Opinião

Tribunal do Júri: avança na Câmara a reforma do Código de Processo Penal

Autores

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

15 de abril de 2021, 9h02

Nesta terça-feira (13/4), o relator-geral da comissão da Câmara dos Deputados sobre o Código de Processo Penal, deputado João Campos, apresentou um parecer substitutivo apensando 30 novas propostas ao Projeto de Lei 8045/2010, derivado do PLS 156/2009.

O deputado Fábio Trad, presidente da comissão, afirmou que receberá sugestões pelas próximas duas semanas para que, posteriormente, o relator proponha o relatório final.

Desde já, importante elogiar os esforços dos deputados no sentido de apresentar uma reforma global do Código de Processo Penal, considerando que o Brasil é hoje o único país das Américas a ainda possuir um sistema processual penal de matriz inquisitorial.

Nas duas últimas décadas, praticamente todos os nossos vizinhos compatibilizaram seus sistemas processuais penais com a democracia, implementando um sistema acusatório. Assim, trata-se de um projeto essencial para que, mesmo depois de mais de 30 anos da promulgação da Constituição da República, finalmente possamos ter direitos e garantias basilares coerentemente protegidos.

O deputado João Campos afirmou que há uma lentidão no julgamento dos crimes dolosos contra a vida e propõe alterações para atacar esse problema. Claro que a comunidade jurídica poderá (e deve!) estudar com maior profundidade essas propostas, como forma de colaborar com as discussões do Congresso, prevendo, inclusive, suas consequências práticas.

No entanto, neste artigo faremos algumas observações prévias sobre as alterações propostas no parecer substitutivo do relator-geral em relação ao procedimento do júri.

A principal alteração se refere à exclusão da instrução da primeira fase do procedimento para embasar eventual decisão de admissibilidade por parte do juiz presidente.

Pelo texto apresentado pelo relator, se o juiz não rejeitar a denúncia liminarmente, mandará citar o réu para oferecer resposta em 45 dias (artigo 385). A justificativa desse prazo seria propiciar uma "investigação defensiva" para que a defesa possa apresentar os documentos e elementos que entender relevantes buscando uma desclassificação ou absolvição sumária. No entanto, deve-se municiar a defesa com instrumentos para se fazer uma defesa efetiva, como, por exemplo, acesso aos sistemas de antecedentes e histórico pessoal (a que o Ministério Público tem acesso irrestrito).

Eliminam-se, inclusive, as decisões de pronúncia e de impronúncia. Isso porque o juiz teria de decidir, após a resposta da defesa, se recebe a inicial acusatória. Esse recebimento equivaleria a submeter o acusado ao júri. As outras hipóteses do magistrado são: rejeição da denúncia, desclassificação da competência da infração, ou absolvição sumária do réu (artigo 387).

A rejeição da denúncia deveria ocorrer quando da ausência de prova da materialidade do fato e/ou insuficiência de indícios de autoria ou de participação, ou por conta da inépcia formal, prevendo ainda o texto que, no caso de dúvida sobre tais circunstâncias, o juiz precisaria decidir pela rejeição da denúncia. Aqui haveria pela primeira vez a previsão do princípio do in dubio pro reo no procedimento do júri.

Para que o juiz encaminhe o acusado a júri, deveria ele reconhecer a "adequada descrição fática da imputação" e indicar a "materialidade do fato e indícios suficientes de autoria ou de participação" (artigo 391). Já sobre as qualificadoras ou causas de aumento de pena, essas deverão ser excluídas apenas se forem manifestamente inaplicáveis. O artigo 393 assinala que a decisão de recebimento da inicial acusatória é irrecorrível, exceto nos casos de exclusão das qualificadoras (estas recorríveis apenas pela acusação).

O artigo 421 prevê que sete jurados farão parte do Conselho de Sentença, mantendo o Brasil na contramão da exigência de maioria qualificada para a condenação de um acusado. Perceba-se que, ainda mais considerando a exclusão da primeira fase (que poderia contar na pronúncia como instrumento de garantia), a manutenção de um número ímpar de jurados inviabiliza minimamente o respeito do in dubio pro reo na fase de plenário. Indo além, citando como exemplo os Estados Unidos, todos os 12 jurados precisam votar de forma unânime. A Suprema Corte daquele país, em uma decisão de 2020 (caso Ramos vs. Louisiana), decidiu que um único voto pela absolvição é suficiente para evitar um veredicto condenatório.

Infelizmente, o parágrafo único do artigo 421 acolhe uma sugestão desarrazoada do CNJ, diminuindo o número de jurados para cinco quando se tratar, por exemplo, de tentativa de homicídio simples. Não se justifica a diminuição em dois jurados para causas criminais, sendo que restringe ainda mais a representatividade social (cerne do Tribunal do Júri). Aliás, o número de oito, sete ou cinco jurados não tem correlação com simplificação do procedimento, mas, sim, se o júri deve resguardar as regras constitucionais e democráticas.

Mais uma vez lembrando precedentes do país que tem um sistema de júri adversarial respeitado, a Suprema Corte norte-americana já se debruçou sobre a tentativa de diminuição do número de jurados nos EUA, definindo que isso jamais poderia ocorrer em causas criminais. No caso Ballew vs. Georgia, após ampla discussão, a corte apontou que "os júris formados por um maior número de jurados são mais representativos das minorias, recordam melhor as provas, promovem uma melhor discussão e trazem maiores informações do que as deliberações realizadas por apenas seis pessoas" [1].

