Opinião

Na era da pós-verdade, operadores do Direito devem respeito à linguagem

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14 de abril de 2021, 7h10

"Toda rosa é rosa porque assim ela é chamada". O verso de Marcelo Camelo na música "Todo Carnaval tem seu fim" diz muito sobre a função criadora da linguagem. Antes de atribuirmos conteúdo ao que existe, o que havia?

Não há dúvidas: somos nós, seres humanos, por meio da linguagem, quem conferimos significados às coisas do mundo (no sentido mais amplo possível). Ninguém, numa bela tarde de sol, decretou que "rosas" seriam "rosas", e a partir daí passamos todos a chamá-las desta maneira. Seu significado surgiu de uma espécie de combinado entre os falantes de uma mesma língua, que decidiram como passariam a designá-las. Antes, como nos lembra William Shakespeare, não havia rosa, só perfume.

O Direito segue a mesma lógica. É igualmente resultado do uso da linguagem. O significado de suas regras e princípios não emerge da mente de uma única pessoa. Enquanto linguagem, o sentido das normas também exsurge do coletivo. Nem mesmo um ministro da Suprema Corte pode chamar rosa de margarida; careceria de poderes para romper com a linguagem estabelecida com o propósito de instituir seu próprio reino, não compartilhado pelo restante da comunidade da qual é integrante.

Operadores do Direito solipsistas, ou seja, aqueles que interpretam com perigoso subjetivismo, quase sempre flertam com o arbítrio linguístico; chamam quadrado de redondo apenas para dar vazão aos próprios fantasmas e pré-compreensões. Como não querem fundir seu horizonte a nada ou a ninguém, ignoram texto e contexto para impor à comunidade seu modo de ser. É nessa hora que o Direito deixa de ser linguagem. Vira força.

Na modernidade, a situação tornou-se ainda mais complexa. O Direito foi invadido por linguagem rarefeita. Termos como "ordem pública", "moralidade", "decoro", "eficiência", "interesse social" e tantas palavras e expressões de difícil definição foram inundando a linguagem jurídica. Princípios gerais, com amplo alcance, juntaram-se às leis na interpretação de casos concretos. Diante de tantas abstrações, observa-se cada vez mais um crescente aumento do poder de quem opera o Direito.

Emblemático é o caso da apreensão de livros infanto-juvenis com a imagem de um beijo gay na Bienal do Livro do Rio de Janeiro em 2019. Àquela altura, tanto os organizadores do evento quanto os representantes da prefeitura evocavam, em favor de suas teses, o mesmo princípio constitucional (a preservação do melhor interesse de crianças e adolescentes) para interpretar o artigo 76 do Estatuto da Criança e do Adolescente, cujo texto autoriza apenas a apreensão de materiais considerados "pornográficos". As partes, em face da vagueza do referido princípio, apegavam-se, com fins diametralmente opostos, ao significado que subjetivamente lhe atribuíam, como se o Direito admitisse qualquer das duas conclusões, a depender do humor do julgador sorteado.

Desembargadores e o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro divergiram. Fazendo alusão a expressões como "manifesto interesse público" e "grave lesão à ordem pública", a chefia da Justiça fluminense conjugou todas as abstrações relacionadas ao tema para concluir que a aquele beijo ofendia a ordem jurídica. Esquivando-se da norma jurídica aplicável ao caso e das inúmeras decisões do mesmo tribunal  todas no sentido de autorizar apreensões apenas de material pornográfico , o magistrado, em alegada defesa da família, autorizou a apreensão daquelas publicações e a restrição da liberdade de expressão.

Como não podia deixar de ser, decisão do Supremo Tribunal Federal pôs fim ao debate: o beijo era só um beijo, e não pornografia.

Em miúdos, o Direito não é o foro adequado para considerações puramente subjetivas de seus operadores. O significado de suas regras e princípios deve ser extraído do sentido que todos atribuímos à linguagem. Argumentar com ampla liberdade, atribuindo unilateralmente às normas jurídicas significados com origem nas próprias visões de mundo, pode até ser prazeroso para alguns. Contudo, o Direito não pode definitivamente ser visto como uma tela em branco, sujeita ao sentimentalismo de quem detém parcela do poder. No mundo complexo de hoje, a opção por uma linguagem em que quase tudo cabe não pode nos fazer esquecer de que o Direito é necessariamente uma produção coletiva, fruto do desenvolvimento em cadeia de suas tradições históricas e culturais. Quando nos afastamos de tais premissas, nem mesmo a democracia poderá ser assim chamada.

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