Opinião

A inaplicabilidade da teoria da perda de uma chance de cura no cenário pandêmico

Autores

  • Renata Luchini Paes da Silva

    é advogada do escritório Blasquez da Fonte Advogados mestre em Direito Médico e Bioética pela St. Mary's University Twickenham Londres e pós-graduada em Direito Médico e da Saúde pela Faculdade Legale.

  • Durval Silvério de Andrade

    é advogado pós graduado em Direito Médico e da Saúde pela Faculdade Legale palestrante e professor convidado.

  • Ana Carolina Daher Costa

    é sócia do escritório Daher Costa Advocacia mestranda em Ciências da Saúde pelo IAMSPE pós-graduanda em Direito Médico e da Saúde pela Faculdade Legale e professora de pós-graduação de Direito Médico e da Saúde e Gestão Hospitalar.

15 de abril de 2021, 16h07

A teoria da perda de uma chance, parte d’une chance, apesar de não encontrar amparo legal específico no ordenamento jurídico brasileiro, tendo seu primeiro julgado no país apenas em meados da década de 2000, já vinha sendo estudada desde a década de 60 por franceses, ingleses e norte-americanos, percebendo-se seu forte emprego no sistema common law [1]. No entanto, a partir de 2005 a teoria passou a ganhar força e alimentou a formação doutrinária, passando a ser aceita e utilizada no Brasil. Ela encontra-se dentro dos conceitos de responsabilidade civil, que, como sabido, é o conjunto de regramentos que possibilita a reparação de prejuízos causados a alguém. No entanto, a maior controvérsia que ronda a temática é exatamente a ideia da probabilidade em que se baseia a teoria, o que torna muito difícil a comprovação do fato. Enquanto que a responsabilidade civil é uma obrigação de ressarcir os danos sofridos, a teoria da perda de uma chance está fundada na ideia de oportunidade ou expectativa perdida, qual seja, a vítima foi impedida de conquistar um benefício, por culpa de um agente lesionador. Dessa forma, a indenização cabível será de uma possível chance e não de um efetivo ganho perdido [2].

E é essa a dificuldade da temática, o fato de realmente saber se a oportunidade em questão realmente existiria se não houvesse a intervenção do agente lesionador. Para isso, é necessário que haja o cumprimento de três requisitos para que a obrigação de indenizar seja concretizada: o dano efetivo, a conduta ilícita do agente (ação ou omissão) e o nexo causal. "Para auxiliar na análise do caso concreto e diferenciação do dano decorrente da perda de uma chance do dano eventual, hipotético, importante que seja examinada a probabilidade da ocorrência desse resultado final que era pretendido, ou seja, é necessária uma nítida compreensão de que aquela chance que se alega perdida pela vítima seria muito provável de se alcançar se não fosse a conduta do agente que violou a expectativa" [3].

No entanto, o intuito deste artigo é trazer essa teoria para a área médica, mais especificamente fomentando uma reflexão da teoria aplicada às consequências que se desdobrarão do atual momento vivenciado em virtude da pandemia do Covid-19, partindo da premissa que a teoria da perda de uma chance está fundada na ideia de oportunidade perdida, e não no dano em si, ressaltamos que no cenário da saúde essa expectativa do paciente enquanto vítima é a sua cura, ou ao menos uma situação de melhoria, evitando um prejuízo maior. A responsabilidade civil do médico, enquanto profissional liberal, é, em regra, subjetiva  ele assume em sua relação com o paciente a obrigação de "meio", e não de "resultado". Portanto, é necessário que o profissional tenha agido com negligência, imprudência ou imperícia no exercício de sua profissão, somando-se aos dois outros elementos obrigatórios da responsabilidade civil: os danos e o nexo de causalidade, como já mencionado, e que encontram respaldo no do Código de Defesa do Consumidor [4].

