Opinião

A CPI da Covid-19 e o princípio federativo

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14 de abril de 2021, 18h36

As comissões parlamentares decorrem do aprimoramento das atividades parlamentares. A maioria, ou quase a totalidade das decisões importantes do plenário, passa pelo crivo das comissões. Nessa senda, as comissões parlamentares latu sensu são órgãos constituídos em cada casa legislativa, integradas por um número pequeno e limitado de seus membros, escolhidos com base numa competência estabelecida normativamente e responsáveis, em princípio, por exercer suas atribuições legais mediante a apresentação de um relatório conclusivo.

Em relação às comissões parlamentares de inquérito (CPIs), houve tratamento bastante valorizado pela Constitução de 1988, com os seguintes pontos fundamentais expressos no artigo 58, §3°, a saber: 1) os poderes de investigação são os poderes de investigação das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos internos; 2) o ato de sua constituição deve ser feito por um terço dos parlamentares de quaisquer das casas legislativas, em conjunto ou separadamente; 3) só podem ser constituídas para análise de fato determinado e por prazo certo; 4) as conclusões serão encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos supostos infratores.

Além desses limites formais, é fundamental que se sustente, igualmente, a existência de outros limites constitucionais materiais a instauração de CPI. Estes limites materiais são disposições constitucionais gerais que permeiam e fundamentam a validade das demais normas presentes no ordenamento jurídico, expressando o ideário e as diretrizes basilares de toda a ordem constitucional, isto é, são princípios de elevado valor normativo concretizantes das decisões políticas estruturais do Estado, constituindo verdadeiras garantias aos cidadãos e aos próprios agentes públicos. Assim, a compreensão do sentido e o caráter de obrigatoriedade da aplicação das normas jurídicas, pertencentes ao direito constitucional e infraconstitucional, são legitimados e limitados por esses princípios fundamentais, tais como os princípios republicano, da separação de poderes, do Estado democrático de Direito e o federativo.

No caso da CPI do Senado Federal da Covid-19, a instalação é para "apurar as ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de oxigênio para os pacientes internados". Logo, a CPI tem como fato determinado a investigação de ações, erros e omissões apenas e tão-somente do Poder Executivo federal no enfrentamento da pandemia e, assim, dois questionamentos jurídicos se lançam imediatamente sobre o fato determinado: 1) fere o princípio federativo e a jurisprudência recente do STF a investigação parlamentar exclusiva da responsabilidade civil e criminal do governo federal no controle da crise sanitária?; 2) é atribuição exclusiva do Senado Federal a investigação do Poder Executivo federal no combate à Covid-19?

O princípio do federalismo disposto no caput dos artigos 1° e 18 da Constituição implica a autonomia recíproca da União, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal. Após a discriminação de competências dada pela Constituição, todos esses entes estão em pé de igualdade, de modo que não podem violar o âmbito de atribuições de cada um. Nessa senda, resumidamente, elenca-se como pontos fundamentais do federalismo brasileiro: a) isonomia dos entes federativos, que representa tratamento constitucional igual pelas autoridades públicas a União, Distrito Federal, estados e municípios, ou seja, no trato da coisa pública não pode existir discriminação e preferências por investigações pautadas por critérios de escolha injustos ou voltados para a apurar condutas isoladas de determinado ente federativo, sabendo-se que estados e municípios também fizeram uso de recursos federais destinados ao combate à pandemia da Covid-19; b) previsão constitucional da descentralização político-administrativa, com hipótese constitucional de núcleos de poder político e administrativo nos diversos entes federativos, isto é, cada ente é dotado de auto-organização, autogoverno e autoadministração; c) rigidez da Constituição, impossibilitando-se a alteração das competências constitucionais por meio de leis infraconstitucionais; d) renda própria dos entes federais, com autonomia financeira, de modo que a existência dos estados e municípios não fique na dependência exclusiva das rendas do poder central; e) existência de um órgão neutro que funcione como guardião da Constituição, que, no Brasil, é o Poder Judiciário, sobretudo o STF, em última instância; f) inexistência do direito de secessão do vínculo federativo, no sentido de assegurar a integridade nacional; g) representação dos Estados-membros no poder central, que, no Brasil, é efetivado no Senado Federal, composto de forma paritária por representantes dos estados e do Distrito Federal.


