Opinião

A incoerência do feminicídio enquanto qualificador do homicídio

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14 de abril de 2021, 6h35

Na dogmática do Direito Penal, homicídio é a eliminação da vida de alguém levada a efeito por outrem (Cezar Roberto Bittencourt), ou, ainda, para que exista homicídio é necessário que o ato de matar e o resultado da morte tenham uma relação de causalidade (Francisco Muñoz Conde).

Como é sabido, o homicídio é um crime penal e existem condições ou elementos que podem alterar o tipo penal simples — "Matar alguém", artigo 121 do Código Penal (CP)  ou a pena decorrente dele. Entre tais alterações ou tipos alterados existem os qualificadores e os agravantes.

Nesse ínterim, qualificadora é aquilo que, baseando-se no tipo básico, adiciona novos elementos, altera a pena mínima e máxima e se caracteriza como um tipo derivado ou autônomo. A qualificadora ainda pode ser subjetiva, quando se remete a motivos e fins do fato típico, ou objetiva, quando se refere a meios e modos do fato típico (Cezar Roberto Bittencourt).

Além da qualificadora, citamos os agravantes, esses são considerados na segunda fase da dosimetria da pena e são fatores que agravam a situação do réu com base em condutas que ele praticou antes ou durante o processo.

Entendido isso, é possível agora analisar o feminícidio. O feminicídio é uma qualificadora que subsiste um crime de homicídio qualificado derivado do homicídio simples. E é descrito no Código Penal como praticar o homícidio "contra mulher por razões da condição do sexo feminino" (artigo 121, §2°, VI).

Por ter como referencial as "razões" do crime, essa é uma qualificadora subjetiva, pois "razões" não são nada mais do que motivos segundo fins. Porém, essa qualificadora é extremamente indefinível e supõe a existência de uma espécie de homicídio cujo agente se motiva pela condição intrínseca da mulher de ser mulher, pela própria condição de "ser" dela.

Tal aspecto entra em diversos problemas, e isso se torna visível na parte em que a própria lei especifica o que é necessário para constituir o feminícidio. Essas especificades são: "Violência doméstica e familiar" (§2º-A, I) e "menosprezo ou discriminação à condição de mulher" (§2º-A, II).

O primeiro inciso da alínea "a", "violência doméstica e familiar", se caracteriza como um motivo objetivo para uma qualificadora subjetiva. Por possuir tal natureza, esse inciso é uma contradição substancial: uma condição objetiva e factual como a violência doméstica e familiar não é capaz de caracterizar a razão subjetiva do feminicídio.

Isso é provado dado que a violência doméstica e familiar pode ocorrer contra homens ou mulheres, crianças, adultos ou idosos, com múltiplos motivos e fins subjetivos. Trata-se de uma situação objetivamente unitária, mas subjetivamente plural.

E ressalta-se que a violência doméstica já é um crime previsto em lei, na Lei Maria da Penha, e é independente do feminicídio. Se em um fato típico há o crime de homicídio junto com o crime de violência doméstica o indivíduo já seria punido devidamente e o fato típico já seria devidamente previsto no tipo penal.

O segundo inciso da alínea "a", "menosprezo ou discriminação à condição de mulher", é um motivo mais próprio da subjetividade do feminícidio, contudo ainda possui problemas: é pobre em explicar ou em especificar o que seriam tais razões da condição intrínseca da mulher por ser mulher.

Ou, ainda, pode-se perguntar o que seria o menosprezo à condição da mulher de ser o que é? Um desprezo existencial, uma aversão de gênero? E que tipo de desprezo é esse? Quais características femininas são desprezadas?

Cezar Roberto Bittencourt é o que mais precisamente explica o que seria o desprezo à condição feminina da mulher:

"O próprio móvel do crime é o menosprezo ou a discriminação à condição de mulher, mas é, igualmente, a vulnerabilidade da mulher tida, física e psicologicamente, como mais frágil, que encoraja a prática da violência por homens covardes, na presumível certeza de sua dificuldade em oferecer resistência ao agressor machista".

Se é a fragilidade ou a presunção de vulnerabilidade da mulher que torna o feminicídio possível, há outro problema sério, posto que ainda assim fragilidade e vulnerabilidade não são condições essenciais e exclusivas da mulher em relação ao homem, visto que crianças, idosos e deficientes também possuem esse mesmo caráter e ainda uma maior necessidade de proteção.

E o último argumento para a demonstração da incoerência dessa qualificadora é este: já existiam agravantes como parentesco (que incluem crimes de homicídio praticados por cônjuges, pais com filhas etc.), motivo fútil ou torpe (incluindo algum tipo de ressentimento, preconceito ou desprezo à vítima em geral), covardia (que inclui mulheres grávidas) ou abuso de autoridade de agente civil (incluindo relações domésticas).

Tais agravantes já abarcariam qualquer crime de homicídio cometido contra a mulher em diferentes situações de vulnerabilidade, fragilidade ou que tenha sido vítima de algum ódio infundado, e o faria com a devida abrangência e sem as contradições que o feminicídio apresenta.

Postula-se, portanto, que o crime de feminicídio é incoerente com a dogmática e com o código penal, não podendo subsistir sem contradições. Se o desprezo à condição de ser do outro é motivo possível de qualificadora, existiriam uma infinidade de qualificadoras, pois muitos crimes de homicídio são cometidos por uma motivação fundamentada em algum aspecto do ser ou da personalidade ou do comportamento da vítima. E mais, todo homicídio é um desprezo, uma rejeição a condição de "ser" humano da vítima, em que se ataca o bem jurídico mais importante, a vida.

É justamente pela impossibilidade de se definir um desprezo à condição entitativa mesma da vítima que se estabelecem outros critérios mais objetivos, certos e comprováveis. Qualquer referência a um suposto desprezo à condição de ser é contrário à natureza do Direito Penal, visto que toda norma penal deve ser clara, objetiva e direta  de acordo com o princípio da legalidade  para que o indivíduo não receba uma pena injusta ou que lhe seja imputado um crime que ele não cometeu.

O Direito Penal tem a função de proteger a sociedade (Jakobs), limitar a pena imposta pelo Estado a fim de garantir uma convivência pacífica (Roxin) e proteger os cidadãos de qualquer injustiça ou excesso estatal. Nessa seara, o feminicídio é uma resposta à impunidade latente no Brasil, mas qualquer punitivismo excessivo é sinal de perigo, é ameaça para a segurança jurídica do país e se apresenta como uma afronta à própria natureza do Direito Penal.

 

Referências bibliográficas
BITTENCOURT, Cezar. Direito Penal
 Parte e Especial.

MUÑOZ, Conde. Derecho Penal  Parte e Especial.

ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal.

JAKOBS, Gunther. Sobre la normativizacion de la dogmatica juridico-penal.

BRUNO, Aníbal. Crimes contra a Pessoa.

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