Opinião

A incoerência jurídica na manutenção do ICMS no cálculo da CPRB

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16 de abril de 2021, 6h34

Em decisão que contrariou as expectativas dos contribuintes, o Pleno do Supremo Tribunal Federal finalizou, no dia 24 de fevereiro o julgamento do REsp nº 1.187.264 (Tema 1048), fixando a tese de que "é constitucional a inclusão do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS na base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB)".

A recente decisão do STF gerou perplexidade entre os tributaristas devido à sua incompatibilidade com o paradigmático julgamento do REsp nº 574.706 (Tema 69), finalizado em 2017, no qual o Supremo definiu, em sede de repercussão geral, que "o ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins". O reconhecimento da inconstitucionalidade da inclusão do ICMS no cálculo do PIS e da Cofins decorreu da delimitação do conceito constitucional de receita bruta/faturamento, nos termos do que dispõem as Leis nº 10.637/02 e nº 10.833/03 e o artigo 12 do Decreto-Lei no 1.598/77.

Para concluir pela inconstitucionalidade da inclusão do ICMS no cálculo do PIS e da Cofins, a Suprema Corte analisou o conceito constitucional de receita e definiu que o termo não comportaria a inclusão do imposto estadual no seu cálculo, conforme evidenciado no voto da ministra relatora Cármen Lúcia: "Desse quadro é possível extrair que, conquanto nem todo o montante do ICMS seja imediatamente recolhido pelo contribuinte posicionado no meio da cadeia (distribuidor e comerciante), ou seja, parte do valor do ICMS destacado na "fatura" é aproveitado pelo contribuinte para compensar com o montante do ICMS gerado na operação anterior, em algum momento, ainda que não exatamente no mesmo, ele será recolhido e não constitui receita do contribuinte, logo ainda que, contabilmente, seja escriturado, não guarda relação com a definição constitucional de faturamento para fins de apuração da base de cálculo das contribuições".

A Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB) foi instituída pela Lei nº 12.546/11, que determinou, inicialmente de forma cogente e posteriormente de forma facultativa, que empresas de setores específicos substituíssem o recolhimento da contribuição previdenciária incidente sobre a folha de remunerações pela incidência sobre a receita bruta. A lei não definiu o conceito de receita bruta, o que foi feito pela Receita Federal no Parecer Normativo nº 03/12 [1], segundo o qual a base de cálculo da CPRB é a receita bruta conforme conceito tradicionalmente adotado pela legislação tributária, notadamente para a apuração do PIS e da Cofins.

Dada a identidade de bases de cálculo, era esperável que o entendimento fixado para o PIS e a Cofins, em relação à inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na sua base de cálculo, fosse igualmente aplicado à CPRB. Tanto que, em 2019, no julgamento dos Recursos Especiais Repetitivos nº 1.629.001/SC, nº 1.638.772/SC e nº 1.624.297/RS (Tema 994), o Superior Tribunal de Justiça fixou a tese de que "os valores de ICMS não integram a base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB), instituída pela Medida Provisória nº 540/2011, convertida na Lei nº 12.546/2011".

Contudo, surpreendentemente, ao analisar a inclusão do ICMS no cálculo da CPRB (Tema 1048), o Pleno do STF, por sete votos a quatro, acolheu a tese divergente encampada pelo ministro Alexandre de Moraes, de que a CPRB seria um benefício fiscal e que tal natureza inviabilizaria a exclusão do ICMS do seu cálculo, já que caberia ao contribuinte aderir ou não ao favor fiscal nos exatos termos da legislação. Segundo Moraes, abater o ICMS do cálculo da CPRB ampliaria demasiadamente o benefício fiscal, pautado em amplo debate de políticas públicas tributárias. Vide:

"Logo, de acordo com a legislação vigente, se a receita líquida compreende a receita bruta, descontados, entre outros, os tributos incidentes, significa que, contrario sensu, a receita bruta compreende os tributos sobre ela incidentes.
Conforme já mencionado, a partir da alteração promovida pela Lei 13.161/2015, as empresas listadas nos artigos 7º e 8º da Lei 12.546/2011 têm a faculdade de aderir ao novo sistema, caso concluam que a sistemática da CPRB é, no seu contexto, mais benéfica do que a contribuição sobre a folha de pagamentos.
Logo, não poderia a empresa aderir ao novo regime de contribuição por livre vontade e, ao mesmo tempo, querer se beneficiar de regras que não lhe sejam aplicáveis".

Com a devida vênia, trata-se de entendimento equivocado. Primeiro porque desconsidera que a instituição da CPRB tem como base constitucional a redação original do §13 do artigo 195 da Constituição Federal [2], que somente foi revogado em 2019 (Emenda Constitucional nº 103). A previsão constitucional era expressa ao instituir a possibilidade de substituição da contribuição sobre folha de pagamentos pela incidente sobre a receita ou faturamento.