A culpa, no cenário trazido a este trabalho, se caracteriza pelo fato de não terem sido dadas ao paciente todas as chances de se recuperar. Indeniza-se, portanto, a chance perdida, estando a culpa do profissional presente em seu agir [5]. Importante diferenciar da situação em que o profissional, ainda que cumpra todos os requisitos necessários e ainda assim não haja um resultado satisfatório, não poderá ser julgado como incompetente, pois o mesmo não pode garantir a cura total do paciente. "Nos casos de aplicação dessa teoria, o médico, embora agindo com culpa, não é a rigor, o causador do dano. A relação de causalidade que se estabelece entre a culpa do médico e o dano do paciente não é, portanto, natural, mas sim estritamente jurídica. Não há efetivamente um dano, e sim, a perda da possibilidade de alguém auferir alguma vantagem, em virtude da conduta de outrem" [6] Portanto, a chance perdida deve ser séria, real e palpável e o que será indenizado não é a perda da vantagem em si, mas a perda da oportunidade de conseguir tal vantagem, que pode ser configurada pelo erro de diagnóstico ou pelo tratamento inadequado aplicado ao paciente, causando prejuízos à sua saúde, ou até mesmo morte.

Considerando que diante do cenário inicial da pandemia  totalmente desconhecido, além do pânico instaurado —, a recomendação inicial geral foi a do isolamento social, que as pessoas ficassem em casa e evitassem ir ao hospital, a não ser em casos de urgência ou emergência. As pessoas, receosas de irem ao hospital, por medo de serem infectadas pelo Covid-19, realmente deixaram de ir e acabaram por postergar eventual tratamento ou diagnóstico de outras doenças. Ocorre que o cenário de calamidade pública perdurou por muito mais tempo que o esperado. Então o que de início era apenas um adiamento de ida ao hospital ou consultório médico tornou-se uma ausência por meses, o que poderia agravar o quadro de saúde de um indivíduo, retirando suas melhores chances de tratamento, diagnóstico antecipado ou até mesmo cura.

Outra situação que surgiu com a pandemia foi a aprovação da telemedicina, ferramenta extremamente importante e útil neste cenário, facilitando o atendimento de pacientes. Nos casos dos mais idosos e pessoas de baixa renda, o uso da ferramenta torna-se um pouco mais complexo, por conta da tecnologia, porém, deixando de lado essa particularidade, a telemedicina reduz barreiras e tempos de espera, reduzindo exposição ao risco de contágio. No entanto, a novidade iniciada em tempos de pressão trouxe para o médico uma responsabilidade ainda maior, pois fazer o diagnóstico por meio de uma tela, sem fazer uma anamnese em que possa tocar e examinar o paciente pessoalmente, é extremamente desafiador. Bem como é o desafio do médico perante a necessidade da realização de exames que possam expor o paciente a ambientes de contágio do Covid-19, então assume uma conduta de resguardar o paciente e aguardar essa realização de exames por um tempo e esse tempo, diante do desconhecido, pode vir a ser crucial para o diagnóstico e tratamento do paciente. Já diz a juíza de Direito Grácia do Rosário que "se um indivíduo é privado de um diagnóstico correto, sendo, desta forma prejudicado em vir a seguir uma terapêutica adequada útil à sua cura, está constituída uma perda de chance, que também constitui um dano em si mesma" [6]. Dessa forma, o cenário em conjunto com a situação, poderiam abrir portas para possíveis ações baseadas na perda de uma chance de cura.

A responsabilidade civil do profissional da Medicina ganha destaque pelo grande risco que representa tal atividade; logo, é mais do que necessário que a mesma seja analisada de forma diferenciada. "Para Eduardo Nunes, tal profissão é baseada na confiança que a sociedade deposita em determinado profissional, pelo seu estudo, técnica, conhecimentos e experiência, e é diante da quebra dessa confiança, que deve ser imputada a responsabilidade ao mesmo" [5]. É a ideia de proteção ao paciente, tentando amenizar ao máximo quaisquer danos que sofra por determinada situação, princípio fundamental disposta no inciso II do Capítulo I do Código de Ética Médica [7].

