Opinião

A prescrição na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos

Autor

  • Everson da Silva Biazon

    é procurador do Estado do Paraná pós-graduado em Direito do Estado e professor convidado do programa de pós graduação da Univel e Unipar. Foi Procurador Jurídico do CRO/PR e professor da graduação da Universidade Tuiuti.

17 de abril de 2021, 6h36

A Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Lei nº 14.133/2021, trouxe grandes inovações às licitações e contratações públicas. Reservamos, para este ensaio, a abordagem dada à prescrição das infrações administrativas.

A Lei nº 8.666/93 não prevê, na parte sancionatória, prescrição das penalidades a que está sujeito o contratado, de forma que se aplica a Lei nº 9.873/99, observada a limitação espacial desse diploma legislativo, cuja incidência se reserva à Administração Pública federal e aos entes federativos que, expressamente, tenham-na adotada. Já para os estados e municípios que não seguem a Lei nº 9.873/99, a prescrição se rege pelas regras do Decreto nº 20.910/32 (Precedentes: TJ-PR — 4ª C.Cível — 0040413-44.2017.8.16.0000; STJ — AgInt no REsp 1665491/PR).

No entanto, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos dispõe em seu artigo 158, §4º:

"Artigo 158  A aplicação das sanções previstas nos incisos III e IV do caput do artigo 156 desta Lei requererá a instauração de processo de responsabilização, a ser conduzido por comissão composta de 2 (dois) ou mais servidores estáveis, que avaliará fatos e circunstâncias conhecidos e intimará o licitante ou o contratado para, no prazo de 15 (quinze) dias úteis, contado da data de intimação, apresentar defesa escrita e especificar as provas que pretenda produzir. (…)
§ 4º A prescrição ocorrerá em 5 (cinco) anos, contados da ciência da infração pela Administração, e será:
I – interrompida pela instauração do processo de responsabilização a que se refere o caput deste artigo;
II – suspensa pela celebração de acordo de leniência previsto na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013;
III – suspensa por decisão judicial que inviabilize a conclusão da apuração administrativa".

O prazo quinquenal prescricional indica que a Administração Pública deve iniciar a apuração da infração dentro de cinco anos, a partir do momento que teve (condições) conhecimento dos fatos.

O primeiro apontamento que merece destaque diz respeito ao termo inicial prescricional (a ciência pela Administração). Aqui, parece-nos que começa a fluir o prazo prescricional a partir do momento em que a Administração Pública tem efetiva condição de cognição sobre o fato que enseje apuração de responsabilidade.

Em outras palavras. Não bastará a declaração do agente público certificando que não sabia a respeito do ilícito ou que soube a partir de dado momento. Os atributos dos atos administrativos não prestam a legitimar omissão ou dissimulação. Precisará ser analisado se, nas condições concretas, o agente público tinha condições de saber que o comportamento do contratado se dirigia contrário ao Direito.

O direito de punir estatal nasce com a violação das normas que deveriam ser respeitadas pelo contratado; enquanto que a prescrição começa a correr da cognição da infração pelo titular do poder sancionatório.

Vale lembrar que para a identificação da autoria se aplica a boa-fé (subjetiva), analisando a situação sob uma perspectiva ética, a indicar que para estar de boa-fé, exige-se, para além da mera crença interior, que o sujeito não tenha condições de saber que certa conduta é ilícita, não sendo a ele possível exigir que, nas condições que se encontrava, poderia ter pleno conhecimento sobre os fatos.

A propósito, no Direito Penal, tendo sido aplicada a teoria da cegueira deliberada (willful blindness), para os casos em que o sujeito se coloca em uma situação de ignorância, procurando não aperfeiçoar seu conhecimento sobre os fatos, de modo a não alcançar um maior grau de certeza acerca da potencial ilicitude de sua conduta e assim evitar a imputação do crime por ausência de dolo (conhecimento e vontade), no que se tem aplicado a citada teoria para alcançar os sujeitos que assim agem, porquanto, nitidamente, quem provoca o próprio desconhecimento sobre o ilícito deve se equivaler à assunção do risco da sua cognição sobre ele.

O mesmo se aplica à Administração Pública que, diante de uma ação ou omissão ilícita de seus contratados, não pode se colocar em posição de desconhecimento para administrar o termo inicial prescricional. Daí porque, tendo efetivas condições de conhecimento sobre os fatos infracionais, tem fluxo o prazo previsto no artigo 158, §4º, da Lei 14.133/2021.

Outro realce que precisa ser feito concerne ao diálogo entre o caput do artigo 158 e seu §4º. Numa leitura superficial e literal, poder-se-ia dizer que a prescrição tratada no §4º somente se aplicaria às penalidades de impedimento e declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública (artigo 156, III e IV, mencionados no caput do artigo 158).

Não é isso. O silêncio do caput do artigo 158, quanto à multa e advertência (artigo 156, incisos I e II), a toda evidencia, não poderia legitimar o argumento de que se pretendeu a imprescritibilidade da multa e advertência.