A previsão do §13 do artigo 195 da Constituição Federal em momento algum vincula a possibilidade de substituição da tributação da folha de pagamentos pela receita bruta como um tipo de benefício fiscal, inclusive porque não é possível definir de forma absoluta qual será o efeito dessa substituição, que depende da situação específica de cada contribuinte e também de sazonalidades da economia.

A instituição da CPRB, como demonstra a exposição de motivos da Medida Provisória nº 540/11 (que foi convertida na Lei nº 12.546/11), vincula-se a vários objetivos extrafiscais e não exclusivamente a eventual redução de carga fiscal. Cite-se:

"18. Além das medidas expostas, propõe-se substituir pela receita bruta a remuneração paga aos segurados empregados, avulsos e contribuintes individuais contratados, como base de cálculo da contribuição previdenciária devida pelas empresas que atuem nos setores contemplados.
19. Nos últimos anos, em virtude da busca pela redução do custo da mão de obra, as empresas passaram a substituir os seus funcionários empregados pela prestação de serviços realizada por empresas subcontratadas ou terceirizadas. Muitas vezes, as empresas subcontratadas são compostas por uma única pessoa, evidenciando que se trata apenas de uma máscara para afastar a relação de trabalho. (…)
22. A importância e a urgência da medida são facilmente percebidas em razão do planejamento tributário nocivo que tem ocorrido mediante a constituição de pessoas jurídicas de fachada com o único objetivo de reduzir a carga tributária, prática que tem conduzido a uma crescente precarização das relações de trabalho; bem como, em razão do risco de estagnação na produção industrial e na prestação de serviços nos setores contemplados".

Veja-se que a instituição da CPRB tem também objetivos fiscais, vinculados à incremento de arrecadação, através do aumento da produtividade da economia e do combate, ao que a exposição de motivos trata como planejamento tributário nocivo, do processo de "pejotização". Esse contexto desconstrói o argumento principal do voto vencedor e também reforça o desproposito de se buscar aplicar a regra do artigo 155, §6º, da CF/88 ao caso, já que se trata de tributação substitutiva, vinculada à base de incidência própria, e não redução da base de cálculo da contribuição sobre a folha de pagamentos.

Além disso, gerou estranhamento o fato de o ministro Alexandre de Moraes, com base na atual redação do artigo 12 do Decreto-Lei 1.598/1977, argumentar que "receita líquida compreende a receita bruta, descontados, entre outros, os tributos incidentes, significa que, contrario sensu, a receita bruta compreende os tributos sobre ela incidentes".

Não há no voto do ministro a explicitação de qual o motivo pelo qual o STF estaria interpretando a legislação federal que regulamenta o conceito de receita bruta, para a CPRB, de forma diversa daquela que fixou para o cálculo do PIS e da Cofins.

No julgamento do REsp nº 574.706 (Tema 69), ministros que restaram vencidos naquela oportunidade, caso de Dias Toffoli [3], trouxeram essa mesma argumentação, centrada na alteração do 12 do Decreto-Lei 1.598/1977 pela Lei nº 12.973/2014, para defender que o conceito legal de receita bruta abrangeria o valor referente ao ICMS destacado em nota fiscal. Contudo, essa argumentação foi enfrentada e refutada pelos votos dos ministros que reconheceram a inconstitucionalidade da inclusão do imposto estadual no conceito de receita bruta utilizado pela Constituição Federal. Inclusive houve debate específico, sobre essa questão, naquela sessão de julgamento.

A guisa de exemplo, cite-se o voto da ministra Rosa Weber no julgamento do Tema 69:

"Com a EC nº 20/1998, que deu nova redação ao artigo 195, I, da Lei Maior, passou a ser possível a instituição de contribuição para o financiamento da Seguridade Social alternativamente sobre o faturamento ou a receita (alínea 'b'), conceito este mais largo, é verdade, mas nem por isso uma carta em branco nas mãos do legislador ou do exegeta. Trata-se de um conceito constitucional, cujo conteúdo, em que pese abrangente, é delimitado, específico e vinculante, impondo-se ao legislador e à Administração Tributária. (…) Pois bem, o conceito constitucional de receita, acolhido pelo artigo 195, I, 'b', da CF, não se confunde com o conceito contábil. Isso, aliás, está claramente expresso nas Leis nº 10.637/2002 (artigo 1º) e nº 10.833/2003 (artigo 1º), que determinam a incidência da contribuição ao PIS/Pasep e da Cofins não cumulativas sobre o total das receitas, 'independentemente de sua denominação ou classificação contábil'. Não há, assim, que buscar equivalência absoluta entre os conceitos contábil e tributário".