Portanto, é claro que a teoria só poderá ser aplicada quando apresentada a verossimilhança de uma chance séria e provável e não mera suposição. O problema no cenário atual é exatamente definir a distinção entre mera suposição e chance perdida palpável.

Ocorre que estamos vivendo um momento inédito tanto para a população quanto para os próprios profissionais da saúde. Por mais segurança e confiança que devam oferecer ao paciente, eles estão vivendo uma situação que de certa forma ameaça a sua conduta, uma vez que eles também estão lidando com o desconhecido. Considerando o cenário atual, conforme artigo publicado na Folha de S.Paulo em agosto de 2020 [8], as cirurgias de urgência tiveram uma queda de 60% no país durante a pandemia de Covid-19, enquanto a taxa de mortalidade referente nesses procedimentos aumentou de 5,2% para 6,9%. O artigo destacou que o fato de muitos doentes terem adiado a procura pelos serviços de saúde por medo de serem infectados, também é causa de impacto ao quadro apresentado: "Muitos ficaram em casa tomando medicações e demoraram a procurar o pronto-socorro. Chegaram numa fase mais avançada da doença e com complicações", afirmou o cirurgião Edivaldo Utiyama, professor titular da USP, que apresentou os dados [8].

Uma pesquisa realizada pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil) em parceria com a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) demonstrou que o número de mortes por infartos e acidentes vasculares cerebrais (AVCs) cresceu 31% no Brasil desde o aumento do contágio pela Covid-19. A demora na busca do atendimento foi listado como um dos motivadores do aumento nos números, uma vez que, por medo do contágio pelo novo coronavírus, os pacientes chegam ao hospital em situação cada vez mais grave [9].

Caso os meios técnicos e intelectuais que são colocados em ação habitualmente por um profissional competente e diligente não tiverem sido acionados, a sua responsabilidade poderia ser comprometida [5]  deixando claro que a jurisprudência distingue o diagnóstico evidente, sobre qual o erro constituiria uma falta, do diagnóstico delicado e difícil, que não é considerado erro. No entanto, como a utilização dos recursos e métodos de diagnóstico neste momento em que a orientação primária era evitar ir ao hospital, será considerado como uma falha ou omissão da prática de exames aprofundados que provocam erro ou atraso, é o desafio e é o que levanta difíceis reflexões.

Outra consequência da pandemia, além do atraso no diagnóstico, foi a interrupção de tratamentos, como no caso de câncer, que, segundo especialistas, pode contribuir para o agravamento da enfermidade. Conforme relatado pela Agência Brasil, 15% dos pacientes oncológicos afirmaram que seus tratamentos tinham sido adiados, 10% relataram que não conseguiam marcar consultas e 6% que seus tratamentos foram cancelados, sem previsão de retorno. Como se não bastasse, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica e a Sociedade Brasileira de Patologia estimam que, entre março e fim de maio, pelo menos 70 mil pessoas com câncer deixaram de receber o diagnóstico.  

"Segundo a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), o número de exames gerais caiu cerca de 80% entre fevereiro e março, enquanto o total de cirurgias caiu pela metade. No mesmo período, as clínicas de diagnóstico por imagem registraram uma redução de 70% na realização de exames" [10]. O webinar "A sua saúde pode esperar? Em tempos de pandemia, não podemos deixar de lado a prevenção e o tratamento de outras doenças" [11], promovido pela Abramed em maio de 2020, reuniu especialistas de áreas clínicas e do setor de diagnóstico, reforçando a importância da prevenção e manutenção de tratamentos mesmo diante da crise do Covid. "Com as recomendações de distanciamento social e as diretrizes amplamente divulgadas para que as pessoas evitassem ao máximo procurar o hospital para prevenir exposições desnecessárias ao coronavírus, a população deixou de buscar assistência médica mesmo em casos extremamente importantes" [11].

