Interesse público

Prazo de instalação e possibilidade de extensão do objeto de CPI

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

15 de abril de 2021, 9h08

Spacca
As Comissões Parlamentares de Inquérito voltam a atrair a atenção. Desta vez a questão central não é identificar o conjunto de prerrogativas de investigação ou os limites que definem as possibilidades de agir desse tipo especial de colegiado temporário. No momento atual recebem luz questões de cariz orgânico e procedimental: o prazo de instalação das comissões e a possibilidade de extensão de seu objeto. Essas não são questões triviais, pois nas suas dobras estão ocultos aspectos fundamentais para a democracia parlamentar: o espaço institucional das minorias, a admissibilidade ou a recusa da centralização do poder de agenda política em matéria de fiscalização parlamentar e a possibilidade de ampliação do fato determinado invocado no requerimento de instalação de comissão parlamentar de inquérito. Temas para os quais ainda há silêncios, omissões e deficiente disciplina jurídica.

Prazo de Instalação de CPI, “Poder de Agenda” e Ampliação de Objeto
Qual o prazo para a instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito depois de preenchidos os requisitos do Art. 58, §3º, da Constituição (requerimento de 1/3 dos membros da Casa, prazo certo e fato determinado)? A Constituição Federal não o informa, ou a Lei 1.579/1952, ou o Regimento Interno do Senado ou da Câmara.

O Regimento Interno da Câmara fixa prazo para a designação de membros de CPI criada: 48 horas para a indicação pelos Líderes; se estes forem omissos, autoriza a escolha de integrantes pelo Presidente da Câmara (Art. 33, § 1º, RICD). No Senado, “recebido o requerimento, o Presidente ordenará que seja numerado e publicado” (Art. 145, §2º, RISF). O Regimento Comum é completamente omisso sobre o assunto, mas oferece norma para colmatar a lacuna: deve-se recorrer ao Regimento Interno do Senado e, ante omissão também deste, ao Regimento Interno da Câmara dos Deputados (Art.151, RCCN).

Pelo Regimento da Câmara, recebido o requerimento de criação da CPI, o "Presidente o mandará a publicação, desde que satisfeitos os requisitos regimentais; caso contrário, devolvê-lo-á ao Autor, cabendo desta decisão recurso para o Plenário, no prazo de cinco sessões, ouvida a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania" (Art. 35, §2º, RICD).

As normas parecem sugerir que é dever dos presidentes das Casas Legislativas a comunicação imediata da admissão ou da recusa dos pedidos de instituição de CPIs. Presidentes exercem funções de verificação dos requisitos do Art. 58, §3º, da CF, mas não podem obstruir, sustar ou silenciar sobre os requerimentos formulados na Casa Legislativa. Porém, será que esse juízo de admissibilidade não possui qualquer prazo para ser viabilizado? A partir de qual momento caracteriza-se a omissão abusiva?

CPIs são instrumentos da minoria e, como tal, não podem ficar sujeitas a controle político de representante da maioria ou do próprio Plenário. Por isso, a Constituição Federal exige apenas a assinatura de 1/3 dos membros da Casa para a sua proposição e dispensa ulterior pronunciamento do Plenário. O Presidente da Casa Parlamentar, por óbvio, é representante da maioria. Por isso, a admissibilidade do requerimento para instalação de CPI não deve ser considerada “matéria política” ou "interna corporis”, mas questão jurídica passível de controle jurisdicional. Esse entendimento é sufragado por diversos precedentes do STF (v.g, ADI 3.619, rel. min. Eros Grau, j. 1º-8-2006, P, DJ de 20-4-2007; MS 26.441, rel. min. Celso de Mello, j. 25-4-2007, P, DJE de 18-12-2009).

Segundo a Lei 1579/52, sem qualquer alteração nesse ponto pela Lei 13367/2016, constitui crime “impedir, ou tentar impedir, mediante violência, ameaça ou assuadas, o regular funcionamento de Comissão Parlamentar de Inquérito, ou o livre exercício das atribuições de qualquer dos seus membros” (Art. 4º). De outra parte, no plano político-administrativo, é viável caracterizar como infração ao decoro parlamentar a atuação deliberada do Presidente da Casa de obstruir, por omissão, a instalação de CPI, uma vez que tal conduta pode ser enquadrada no inciso III do Art. 5º, do Código de Ética do Senado, Resolução 20/1993 (“prática de irregularidades graves no desempenho do mandato ou de encargos decorrentes”) ou seu equivalente na Câmara dos Deputados (Art. 3º, IV, da Resolução 25/2001).

CPI é comissão temporária e não pode ultrapassar o período da legislatura em que for criada. Vencida a legislatura, perdem eficácia inclusive os pedidos de CPI não apreciados. O tempo de deliberação do Presidente da Casa Legislativa sobre a presença dos requisitos exigidos pelo Art. 58, §3º, da Constituição é assim fator decisivo para a própria viabilidade da investigação parlamentar.

É certo que, além dos requisitos constitucionais, os regimentos podem fixar outros condicionantes e limites. O Regimento do Senado veda a admissão de CPI sobre matérias pertinentes à Câmara dos Deputados; às atribuições do Poder Judiciário; aos Estados (Art. 146, RISF). O Regimento da Câmara veda o funcionamento de mais de 5 CPIs simultâneas, salvo mediante projeto de resolução de iniciativa também de 1/3 dos membros da Casa (Art. 35, §4º, RICD) e define prazo máximo de cento e vinte dias, prorrogável por até metade, para a conclusão dos trabalhos de CPI (Art. 35, §3º, RICD).

