Opinião

Dez anos da união homoafetiva reconhecida: tributo a Ayres Britto

Autor

  • Acácia Regina Soares de Sá

    é juíza de Direito substituta do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios especialista em Função Social do Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) mestre em Políticas Públicas e Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) coordenadora do grupo temático de Direito Público do Centro de Inteligência Artificial do TJDFT integrante do grupo de pesquisa de Hermenêutica Administrativa do UniCeub e integrante do Grupo de Pesquisa Centros de Inteligência Precedentes e Demandas Repetitivas da Escola Nacional da Magistratura (Enfam).

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14 de abril de 2021, 20h12

No ano de 2011, o Supremo Tribunal Federal, por meio da análise da ADI nº 4277 e da ADPF nº 132, de relatoria do ministro Carlos Ayres Britto, reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar, sendo vedada qualquer discriminação nesse sentido.

Nesse sentido, o ministro Carlos Ayres Britto ressaltou em seu voto que a Constituição Federal, em seu artigo 3º, IV, proíbe qualquer espécie de discriminação, não podendo qualquer pessoa ser diminuída em razão de sua orientação sexual, voto do qual se transcrevem alguns trechos:

"Prossigo para ajuizar que esse primeiro trato normativo da matéria já antecipa que o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. É como dizer: o que se tem no dispositivo constitucional aqui reproduzido em nota de rodapé (inciso IV do art. 3º) é a explícita vedação de tratamento discriminatório ou preconceituoso em razão 11 do sexo dos seres humanos. Tratamento discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de 'promover o bem de todos' (este o explícito objetivo que se lê no inciso em foco).
(…)
Há mais o que dizer desse emblemático inciso IV do artigo 3º da Lei Fundamental brasileira. É que, na sua categórica vedação ao preconceito, ele nivela o sexo à origem social e geográfica da pessoas, à idade, à raça e à cor da pele de cada qual; isto é, o sexo a se constituir num dado empírico que nada tem a ver com o merecimento ou o desmerecimento inato das pessoas, pois não se é mais digno ou menos digno pelo fato de 14 se ter nascido mulher, ou homem. Ou nordestino, ou sulista. Ou de pele negra, ou mulata, ou morena, ou branca, ou avermelhada. Cuida-se, isto sim, de algo já alocado nas tramas do acaso ou das coisas que só dependem da química da própria Natureza, ao menos no presente estágio da Ciência e da Tecnologia humanas".

Ainda no voto, o relator deixou claro que qualquer forma de discriminação, inclusive em razão da orientação sexual, é violadora de direitos fundamentais, razão pela qual deve ser vedada pelo ordenamento jurídico e rechaçada pela sociedade, senão vejamos em trecho que explica bem a questão:

"Mas é preciso aduzir, já agora no espaço da cognição jurídica propriamente dita, que a vedação de preconceito em razão da compostura masculina ou então feminina das pessoas também incide quanto à possibilidade do concreto uso da sexualidade de que eles são necessários portadores. Logo, é tão proibido discriminar as pessoas em razão da sua espécie masculina ou feminina quanto em função da respectiva preferência sexual. Numa frase: há um direito constitucional líquido e certo à isonomia entre homem e mulher: a)de não sofrer discriminação pelo fato em si da contraposta conformação anátomofisiológica; b) de fazer ou deixar de fazer uso da respectiva sexualidade; c) de, nas situações de uso emparceirado da sexualidade, fazê-lo com pessoas adultas do mesmo sexo, ou não; quer dizer, assim como não assiste ao espécime masculino o direito de não ser juridicamente equiparado ao espécime feminino — tirante suas diferenças biológicas —, também não assiste às pessoas heteroafetivas o direito de se contrapor à sua equivalência jurídica perante sujeitos homoafetivos. O que existe é precisamente o contrário: o direito 25 da mulher a tratamento igualitário com os homens, assim como o direito dos homoafetivos a tratamento isonômico com os heteroafetivos".

Da leitura dos trechos do voto do ministro Ayres Britto acima, vê-se que a Constituição Federal, em seu artigo 3º, IV, proibiu qualquer forma de discriminação não só em razão de raça, cor e crença, mas também por conta de orientação sexual.

Nesse sentido, é possível observar que o Supremo Tribunal Federal, nessa decisão, ao vedar qualquer forma de discriminação procurou dar ênfase também à proteção da família pelo artigo 226 e seguintes da nossa Carta Magna, a qual deve ser entendida como qualquer entidade familiar formada por casais homossexuais ou heterossexuais ou ainda por um deles e seus filhos.

Após a decisão do Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça, como forma de reforçar o entendimento firmado, editou uma resolução direcionada aos cartórios de registro civil tratando do assunto.

Dentro desse contexto, no ano em que se completam dez anos da decisão em comento, não se mostra razoável qualquer discussão que pretenda realizar uma interpretação reducionista acerca do conceito de entidade familiar à luz da Constituição Federal, sob pena de violar direitos fundamentais, isso como forma de concretizar o humanismo que, segundo o ministro aposentado do STF Carlos Ayres Britto, "é central" na nossa Constituição Federal, sendo considerado como o fim do qual o Direito é meio [1], estando presente na Constituição independentemente de menção expressa [2].

Assim, é possível concluir que o Brasil, dez anos após a decisão que reconheceu a união homoafetiva, vem passando por uma grande evolução acerca do tema, o que privilegia o indivíduo, como corolário do princípio basilar da nossa Constituição — o princípio da dignidade da pessoa humana. No entanto, ainda que tenhamos avançado muito acerca do tema, devemos continuar a trilhar os caminhos traçados pelo professor e ministro aposentado Carlos Ayres Britto, que sempre buscou em suas decisões, a exemplo da agora tratada, privilegiar a pessoa como centro da Constituição Federal pregando sempre o humanismo como categoria constitucional, título da obra acima mencionada.

 


[1] Britto, Carlos Ayres de. O humanismo como categoria Constitucional. 2ª reimpressão. Ed. Fórum. MG. 2021 "significa atribuir à humanidade o destino de viver no melhor dos mundos. A experimentar o próprio céu na terra, portanto. Mas assim transfundido em democracia plena, ele passa a manter com o Direito uma relação necessária. O Direito enquanto meio, o humanismo enquanto fim. É como dizer: o humanismo, alçado à condição de valor jurídico, é de ser realizado mediante figuras de Direito." (p. 37)

[2] Idem. "Não que as constituintes precisem nominar o humanismo. Basta que elas falem de Democracia para que ele esteja automaticamente nominado." (p.38)

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  • é juíza de Direito Substituta do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, especialista em Função Social do Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul, mestre em Políticas Públicas e Direito pelo Centro Universitário de Brasília – Uniceub, coordenadora do Grupo Temático de Direito Público do Centro de Inteligência Artificial do TJDFT, integrante do Grupo de Pesquisa de Hermenêutica Administrativa do Centro Universitário de Brasília – Uniceub e integrante do Grupo de Pesquisa Centros de Inteligência, Precedentes e Demandas Repetitivas da Escola Nacional da Magistratura – Enfam.

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