Na verdade, o §4º do artigo 158 não conversa com o caput. Numa técnica legislativa mais aprimorada, as regras do §4º constariam em artigo autônomo, o que mitigaria discussões sobre o alcance da norma. Como se percebe, no caput (e parágrafos 1º ao 3º) do artigo 158 há contornos mínimos ao órgão encarregado de apurar as infrações e aos prazos de atos processuais, matérias que não guardam pertinência com aquela prevista no §4º do mesmo artigo, que trata da prescrição da pretensão punitiva.

Por isso, entendemos que a melhor exegese é que o artigo 158, §4º, disciplina a prescrição de todas as penalidades previstas no artigo 156, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

O ponto nuclear, no entanto, concerne à prescrição intercorrente, isto é, aquela que incide no curso do processo disciplinar, pela paralisação injustificada ao longo do tempo [1] e que, infelizmente, não foi tratada no artigo 158, §4º.

Disso resultam, ao menos, duas questões jurídicas importantes.

A primeira, como mencionado no início, em respeito à limitação de incidência da norma, o prazo de três anos de prescrição intercorrente, previsto no artigo 1º, §1º [2] da Lei nº 9.873/99, será aplicável às infrações previstas na lei nº 14.133/2021, para a Administração Pública federal?

Parece-nos que sim. É que a prescrição intercorrente da Lei nº 9.873/99 se harmoniza com a garantia fundamental da duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII, da CF), converge com o princípio da eficiência administrativa (artigo 37, caput, da CF), além de punir a morosidade do Estado sancionador em prol do administrado e da estabilidade das relações sociais.

Congruente a isso, parece-nos inexistir obste em dialogar a Lei nº 14.133/2021, com a Lei nº 9.873/99, aplicando essa, em complemento aquela, uma vez que a Lei nº 9.873/99 é norma geral em matéria prescricional no âmbito da Administração Pública federal, não havendo motivo que autorize uma interpretação restritiva a afastar a regra do §1º do artigo 1º da Lei nº 9.873/99 às infrações da Lei nº 14.133/2021.

A outra questão se refere aos estados e municípios que, à mingua de lei própria (ou lei nacional) estabelecendo prescrição intercorrente, permanecem sem a aplicação desse instituto nos processos de apuração de responsabilidade instaurados na forma da Lei 14.133/2021.

Por mais intragável que seja essa conclusão, capaz de gerar processos com alta temporariedade (sem justificativa idônea), contrariando uma pauta de princípios como a eficiência e a justiça (ao distanciar no tempo o julgamento das infrações, aumentam-se as chances de decisões injustas), o fato é que o trabalho do interprete não pode resultar na criação de norma estabelecendo prazo prescricional ao direito punitivo estatal. A reserva de lei em matéria sancionatória, disciplinando prescrição, confere segurança jurídica, tanto à sociedade como aos administrados e jurisdicionados.

A disciplina da prescrição intercorrente nos estados e municípios é tão desejada que a própria Lei nº 14.133/2021 pressupôs já a existir, uma vez que previu no artigo 158, §4º, inciso III, hipótese de suspensão da prescrição por fato (decisão judicial) que inviabilize a conclusão da apuração administrativa (claramente se referindo a processo administrativo em curso).

De toda forma, se inexiste previsão legal para prescrição intercorrente nos processos sancionatórios dos estados e municípios, inócua será a previsão do artigo 158, §4º, III, da Lei nº 14.133/2021 a esses entes federativos. O ideal, contudo, seria o tratamento uniforme da prescrição intercorrente em todo o território nacional.

Por fim, merece comentário adicional a hipótese de suspensão da prescrição mencionada no artigo 158, §4º, III, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

O legislador previu a suspensão da prescrição tão somente por decisão judicial, esquecendo-se que a decisão do juízo arbitral [3] também poderá resultar em obstáculo a continuidade do processo administrativo.

Observe-se que a lei estipula como causa de extinção do contrato administrativo a decisão arbitral (artigo 138, III), assim como estabeleceu a arbitragem como meio de prevenção e resolução de controvérsias (artigo 151), reconhecendo sua juridicidade, o que legitima concluir, numa interpretação extensiva, dando completude ao seu sistema normativo, que a decisão arbitral também pode suspender o fluxo prescricional no processo administrativo de responsabilização.

Essas são nossas considerações a respeito da prescrição tratada na Lei nº 14.133/2021.

 


[1] Na prática, pode-se afirmar que os atos de instrução obstam a consumação da prescrição intercorrente. Precedentes: STJ, REsp 1431476/PE e REsp 1351786/RS.

[2] "§1º. Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso".

[3] Lei 9.307/96: "Artigo 22-B – Parágrafo único. Estando já instituída a arbitragem, a medida cautelar ou de urgência será requerida diretamente aos árbitros". 

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