Opinião

O abuso de autoridade na história constitucional brasileira

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15 de abril de 2021, 19h20

Aprovada após quatro anos de intensos debates, a Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019) impôs à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) um papel capital na preservação da mais basilar prerrogativa da democracia, o direito de defesa. Zelar pelo devido processo legal e pelo respeito à presunção de inocência serve não somente para salvaguardar os que são deveras inocentes — ainda que investigados ou réus —, mas, sobretudo, para conferir legitimidade às penalidades aplicadas a quem de fato infringiu as regras.

Essa conquista básica da cidadania só se efetiva no momento em que a advocacia é exercida livremente, sem embargos de coações e violências, conforme estipulam a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994). A nova legislação aprofunda, por conseguinte, marcos que já constavam da tradição jurídica nacional — apesar dos regimes de exceção nos interregnos da normalidade.

Os abusos de autoridade são rechaçados no Brasil desde a Constituição Política do Império, de 1824. O documento tem um rol de dispositivos que demarcavam os limites da atuação dos agentes do Estado. O inciso 3º do artigo 133 definia, por exemplo, que os "ministros de Estado serão responsáveis" por "abuso de poder". Já o artigo 156 assentava, expressamente, que "todos os juízes de Direito, e os oficiais de Justiça são responsáveis pelos abusos de poder, e prevaricações, que cometerem no exercício de seus empregos".

A carta outorgada por Dom Pedro I não para por aí. No inciso 29 do artigo 179, previa que "empregados públicos são estritamente responsáveis pelos abusos, e omissões praticadas no exercício das suas funções". No tocante à prisão, o diploma do século 19 pontuava, no inciso 10º do mesmo artigo, que, à exceção do "flagrante delicto", se a prisão for arbitrária, "o juiz, que a deu, e quem a tiver requerido serão punidos com as penas, que a lei determinar".

Na Constituição do Brasil República, de 1891, o cuidado com o tema se projetou de tal maneira que o parágrafo 9º do artigo 72 chegou a estabelecer que "é permitido a quem quer que seja representar, mediante petição, aos Poderes Públicos, denunciar abusos das autoridades e promover a responsabilidade de culpados". Outro artigo notório é o 82: "Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos".

Em outros termos, mas com igual espírito, ambos os preceitos foram mantidos na Constituição de 1934, da Segunda República. Esta tratou de ir adiante e dispor sobre a punição dos mandatários no parágrafo 10º de seu artigo 175: "O presidente da República e demais autoridades serão responsabilizados, civil ou criminalmente, pelos abusos que cometerem".

Já a Constituição do Estado Novo, de 1937, suprimiu as providências anteriores, dado o caráter autoritário do governo de Getúlio Vargas. Todavia, restou o artigo 158, que pontificava o seguinte: "Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos".

Com a Constituição de 1946, a condenação aos excessos volta a figurar no ordenamento pátrio, conservando-se, inclusive, na Constituição de 1967 — redigida já sob a ditadura militar —, que assentou, no parágrafo 30 de seu artigo 15, o direito de qualquer pessoa de representar e peticionar aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra abusos de autoridades.

Vale destacar, outrossim, a Lei 4.898, de 9/12/1965, assinada pelo general Castello Branco, que constituía como abuso de autoridade "qualquer atentado à liberdade de locomoção, à inviolabilidade do domicílio, ao sigilo da correspondência, à liberdade de consciência e de crença, ao livre exercício do culto religioso, ao exercício do voto, ao direito de reunião, à incolumidade física do indivíduo e aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional"

Esses exemplos comprovam que o combate ao abuso de autoridade foi uma preocupação dos constitucionalistas tupiniquins, mesmo nos períodos da história em que o totalitarismo vigorou. É natural, portanto, que na Carta de 1988 — chamada, não à toa, de Constituição Cidadã — tais fundamentos estejam assentados ainda com mais energia.

Embora todas essas normativas mencionadas admitam a possibilidade de recursos contra os abusos de autoridade, apenas a Lei nº 13.869/2019 veio, do ponto de vista formal — além de tipificar a conduta, com a fixação de sanções aos infratores — criminalizar a violação de prerrogativas da advocacia. Semelhante mister se fez necessário porque muitos órgãos de investigação, nos últimos anos, à guisa de combater à corrupção, implementaram práticas nada republicanas e que pouco respeitaram o devido processo legal e a presunção de inocência. O resultado foi o enfraquecimento do direito de defesa. 

Atenta a essa realidade, a OAB aprovou, em agosto do ano passado, um provimento para disciplinar e orientar a atuação do Conselho Federal e dos Conselhos Seccionais da entidade na defesa de advogados que tenham sofrido abuso de autoridade ou violação de prerrogativas. Desde então, apesar da reiteração dos casos, aguardamos uma guinada rumo a práticas mais respeitosas — o que pode ser um alento num mundo em que, por toda a parte, a democracia sofre tentativas de vilipêndio.

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