo para o oferecimento de representação para a hipótese retratada, visto que apenas alterou a natureza da ação penal para pública condicionada à representação, com exceção dos casos expressamente mencionados.

Com efeito, por ausência de norma expressa, pode, subsidiariamente, ser aplicada a regra prevista no artigo 103 do Código Penal, que prevê o prazo de seis meses para o oferecimento da representação.

Outra solução é a fixação de prazo pelo magistrado para que a representação seja oferecida.

Não apresentada a representação no prazo determinado, será julgada extinta a punibilidade do autor do fato, nos termos do artigo 107, inciso IV, do Código Penal (decadência).

Anotamos, contudo, que a representação não exige forma especial. Assim, já existindo nos autos elementos concretos a indicar que o ofendido manifestou a vontade de processar o autor do delito, como a lavratura do boletim de ocorrências ou o requerimento para a instauração de inquérito policial, não há necessidade de que seja intimado para o oferecimento da representação, devendo o processo tramitar normalmente.

Já a segunda posição, que defendemos, secundada por decisões do Superior Tribunal de Justiça e uniformizada por sua 3ª Seção, é no sentido de que a norma deve retroagir apenas à fase policial, por se tratar a representação de condição de procedibilidade e não de prosseguibilidade da ação penal pública a ela condicionada [1].

Não obstante a representação ser norma de caráter misto ou híbrido, com reflexos no direito processual e penal, seus efeitos não podem alcançar o ato jurídico perfeito, ou seja, o oferecimento da denúncia. Por isso, a retroatividade da representação para os casos em que ela se faz necessária deve ficar circunscrita à fase policial, não alcançando a processual. Do contrário, perderia sua natureza de condição necessária para a deflagração da ação penal (procedibilidade) e passaria a ser exigência para o seu prosseguimento (prosseguibilidade), efeito este não previsto na novel norma.

Já o Supremo Tribunal Federal, em sede de Habeas Corpus, por sua 1ª Turma, também decidiu que a norma retroage apenas à fase policial, sendo incabível a representação para os processos em que o Ministério Público houver oferecido a denúncia, posto que, naquele momento, a norma processual então aplicável definia como pública incondicionada a ação penal para o estelionato [2].

O marco para a não retroatividade da norma é o oferecimento da denúncia, já que, a partir desse momento, como não mais pode haver a retratação da representação (artigo 25, do CPP), estar-se-á diante de ato jurídico perfeito, pouco importando que a vítima não mais demonstre interesse no prosseguimento do feito.

Destarte, os tribunais superiores concluíram que a norma em comento retroage apenas à fase policial pelo fato de a representação não ser condição de prosseguibilidade, mas de procedibilidade da ação penal pública a ela condicionada e, a partir do oferecimento da denúncia, está presente o ato jurídico perfeito, que não mais pode ser alterado pela exigência da representação para a continuidade da ação penal.

 


[1] STJ: HC nº 610.201-SP, 3ª Seção, Rel. Min. Ribeiro Dantas, m.v, j. em 24.03.2021.

[2] STF: HC nº 187.341, 1ª Turma, Rel. Min. Alexandre de Moraes, v.u., j. em 13.10.2020.

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    é procurador de Justiça - MPSP, professor, palestrante, mestre em Direito da Relações Sociais pela PUC/SP, especialista em Direito Penal pela ESMP/SP, autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicados pela Editora Juruá.

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