Alguns desses limites podem ser considerados implícitos no texto Constitucional. CPI não julga, não pune, não denuncia, não substitui o Ministério Público ou o Poder Judiciário. Portanto, não pode exercer controle sobre as atribuições finalísticas de julgar, denunciar ou arquivar, limitando-se a investigar ou apurar fatos relacionados à administração, envolvendo agentes públicos ou privados, porém sem a possibilidade de imprimir juízo de substituição no âmbito de competências de outro órgão ou Poder. Divergências hermenêuticas em atividade-fim jurisdicional ou ministerial não conformam fato determinado autorizador de CPI. Ademais, as Casas Legislativas investigam fatos diretamente relacionados ao seu campo de atribuições; Senado e Câmara não cuidam de matéria legislativa autônoma de Estados e Municípios; logo, não podem investigar a aplicação da legislação própria ou o funcionamento dos serviços locais tout court (campo das CPI’s estaduais e municipais). A sindicância política realizada pelas CPI’s é braço instrumental do quadro de competências da Casa Parlamentar correspondente.

O STF há muito assentou que a investigação de membros do Judiciário por CPIs apenas pode recair sobre atos de cunho não jurisdicional ou sobre atos passíveis de configuração de crime de responsabilidade, nos termos da Lei 1.079/1950 (HC 79.441-6/DF, Rel. Min. Octavio Galloti, DJe 15/9/1999). Também considerou a convocação de magistrado para prestar depoimento perante CPI acerca de decisões jurisdicionais infração ao princípio da separação de poderes e constrangimento ilegal (HC 80.539-PA, Rel. Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJ 1/8/2003). E essa orientação foi reafirmada recentemente no MS 36.649/DF, Rel. Min Gilmar Mendes (DJe 05/11/2019).

Não há dúvida, portanto, que a admissibilidade de CPI envolve uma análise de pertinência material, subjetiva e temporal do requerimento apresentado pela minoria parlamentar de ao menos 1/3 da Casa Legislativa. Considerar que essa avaliação deve ser realizada na data de registro do pedido, ou no dia imediato seguinte, sob pena de inexoravelmente caracterizar obstrução ilegítima do Presidente da Casa parece pouco realista. Outro momento deve servir para caracterizar objetivamente o extravasamento do razoável prazo de deliberação, a ilegalidade ou o abuso de poder, e autorizar o cabimento de mandado de segurança em favor do direito de oposição da minoria, visando ao atendimento do princípio democrático.

Ante a ausência de prazo expresso, na lei e nos Regimentos Internos, o prazo razoável do juízo de admissibilidade deve ser definido por integração. O Regimento do Senado dispõe que “nos atos processuais, aplicar-se-ão, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal” (Art.153). Se aplicado o prazo máximo de recebimento de denúncia previsto no CPP como o prazo para apreciação do requerimento de CPI, este prazo seria de 15 dias. Vencidos os quinze dias, estaria caracterizada objetivamente a obstrução procedimental ilegítima e autorizada a atuação do Poder Judiciário.

Não é possível aceitar que o presidente da Casa Parlamentar não tenha prazo para deliberar sobre a admissibilidade do requerimento da minoria para a instalação de uma CPI. Não há poder de agenda legislativa em questão, mas exercício de dever de apreciação da admissibilidade do requerimento formulado por 1/3 dos membros da Casa. O requerimento permite enriquecer a verdadeira agenda parlamentar e tornar o debate político mais inclusivo. CPIs requeridas pela minoria obrigam o Parlamento a deter-se sobre questões que talvez a maioria prefira ocultar. A agenda do Parlamento nunca pode ser personalizada em um único agente, pois na democracia deve resultar do embate pluralista inerente aos colegiados parlamentares.

Correta, portanto, a liminar deferida pelo min. Roberto Barroso no MS 37.760/DF, que determinou na última quinta-feira (8/4/2021) ao Presidente do Senado que adote as providências necessárias para a instalação de CPI destinada a apurar eventuais omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19, pois o requerimento de CPI foi protocolado em 15/01/2021, subscrito por mais de 1/3 dos senadores, indicou fato determinado e apresentou prazo certo de duração. O pedido dormiu dois meses sem decisão na Presidência do Senado, sendo possível caracterizar objetivamente esse lapso temporal como omissão abusiva, que embaraça o exercício de um direito público subjetivo reconhecido à minoria parlamentar.

Por outro lado, a circunstância de a CPI apurar fato determinado, como destaca Natalia Masson, “não impede a ampliação do objeto de investigação de modo a alcançar fatos imprevistos, não discriminados no requerimento de criação da comissão já em ação, conexos com aquele principal”, observada a necessidade de “aditamento do requerimento de criação da comissão” [1]. Subscrevo esse entendimento, podendo ser invocadas novamente normas do CPP para colmatar lacunas sobre o aditamento, uma vez identificados fatos determinados conexos ao longo da investigação.

A medida cautelar deferida no MS 37760/DF pelo ilustre Ministro Roberto Barroso não assegura que a CPI da Covid-19 tenha bom termo, mas assegura a sua instituição. É sempre melhor a moderação do que o ativismo, mas nessa liminar não houve ativismo ou precipitação. Houve cumprimento direto, exato e objetivo da Constituição. E as Constituições, já ensinava John Potter Stockton, “são correntes com as quais os homens se amarram em seus momentos de sanidade para que não morram por uma mão suicida em seu dia de frenesi” [2].

 


[1] MASSON, Natália. Manual de Direito Constitucional. 6ª. Ed, Salvador: Juspodium, 2018, p. 760.

[2] Citado por ELSTER, Jon. Ulisses Liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. Trad. Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: Ed. UNESP, 2009, p. 120).

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    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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