Os especialistas que participaram do webinar abordaram a questão que um atraso de sessenta dias no diagnóstico de alguma patologia oncológica pode ser fatal e que quanto mais tarde for descoberta a doença, menores as chances de recuperação e a eficiência dos tratamentos. Um cenário de cura passaria a ser um cenário paliativo.

As informações trazidas em artigo publicado pela Pebmed reforçam que "é fundamental que a sociedade entenda, que a imprensa divulgue e que nós médicos consigamos conscientizar a população que o distanciamento/isolamento social é necessário, mas que não é possível simplesmente 'parar tudo' e aguardar a pandemia passar em mais 1, 2, 3 meses" [12]

Fato é que sempre haverá uma tentativa de responsabilização de certos estragos. Ocorre que, no cenário narrado neste artigo, é válida a reflexão se a responsabilidade seria considerada exclusiva dos pacientes  e eventuais vítimas  ou se veremos uma transferência de responsabilidade ao profissional da saúde, com alegações da teoria da perda de uma chance de cura. Ou ainda aceitar que o momento atual é diferente de tudo o que já vivemos e não temos referência de como lidar com essa crise sem proporções. Devemos, no entanto, levar em consideração que, por mais que frustrações devam ser compreendidas, o atual momento extraordinário requer, antes de considerar qualquer culpabilização de um eventual agente causador, a conscientização coletiva e fragilidade do momento. Se em situações mais ordinárias a teoria da perda de uma chance de cura já é abstrata e complexa, tais adejtivos deverão ser ainda mais acentuados nos tempos atuais.

 

[1] Disponível em: https://blog.sajadv.com.br/teoria-da-perda-de-uma-chance/ acesso em 10 de janeiro de 2021.

[2] Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68559/teoria-da-perda-de-uma-chance-surgimento-conceito-e-parametros-de-aplicacao acesso em 13 de janeiro de 2021.

[3] Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/245438/aspectos-gerais-sobre-a-teoria-da-perda-de-uma-chance-quando-uma-oportunidade-perdida-e-causa-de-indenizar#:~:text=A%20teoria%20da%20perda%20de%20uma%20chance%20%C3%A9%20uma%20constru%C3%A7%C3%A3o,ainda%20%C3%A9%20tema%20de%20controv%C3%A9rsias. acesso em 10 de janeiro de 2021.

[4] Lei n° 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm acesso em 10 de janeiro de 2021.

[5] Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65880/a-responsabilidade-civil-medica-e-a-aplicacao-da-teoria-da-perda-da-chance
acesso em 14 de janeiro de 2021.

 [6] Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=29a56224-e2d6-4f2f-9233-85f948ffbe85&groupId=10136 acesso em 05 de fevereiro de 2021.

[7] Resolução CFM 2.217 de 27 de setembro de 2018, Código de Ética Médica. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf acesso em 07 de fevereiro de 2021.

[8] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/cirurgias-urgentes-cairam-60-durante-pandemia.shtml
acesso em: 02 de fevereiro de 2021.

[9] Disponível em: https://www.hsc.com.br/noticias/numero-de-mortes-por-infarto-cresceu/ acesso em 05 de fevereiro de 2021.

[10] Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-06/pandemia-afetou-tratamento-de-cancer-aponta-instituto
acesso em: 07 de fevereiro de 2021.

[11] Disponível em:  http://abramed.org.br/1237/outras-doencas-nao-esperam-a-pandemia-de-Covid-19-passar-para-se-manifestarem/ acesso em: 07 de fevereiro de 2021.

[12] Disponível em:  https://pebmed.com.br/pandemia-de-Covid-19-reduziu-o-diagnostico-e-tratamento-de-cancer-no-pais/ acesso em 10 de janeiro de 2021.

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