Opinião

A LSN merece ser revisitada em observância aos pilares da democracia

Autor

  • Suzana Mendonça

    é mestre em Ciências Jurídico-Políticas especialidade de Direitos Fundamentais e especialista em Bioética pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa membro da Comissão de Assuntos Constitucionais da OAB-DF advogada.

17 de abril de 2021, 18h15

A Constituição de 1967 previa o Conselho de Segurança Nacional, na Seção V, intitulada "Da Segurança Nacional", presente no Capítulo VII, que dispunha sobre o Poder Executivo. O primeiro dispositivo da referida Seção assinalava o seguinte:

"Artigo 89 —
 Toda pessoa natural ou jurídica é responsável pela segurança nacional, nos limites definidos em lei".

Tendo como base o referido comando, foram editados quatro atos legislativos que versavam sobre a segurança nacional ao longo do regime militar. Em 1967 e 1969, decretos-lei definiram os crimes contra a segurança nacional, enquanto em 1978 e 1983, leis abordaram a temática. A segurança nacional era, portanto, tema de elevada consideração ao longo do referido regime.

Importante registrar ainda que, no Capítulo VII da aludida Constituição, a Seção VI encabeçava as disposições acerca "Das Forças Armadas", ou seja, as Forças Armadas representavam órgão integrante do Poder Executivo, mesma condição assumida pelo Conselho de Segurança Nacional [1].

A Lei nº 7.170/1983, ainda vigente, editada com fundamento no mencionado artigo 89, define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelecendo seu processo e julgamento, tendo como uma das principais características a utilização da técnica legislativa de redação aberta, que proporciona espaço suficientemente amplo para enquadrar fatos variados nos tipos penais previstos ao longo do texto. Considerando a realidade experimentada no período em que a lei passou a vigorar, os tipos penais abertos e vagos certamente viabilizavam a imposição de sanções decorrentes de manifestações contrárias ao regime militar.

O advento da Constituição da República de 1988, contudo, inaugura uma nova ordem constitucional, alicerçada em valores e princípios profundamente distintos daqueles sobre os quais se assentou a Lei de Segurança Nacional (LSN). A ordem constitucional vigente confere amplo espaço à participação popular, congregando toda a multiplicidade de percepções políticas inerentes à sociedade plural a partir da consagração do pluralismo político em seu artigo 1º, V, bem como da liberdade de expressão e de manifestação de pensamento em seu artigo 5º, IV.

Não se afirma aqui que a mera edição de lei antecedente à Constituição de 1988 a torna incompatível com o texto constitucional, até mesmo porque o acervo normativo presente quando da instauração da nova ordem constitucional pode sustentar compatibilidade vertical com os dispositivos constitucionais, conservando diplomas legais de elevada projeção na rotina social, a exemplo do próprio Código Penal. Entretanto, alguns preceitos constantes da Lei de Segurança Nacional de 1983 revelam-se inconciliáveis com os pilares do Estado democrático de Direito.

Os avanços sociais certamente devem ser acompanhados pela evolução do Direito, não sendo diferente no que tange o conteúdo expresso pela Lei de Segurança Nacional. Diversamente da matriz a partir da qual a LSN foi concebida, a Constituição da República de 1988 expressa a manifesta vontade do legislador constituinte de assegurar direitos fundamentais e meios de participação democrática dos indivíduos.

Um Estado democrático de Direito, como o brasileiro, concede aos seus cidadãos a possibilidade de exprimir seus pensamentos livremente, agregando substancialmente ao desenvolvimento democrático a partir da consideração de toda a pluralidade de expressões, nas balizas da convivência social harmônica. Conferir aos indivíduos meios para exprimir suas ideias está conectado com o nível de avanço democrático de uma nação, na medida em que reflete a relevância que a estrutura sociopolítica atribui aos cidadãos, às suas posições pessoais e ao respeito por entendimentos divergentes.

A manifestação de pensamento, inclusive, adquiriu contornos diferenciados na era digital a partir da inserção das redes sociais no espaço democrático, encurtando distâncias e facilitando as interações pessoais. Apesar das inquestionáveis virtudes propiciadas, o ambiente virtual tem sido altamente fecundo à disseminação de desinformação e de manifestações desmedidas e abusivas, revelando o fenômeno da conversão da liberdade de expressão em instrumento de exercício de caos social e de desrespeito mútuo.

