Opinião

Exclusão da tese da legítima defesa da honra foi vitória para o Direito brasileiro

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17 de abril de 2021, 7h12

Foi uma importante vitória para o Direito brasileiro a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Declaratória de Preceito Fundamental nº 779, protocolada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), com os 11 ministros votando pela inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio.

O feminicídio é a expressão mais extrema e irreversível de violência e discriminação contra mulheres, pois atenta radicalmente a todos os direitos e garantias estabelecidos nas leis internacionais e nacionais sobre direitos humanos. Esse crime é um ato de ódio que distorce de forma extrema todo o sentido de humanidade. Consolida no tempo a visão hegemônica masculina sobre as mulheres como propriedade, objeto de transgressão e símbolo de fraqueza, reforçando a configuração da estrutura de poder do sistema patriarcal de dominação.

A questão foi levada ao Plenário, uma vez que, em julgamento realizado pelo Supremo em 29/9/2020, no HC 178.777/MG, por três votos, proferidos pelos ministros Marco Aurélio, Dias Toffoli e Rosa Weber, contra dois, de Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, a 1ª Turma do STF reformou os acórdãos do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que haviam anulado decisão do Tribunal do Júri que absolvera um homem da prática de tentativa de feminicídio contra sua ex-companheira.

Com o julgamento do citado writ, a 1ª Turma do STF entendeu que a absolvição do réu, ante resposta a quesito específico, independe de elementos probatórios ou de tese veiculada pela defesa, considerada a livre convicção dos jurados, conforme expresso no artigo 483, §2º, do Código de Processo Penal.

No caso, o réu era confesso e alegou que sua ação foi desencadeada por imaginar ter sido traído pela ex-companheira. Ele a atacou a facadas na saída da igreja, tendo sido preso imediatamente após os fatos. No julgamento pelo Tribunal do Júri, os jurados responderam afirmativamente aos quesitos que avaliavam a materialidade e autoria. O terceiro quesito, referente à absolvição genérica, também foi respondido afirmativamente, restando, assim, absolvido o réu da imputação de tentativa de feminicídio contra sua ex-companheira. Em Plenário, a defesa fez uso da tese da legítima defesa da honra.

Este tipo de situação já havia gerado entendimento diferente do STF, pois em março de 2019 questão idêntica foi objeto de julgamento da mesma 1ª Turma (no RHC 179.559), ocasião em que se entendeu, também pelo placar de três a dois, pela possibilidade de recurso por parte da acusação. A mudança de posicionamento se deu por conta de alteração dos componentes da 1ª Turma, já que o ministro Luiz Fux (que votou no sentido de admitir o recurso por parte da acusação), ao assumir a presidência do STF, foi substituído por Dias Toffoli, que votou com o relator, não admitindo a possibilidade de recurso.

O placar continuou sendo de três a dois, porém a decisão se inverte para não admitir que haja recurso por parte do Ministério Público nas hipóteses em que a absolvição tenha como fundamento o quesito absolutório genérico.

Outro aspecto que há de se considerar na ADPF foi a participação, de forma inédita, da Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica, na condição de amicus curiae (amigo da corte), conforme o artigo 138 do Código de Processo Civil, que permite a participação no processo de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada com representatividade adequada.

A ABMCJ ingressou no julgamento, por entender que a situação inspira cautela e reflexão, sobretudo pela total afronta ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e em razão da finalidade institucional da entidade, que atua também para possibilitar o resgate da condição da mulher na sociedade brasileira, resguardando, assim, o Estado democrático de Direito, que se instalou em nosso país com o advento da Constituição de 1988.

A Constituição Federal, ao definir os fundamentos do Estado democrático de Direito, propôs como princípios basilares a defesa da dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Coincidentemente, essas também são as finalidades institucionais da ABMCJ, previstas em seu estatuto social. Por isso, a sua participação na condição de amicus curiae é legítima, salutar, recomendável e de interesse de toda a sociedade, na medida em que envolve a discussão acerca da dignidade da mulher vítima de feminicídio.

A ABMCJ atuou para auxiliar o STF na aplicação do Direito à luz do julgamento com perspectiva de gênero atendendo, inclusive, a Recomendação nº 79/2020 e a Resolução nº 254/2018, ambas do Conselho Nacional de Justiça. Os dois instrumentos apontam para a necessidade de adequação da atuação do Poder Judiciário para consideração da perspectiva de gênero na prestação jurisdicional.

O Brasil é o quinto país no mundo em índices de mortes de mulheres, o que deixa clara a dramática realidade da condição da mulher no Brasil nos tempos atuais. É por isso que representou um enorme prejuízo para a população feminina a hipótese de se reinserir no sistema jurídico brasileiro a vetusta, inconstitucional e inconvencional tese da legítima defesa da honra, que se encontrava praticamente erradicada da nossa realidade e que, a partir de 2015, inclusive, recebeu o tratamento jurídico diferenciado, pela Lei 13.104/2015, por meio da qual criou-se a figura do feminicídio, ao incluir mais uma qualificadora ao homicídio, qual seja, a morte de uma mulher por razões da condição de sexo feminino, que ostenta, inclusive, a configuração de crime hediondo.

A criminalização do feminicídio tem como um de seus objetivos superar a tolerância às teses de legítima defesa da honra e de julgamento da moral da mulher. Matar uma mulher em razão de menosprezo à sua condição de gênero é um crime grave e que merece punição rigorosa. O que se pretendeu acentuar é o fim de valores culturais sexistas discriminatórios. A legítima defesa da honra confronta diretamente com a dignidade da pessoa humana, um importante valor constitucional.

A dignidade humana da mulher é frontalmente violada quando não se respeita o seu direito de livremente determinar com quem, quando e onde pretende se relacionar. E, ainda, quando o exercício de tal direito é repreendido com a perda da sua vida. E, ainda, quando aquele que ceifa a vida da mulher que não mais quis se relacionar com ele tem sua ação justificada juridicamente, isentando de punição o autor do feminicídio. É, portanto, indigno que, de forma direta ou direta, a ação de matar alguém que exerceu um direito à sua liberdade possa receber respaldo jurídico de alguma ordem.

Ao se aceitar a possibilidade de arguição da tese de legítima defesa da honra, o sistema de Justiça afronta também outro dispositivo constitucional, o parágrafo 8º do artigo 226, que representa uma importante diretriz de enfrentamento à violência familiar e um mandado constitucional de proteção a esse tipo de violência.

Portanto, além de inconstitucional, essa desrespeitosa tese é inconvencional, por descumprir os comandos estabelecidos em importantes documentos internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), que considera o feminicídio como a expressão mais extrema e irreversível de violência e discriminação contra mulheres, que atenta radicalmente a todos os direitos e garantias estabelecidos nas leis internacionais e nacionais sobre direitos humanos.

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