Prática colonialista

Informante é condenado a indenizar jornalista da Folha por ofensas de cunho sexual

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16 de abril de 2021, 11h14

A promulgação da Constituição de 1988, embora tenha, em seu artigo 5º, caput, vedado qualquer forma de discriminação, não conseguiu eliminar, no plano fático, todas as práticas colonialistas. O tratamento da mulher como objeto de dominação, por exemplo, está presente nas diversas relações públicas e privadas no Brasil.

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ReproduçãoHans River durante depoimento à CPMI

Foi o que afirmou o juiz André Augusto Salvador Bezerra, da 42ª Vara Cível de São Paulo, ao condenar Hans River do Rio Nascimento, ex-funcionário de uma empresa de disparos em massa, a indenizar em R$ 50 mil a jornalista Patrícia Campos Mello por ofensas proferidas durante depoimento na CPMI das fake news.

Hans River foi informante da jornalista em uma reportagem publicada na Folha de S. Paulo sobre disparos em massa nas eleições de 2018, que teriam beneficiado o então candidato Jair Bolsonaro. Ao depor na CPMI, Hans disse que Patrícia teria se insinuado sexualmente a ele em troca de informações. A jornalista, então, ajuizou a ação. 

Na sentença, o magistrado citou um famoso retrato, tirado por um francês no início do século XIX, que mostra uma escrava brasileira usando uma máscara facial que a impedia falar. "Em obra escrita a partir da sua defesa de doutorado, Grada Kilomba utiliza a máscara como uma metáfora do silenciamento imposto pelo colonialismo como um todo", afirmou. O juiz, então, aplicou ao caso o conceito de colonialismo.

Segundo ele, colonialismo é silenciar, tratar o outro como objeto ou como inferior para ser dominado: "Ao longo da História, em termos raciais, têm-se os casos de negros e indígenas, tratados como objetos de dominação via trabalho escravo e usurpação de territórios; em termos de gênero, mulheres, tratadas como objeto de dominação sexual em favor do homem branco, a ponto de, por séculos, terem sido impedidas de votar e consideradas incapazes para os atos da vida civil".

Para Bezerra, é "absolutamente esperado" que jornalistas renomadas, como Patrícia Campos Mello, sejam criticadas por suas reportagens. Mas, completou o juiz, não foi o que aconteceu no caso em questão, em que as críticas dirigidas à autora pelo réu não focam no trabalho como jornalista, mas sim em sua condição de mulher.

"Focam a sua condição de mulher, o objeto de dominação sexual, conforme históricas práticas colonialistas que, em pleno século XXI, ainda proporcionam forma ao sexismo. Afinal, segundo o réu, a autora trabalharia oferecendo favores sexuais em troca. Volta-se, então, à metáfora de Grada Kilomba. O recado parece evidente. Sob tal raciocínio, as mulheres devem ser silenciadas; não podem ter uma posição social de destaque; não pode pronunciar-se; devem limitar à posição de objeto de exploração sexual", completou.

O magistrado disse ainda que a isonomia entre homens e mulheres, consagrada constitucionalmente, impõe respostas jurídicas à discriminação ocorrida no plano fático por meio do dever de indenizar pelos danos morais ocorridos, nos termos do artigo 186 do Código Civil e do artigo 5º, V e X da Constituição.

"A acusação em debate gerou na vítima evidentes ofensas extrapatrimoniais, atingindo-a como ser humano que, certamente, teve sério trauma. Cabe salientar que tais sofrimentos são evidentes e a demonstração de existência dos mesmos independe, realmente, de maiores comprovações, além das constantes nos autos", finalizou Bezerra.

Processo 1017115-13.2020.8.26.0100

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