Em relação à instrução em plenário, a possibilidade de oitiva de até oito testemunhas por fato por cada parte é um alento para viabilizar uma melhor produção de provas perante o juiz natural. O julgamento por jurados precisa ser construído de forma que as decisões sejam tomadas com base naquilo que foi produzido perante o Conselho de Sentença apenas (com exceção, claro, às provas não repetíveis).

Por outro lado, o artigo 451 diminui o tempo de sustentação em meia hora para casos considerados menos complexos, como a tentativa de homicídio simples. Ademais, o texto prevê que o juiz poderá diminuir o tempo pela metade se houver concordância expressa das partes — o que é totalmente desnecessário, eis que as partes, por si mesmas, poderão abrir mão de seu tempo, não devendo o magistrado se imiscuir em tal questão.

O artigo 452 avançou ao prever que as partes não poderão fazer referências aos depoimentos prestados na fase de investigação criminal. No entanto, deve-se lembrar que o inquérito deve ser totalmente afastado no plenário do júri [2].

O artigo 453 auxilia para que uma celeuma histórica seja resolvida, determinando a juntada de documentos a serem utilizados em plenário com dez dias de antecedência. Ganha o fair play e a boa-fé processual.

Na fase de quesitação, o quesito absolutório genérico, que já engloba todas as teses absolutórias, passa agora a abranger também a materialidade e a autoria (artigo 457). A materialidade (que atualmente é o primeiro quesito) e a autoria (atualmente o segundo quesito) seriam também decididas no quesito absolutório genérico.

Considerando que o novo texto legal visa a diminuir o tempo de tramitação dos processos de crimes dolosos contra a vida, podemos concluir que há mais acertos do que erros. Resumidamente, fazendo um exame pela prática do júri, sintetizaremos alguns dos pontos positivos e negativos:

Os acertos principais e que merecem aplausos são: 1) o enxugamento da primeira fase do procedimento, evitando-se duas fases de instrução (por mais que recomendamos um estudo mais aprofundado sobre este procedimento); 2) a competência do juiz de garantias inclusive para o procedimento do júri [3]; 3) a juntada de documentos em dez dias antes da sessão, para que as partes possam utilizá-los em plenário; 4) a impossibilidade de as partes fazerem referência aos depoimentos do inquérito policial em plenário; e 5) a simplificação da quesitação, colocando como quesito genérico absolutório inclusive as teses de ausência de materialidade e de autoria.

Os pontos que não compactuam com um sistema democrático e afastam o júri das regras de um Estado de Direito são: 1) a inviabilização do recurso da decisão que encaminha o acusado a júri (que, na prática, certamente será atacado por Habeas Corpus); 2) a diminuição do número de jurados para cinco em casos "menos complexos", quando o ideal seria ampliar para pelo menos oito; a 3) a diminuição do tempo de sustentação nos debates para casos "menos complexos".

Chamamos a atenção para algumas omissões de questões que estavam previstas em textos anteriores tanto no Senado quanto na Câmara, para que os deputados possam ponderar sobre o cabimento, eis que visam a compatibilizar o procedimento com o sistema acusatório: 1) a não previsão expressa do afastamento (retirada completa) do inquérito policial em plenário, não apenas das referências pelas partes; 2) a ausência de uma fase de deliberação entre os jurados antes de entrar na sala secreta [4]; 3) faltou aumentar o número de jurados de sete para, no mínimo, oito, sendo que em caso de empate, aplicar-se-ia o princípio do in dubio pro reo (o qual, como está, continua sendo afastado no procedimento do júri); 4) a não previsão de aumento do tempo de sustentação em casos complexos e quando há mais de um acusado. É fundamental propiciar um tempo mínimo para cada defesa, quiçá até eliminando a réplica e tréplica [5]; 5) a não inversão da ordem de recusa dos jurados (artigo 442), sendo regra básica do princípio da plenitude de defesa, do devido processo legal e do contraditório, que a acusação se manifeste antes da defesa; 6) a ausência de previsão de perguntas aos jurados (uma espécie de voir dire [6]) para um melhor selecionamento antes do sorteio para formação do Conselho de Sentença; 7) defendemos que seria importante para melhor entendimento dos jurados a realização de uma fase de "alegações iniciais", em que as partes expõem em um curto período de tempo, um resumo sobre quais conclusões esperam alcançar no decorrer do julgamento.

Como pudemos discorrer nesta primeira análise introdutória em relação ao procedimento do Tribunal do Júri, o relator-geral fez um trabalho sério, que merece reconhecimento da comunidade jurídica. Entretanto, os pontos negativos e as ausências apontadas aqui ainda precisam e podem ser corrigidas pelos congressistas, com o intuito que tenhamos um júri que não apenas respeita o sistema acusatório, como o próprio Estado democrático de Direito.

* Este artigo faz parte da série "Tribunal do Júri", produzida pelos professores de Processo Penal Rodrigo Faucz Pereira e Silva e Daniel Ribeiro Surdi de Avelar, autores das obras "Plenário do Tribunal do Júri" e "Manual do Tribunal do Júri", da Editora RT.

 


[1] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 131.

[2] Sobre este tópico, sugerimos a leitura do artigo da Conjur: https://www.conjur.com.br/2021-mar-11/avelar-faucz-utilizacao-inquerito-policial-plenario.

[3] O artigo 16 expressamente determina que "a competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo e cessa com a propositura da ação penal".

[5] Sobre o assunto, sugerimos a leitura do nosso livro "plenário do Tribunal do Júri", especificamente os capítulos 6.3, 6.4 e 6.29. (PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. plenário do Tribunal do Júri. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.)

[6] Abordamos a necessidade desta fase no capítulo 10.7.4 da obra "Manual do Tribunal do Júri" (citado acima).

Autores

  • é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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