 

 

 

Dito isso, registra-se que o STF decidiu, por unanimidade, que todos os entes federativos são responsáveis legalmente, no exercício das suas competências constitucionais e no âmbito de seus respectivos territórios, pelo enfrentamento da pandemia da Covid-19, inclusive com a "imposição de distanciamento ou isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, sem prejuízo do exame de validade formal e material de cada ato normativo específico estadual, distrital ou municipal editado nesse contexto pela autoridade jurisdicional competente" [1].

 

Desse modo, como bem afirma o líder senador Alvaro Dias (Podemos-PR) [2], a bancada do seu partido decidiu, no dia 2 de março, posteriormente ao protocolo do requerimento da CPI da Covid-19, no dia 4 de fevereiro [3], que apenas apoiaria a instalação da CPI com outro fato determinado e observando constitucionalmente os parâmetros de isonomia federativa, nos termos do requerimento proposto pelo senador Eduardo Girão (Podemos-CE), que sustenta que se deve ampliar o alcance da CPI para estados e municípios, porque existem indícios muito mais fortes de desvios de verbas e de corrupção em nível estadual e municipal. Alega o senador do estado do Ceará que, até o dia 3 de dezembro de 2020, 61 operações da Polícia Federal demonstraram diversas irregularidades em contratos, fraudes em licitações, superfaturamentos, desvios de recursos públicos federais nos Estados e municípios, com 1.025 mandados de busca e apreensão e outros 144 pedidos de prisão preventiva ou temporária. Citou, também, exemplos de prejuízos de R$ 700 milhões por atos de corrupção referentes aos hospitais de campanha e de mais R$ 25 milhões na compra de respiradores com a aquisição desse tipo de aparelho por consórcio do Nordeste de duas empresas que fazem parte do lobby da maconha [4].

Por sua vez, há de se ressaltar que as características do princípio federativo brasileiro são relevantes para entender que tanto a União, representada pelas casas legislativas federais, como os estados, o Distrito Federal e os municípios, representados por suas Assembleias Legislativas Estaduais, a Câmara Distrital e as Câmaras Municipais, respectivamente, são competentes e têm poderes para criar suas CPIs, mas não se deve perder de vista que a competência para investigar de cada casa legislativa é limitada por sua competência para legislar. Neste sentido, o artigo 146 do Regimento Interno do Senado Federal estabelece que não se admitirá CPI sobre matérias pertinentes à Câmara dos Deputados, às atribuições do Poder Judiciário e aos estados.

Portanto, se é competência constitucional comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios zelar pela guarda da Constituição e das leis, conservar o patrimônio público e cuidar da saúde e assistência pública (artigo 23, incisos I e II), o mais correto seria uma CPI mista formada por parlamentares do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, respeitando o critério da proporcionalidade, com a finalidade de discutir e deliberar conjuntamente sobre a responsabilidade de todos os entes da federação na condução do gasto do dinheiro público para conter o contágio acelerado do coronavírus e da análise das medidas adotadas ou não para que a população brasileira pudesse ter a mais eficiente perspectiva no enfrentamento da pandemia.

Nesse rumo, a formação da CPI acontece por ensejo da apuração de um fato determinado, relacionado e limitado à competência constitucional da respectiva casa legislativa. Destarte, a matéria de competência privativa da Câmara dos Deputados não pode ser objeto de investigação pelo Senado Federal e vice-versa. As matérias de alçada exclusiva do Congresso Nacional também não podem ser apuradas por nenhuma das casas legislativas separadamente. Por consequência, a comissão parlamentar mista de inquérito é quem tem maior e mais apropriada aptidão para investigar tema ligado às competências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

De mais a mais, igualmente, deve-se relembrar a jurisprudência recente do Excelso Pretório de que é "atribuição do presidente da Câmara aferir o preenchimento dos requisitos atinentes à instauração de comissão parlamentar de inquérito" [5]. Com toda razão, nesse sentido, o saudoso baiano Nelson de Sousa Sampaio [6]: "Nem por isso se pode afirmar que o presidente é um autômato, se tivermos em mente que lhe cabe verificar se o objeto do inquérito é fato determinado dentro da competência da Câmara a que preside. Se faltar esse requisito material do inquérito o presidente pode  ou, melhor, deve  indeferir a constituição da comissão investigatória".