A realidade com a qual infelizmente se tem convivido em tempos recentes consiste na invocação da liberdade de expressão para sustentar condutas desviadas, como canal condutor de proliferação de fake news, de práticas discriminatórias e de concepções antidemocráticas. O abuso do direito constitui comportamento que avança a passos largos, sem a correspondente resposta do Direito para evitar eventuais excessos.

Porém, uma conduta abusiva não deve desencadear outra conduta abusiva.

O abuso de direito não deve ensejar o abuso de poder.

Pelo contrário, o Estado, como principal responsável pela efetivação de direitos fundamentais, deve assegurar os meios para o pleno exercício de liberdades, protegendo simultaneamente os agentes que emitem sua manifestação de pensamento e os afetados por tal expressão.

No entanto, revela-se contraproducente em termos práticos  e democráticos  a utilização de lei intensamente desconectada da realidade na qual se situa a sociedade para coibir abusos decorrentes do exercício desfigurado da liberdade de expressão [2], especialmente considerando duas premissas: o Estado democrático de Direito inaugurado em 1988 e a evolução digital.

A essência do Direito gira em torno da sua utilidade prática para a sociedade, consistindo justamente na sua aplicabilidade na rotina das pessoas e na disponibilização de soluções juridicamente seguras aos conflitos que naturalmente exsurgem das relações sociais. Por essa razão, o Direito deve acompanhar os avanços experimentados pela coletividade para amoldar-se às necessidades e demandas coletivas que se despontam frequentemente.

O Direito não deve estacionar no passado, pelo contrário, deve mover-se no presente em direção ao futuro.

Considerando o contexto de sua gênese, a Lei de Segurança Nacional nasceu e envelheceu debilitada. A razão de sua existência foi sustentada em regime que não contemplava a democracia e os direitos fundamentais, uma vez fundado na Constituição de 1967, que se referiu à expressão "segurança nacional" 18 vezes. Por outro lado, a vontade do legislador constituinte originário de 1988 pode ser observada pela singela constatação de que o mesmo termo encontra apenas uma correspondência na Constituição da República de 1988 (artigo 173), ao se referir à intervenção do Estado na ordem econômica por razões de segurança nacional.

Para além da dissonância entre as premissas que inspiraram o legislador constituinte de 1988 e o conteúdo da LSN  que já se revela circunstância suficientemente apta à realização de exame acerca subsistência ou não da lei no ordenamento jurídico , os aspectos próprios da inserção de ferramentas tecnológicas ao espaço democrático também devem ser considerados. A utilização de uma lei que traz soluções obsoletas e ultrapassadas para problemas modernos não detém a força de resolver adequadamente todo o complexo de efeitos potencialmente produzidos a partir do exercício da liberdade de expressão, especialmente no âmbito da era digital.

Assim, revela-se essencial que o Estado, por intermédio de sua função judicial, coloque-se em posição de reflexão quanto à recepção ou não do referido diploma pela ordem constitucional vigente. Igualmente, exige-se atuação equilibrada e segura do Estado, por intermédio da função legislativa, de modo a oferecer à sociedade norma aderente à contemporânea realidade democrática, mediante a adoção de soluções legislativas inovadoras e compatíveis com as premissas que norteiam o Estado democrático de Direito e os desafios próprios dos avanços tecnológicos.

A Lei de Segurança Nacional, nesse sentido, merece ser revisitada em cada um de seus dispositivos, em observância aos pilares da democracia brasileira. Alcançar o ponto de equilíbrio entre os múltiplos valores e princípios envolvidos revela-se premente para assegurar a segurança jurídica, a pacificação social, a proteção dos direitos fundamentais e a necessária compatibilização do Direito com a realidade.

 


[1] Diferentemente do que estabelecia a Constituição de 1967, as Forças Armadas não integram o Poder Executivo, uma vez que a partir da Constituição de 1988, compõem o espaço das Instituições Democráticas, como estipula o Título V "Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas". Já o Conselho de Segurança Nacional foi extinto pela Constituição de 1988, que, por sua vez, previu o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, ambos colegiados com composições e atribuições diversas daquelas previstas em 1967 para o Conselho de Segurança Nacional.

[2] Os direitos fundamentais não são absolutos, na medida em que podem ser objeto de restrição, desde que ocorra nos limites constitucionais, de maneira proporcional e devidamente motivada.

Autores

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    é advogada sócia do escritório Grace Mendonça Advogados. Mestranda em Ciências Jurídico-Políticas, Especialidade de Direitos Fundamentais na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Especialista em Bioética pelo Centro de Investigação de Direito Privado da Universidade de Lisboa.

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