Inequívoco que, para manter a coerência do sistema tributário, a CPRB somente pode incidir sobre a receita bruta, na qual não se inclui o ICMS, conforme já havia sido reconhecido pela Suprema Corte. Ao prever a incidência da CPRB sobre a receita bruta, o legislador se vinculou ao conceito técnico jurídico de receita, absorvido pela Constituição, que, como visto, não inclui o ICMS.

Não se desconhece que o tema do conceito infraconstitucional de receita bruta, está consignado nos aclaratórios que a União Federal apresentou em face do acórdão do REsp nº 574.706. Contudo, entendemos que se trata de matéria já avaliada e afastada pela maioria do Pleno do STF, e que não poderia ser desconsiderada quando da avaliação do conceito de receita bruta para a CPRB.

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp nº 1.629.001/SC, pela sistemática dos repetitivos, efetuou a correta correlação entre o entendimento do STF sobre a exclusão do ICMS da base do PIS e Cofins e a discussão para a CPRB, conforme o claríssimo voto da ministra Regina Helena Costa, verbis:

"Cumpre recordar, dada a estreita semelhança axiológica com o presente caso, que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar, em regime de repercussão geral, o REsp nº 574.706/PR, assentou a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS nas bases de cálculo da contribuição ao PIS e da Cofins. Entendeu o Plenário da Corte, por maioria, que o valor de ICMS não se incorpora ao patrimônio do contribuinte, constituindo mero ingresso de caixa, cujo destino final são os cofres públicos, conforme acórdão assim ementado: (…)
Note-se que, pela lógica do raciocínio abraçada no precedente vinculante, a inclusão do ICMS na base de cálculo de contribuição instituída no contexto de incentivo fiscal, não teria, com ainda mais razão, o condão de integrar a base de cálculo de outro tributo, como quer a União em relação à CPRB, porque, uma vez mais, não representa receita do contribuinte".

Revela-se incoerente o entendimento consagrado pelo STF no julgamento do REsp nº 1.187.264 (Tema 1048), que considerou legítima a inclusão do ICMS no cálculo da CPRB. A ausência de um racional sólido que justifique a diferença do entendimento da corte sobre o mesmo instituto, a receita bruta, traz enorme perplexidade e insegurança jurídica para todos aqueles que operam com o Direito Tributário. Apesar de lugar comum, não é despropositado reiterar que a instabilidade e a incoerência na aplicação do direito obstruem o livre exercício da atividade econômica, causam insegurança aos investidores, e contribuindo para a da crise econômica porque passa o país.

O acórdão do Tema 1048 ainda não foi publicado, mas, espera-se, que sejam opostos embargos de declaração, arguindo equívocos e obscuridades no acórdão, entre eles os que estão sendo apontados nesse singelo artigo. O que daria a oportunidade de a corte avaliar melhor a questão, de forma a se evitar a situação de difícil entendimento e coerência sistêmica, de que haveriam conceitos jurídico-constitucionais distintos para a mesma grandeza tributável.

 


[1] "[…] 9.1. Deveras, impende reconhecer que, na redação vigente das normas supracitadas, não há inovação em relação à definição de receita bruta já tradicionalmente constante de outras legislações. Com efeito, analisando-se as disposições do inciso I do artigo 187 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, do artigo 12 da Decreto-Lei nº 1.598, de 26 de dezembro de 1977, e do artigo 44 da Lei nº 4.506, de 30 de novembro de 1964, constata-se que, na redação atual, as normas relativas à Contribuição para o PIS/Pasep e à Cofins adotaram, quanto ao regime de apuração cumulativa, a definição de receita bruta desde há muito entabulada na legislação do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza" (grifo dos autores).

[2] Sobre a base constitucional, cite-se trecho do voto do ministro Marco Aurélio no REsp 1.187.264: "A União, em contrarrazões, aponta fundamentada a tributação na alínea "a" e no § 13 do artigo 195 em vez da alínea "b" do inciso I, destacando que o conceito de receita bruta deve ser o contido em legislação ordinária, não na Carta da República. Frisa ausente sujeição do legislador à rigidez da moldura constitucional quando da criação de regime tributário privilegiado e facultativo, a exemplo do Imposto sobre a Renda na modalidade lucro presumido".

[3] "Nesse sentido, de modo legítimo dispõem as atuais leis dos regimes cumulativo e não cumulativo que a base de cálculo do PIS/Cofins compreende a receita bruta de que trata o artigo 12 do DL nº 1.598/77, cujo §5º afirma que nela se incluem "os tributos sobre ela incidentes". Ao lado disso, aquelas mesmas leis estabelecem que não integram a base de cálculo dessas contribuições as receitas referentes a certas situações, como vendas canceladas e descontos incondicionais concedidos. As exclusões exemplificadas, de fato, prescindiriam de previsão legal, já que estão fora do âmbito da materialidade das contribuições em comento, o que não ocorre com o ônus financeiro do ICMS repassado para o preço da mercadoria ou do serviço e, ao fim, transferido para a receita ou o faturamento".

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