Sem sombra de dúvidas, os direitos constitucionais da minoria parlamentar são a pedra de toque do pluralismo político e do Estado democrático de Direito. A tutela e o reconhecimento constitucional desses direitos levam a minoria parlamentar a desempenhar função de relevância no Estado, que é a de fiscalizar a atividade desenvolvida por aqueles que estão com o controle do poder estatal e propor à população alternativas políticas novas. A fiscalização e o exercício da crítica construtiva são instrumentos poderosos da minoria, que devem ser valorizados em uma democracia constitucional. No regime democrático, as decisões da bancada majoritária e da mesa da casa legislativa não podem limitar os direitos constitucionais daqueles que representam a minoria. Esta deve ter a possibilidade de tornar-se maioria com a utilização dos instrumentos normativos existentes e imprescindíveis para sua essencial participação no processo político. Do contrário, estar-se-ia em um Estado de regime autoritário. A vontade da minoria pode ser desprezada, desde que seja representada e derrotada em um processo subordinado às normas jurídicas constitucionais e infraconstitucionais.


 

 

 

Decerto, a investigação da CPI concretiza os direitos de minoria e tem a finalidade de apurar assuntos tendentes a fornecer informações e contribuir para uma das atribuições primárias do Legislativo, que é legislar, mas, nem por isso, o artigo 58, §3°, da Constituição, formulador da disciplina formal das CPIs, é, unicamente, o vetor interpretativo para a instauração do inquérito parlamentar, que, depende, também, da interpretação e aplicação do princípio político-constitucional do federalismo, pois a capital norma jurídica constitucional das CPIs não existe sozinha, solta no ar, faz parte de um todo harmônico, interligado e coordenado entre si, de onde extrai o respectivo fundamento de sua validade.

 

Conclui-se, dessa forma, que a CPI é um instituto jurídico-político notável do Legislativo e se existe é para ser acionada quando necessária. Não se pode dizer que a investigação parlamentar é um instrumento fundamental da democracia e que cria condições para punições exemplares e se contentar, ao mesmo tempo, que só pode existir quando houver a clara compreensão de que as outras investigações não estão andando suficientemente bem. Muito pelo contrário. Ao cassar o direito de minoria e inviabilizar as investigações políticas, a oposição e a sociedade ficam sem explicações, aumentando, a partir daí, as suspeitas sobre as denúncias irregulares que deveriam ser investigadas pelo Poder Legislativo. Sem as investigações parlamentares, certamente o senso de insatisfação da população cresce e as demais investigações pela polícia e pelo Ministério Público se tornam mais frágeis. Porém, os fatos determinados investigados devem possuir conexão com a competência de cada casa legislativa que fundamentou originalmente a investigação parlamentar e respeitar sobremaneira o princípio constitucional politicamente conformador da forma federativa de Estado.

 


[1] ADPF 672/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 29.10.2020.

[2] Pacheco se pronunciará sobre pedido de CPI após aprovação de temas prioritários. In: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/03/02/pacheco-se-pronunciara-sobre-pedido-de-cpi-apos-aprovacao-de-temas-prioritarios. Acesso em 12 de abril de 2021.

[4] Girão pede que CPI sobre covid-19 também investigue estados e municípios. In: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/03/02/girao-pede-que-cpi-sobre-covid-19-tambem-investigue-estados-e-municipios. Acesso em 12 de abril de 2021.

[5] MS 33.521, relator ministro Marco Aurélio, DJe de 24.06.2020.

[6] Do inquérito parlamentar, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1964, p. 37.

Autores

  • Brave

    é procurador do Distrito Federal, pós-doutorando em Direito Tributário da UERJ, doutor em Direito Público pela PUC/SP, especialista em Direito Tributário pela Fundação Faculdade de Direito da UFBA e especialista em Direito Tributário pelo IBET, pós-doutorando em “Derechos Humanos: de los derechos sociales a los derechos difusos” pela Universidade de Salamanca, pós-doutorado em Democracia do Ius Gentium Conimbrigae associado à Universidade de Coimbra, vencedor do Prêmio Luis Eduardo Magalhães com a tese sobre CPI.

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