Tribuna da defensoria

O papel da Defensoria no fomento de alternativas emancipatórias de conflitos

Autor

  • Renata Martins de Souza

    é defensora pública do estado de Minas doutora em Direito Público e mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG e professora de graduação do curso de Direito.

13 de abril de 2021, 8h01

A possibilidade de todos terem acesso, sem restrições, à Justiça constitui uma das grandes preocupações da sociedade contemporânea.

Cappelleti e Garth (1988, página 12) destacam que o acesso à Justiça pode ser encarado "como o requisito fundamental  o mais básico dos direitos  de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não proclamar os direitos de todos".

Cumpre registrar, contudo, que o acesso à Justiça não se encontra limitado ao ingresso de demandas junto às instâncias formais do Poder Judiciário, abrangendo uma série de fenômenos tendentes a encontrar soluções para os conflitos.

Nesse sentido, ressalta Boaventura de Souza Santos (1986, página 27), "que o Estado contemporâneo não tem o monopólio da produção e distribuição do direito" e que, "apesar do direito estatal ser dominante, ele coexiste na sociedade com outros modos de resolução de litígios".

Em meio a tal contexto, ganha destaque o papel desempenhado pela Defensoria Pública, instituição responsável por garantir direitos e o próprio empoderamento de pessoas comuns, notadamente em virtude da possibilidade de fazer uso dos meios extrajudiciais de solução amistosa de conflitos. Semelhante é a leitura de Sadek (2014, página 2), a qual assevera que:

"Nesta acepção mais ampla sobressai o papel da Defensoria Pública, como instituição absolutamente primordial. Não se trata apenas de um organismo incumbido de defender aqueles que não têm meios materiais de se fazer representar junto à Justiça estatal, mas de instituição com potencial de atuar em todo processo de construção da cidadania: da concretização de direitos até a busca de soluções, quer sejam judiciais ou extrajudiciais".

A exemplo dos demais Estados democráticos de Direito, a garantia do acesso à Justiça tomou feição constitucional no cenário nacional, assegurando o artigo 5º, LXXIV, da CF/88 que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.

No intuito de franquear o acesso à Justiça a todos, o artigo 134 da Constituição, segundo a redação dada pela EC 80/2014, concede à Defensoria Pública status de instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV, da Constituição.

Com vista à regulamentação do disposto no artigo 134 da Constituição, foi introduzida no ordenamento jurídico pátrio a Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública  Lei Complementar n° 80/1994 (LONDP–LC 80/1994), que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos estados, e dá outras providências. Em conformidade com o artigo 3° da citada legislação  que sofreu significativas alterações por meio da Lei Complementar n° 132/2009 —, constituem objetivos institucionais da Defensoria Pública: a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais; a afirmação do Estado democrático de Direito; a prevalência e efetividade dos direitos humanos; e a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

O inciso II do artigo 4º da Lei Complementar número 80/94 estabelece que "são funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: II  promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos (…)".

O referido dispositivo legal consolida o entendimento de que constitui poder/dever dos órgãos da Defensoria tentar resolver os conflitos de forma amigável, antes do ajuizamento de qualquer procedimento no âmbito judicial.

Com isso, tem-se firmado o entendimento de que a Defensoria, dotada de autonomia funcional, administrativa e financeira, não se presta apenas ao patrocínio judicial da causa dos necessitados, na medida em que também é responsável pela orientação jurídica de enorme parcela da população, fomentando o conhecimento acerca dos direitos básicos e a participação popular.

Por derradeiro, desvencilhando-se da cultura do litígio, a instituição apresenta diversos mecanismos de defesa de grupos vulneráveis que não se limitam a intervenções judiciais.

Destaque-se, nesse sentido, entre as ações de promoção ao uso da mediação, o trabalho desempenhado pela Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, a qual, calcada na expansão da cidadania e visando à conscientização e educação dos membros da comunidade em direitos e deveres, por meio do Projeto Mediação de Conflitos em Ambiente Escolar (Mesc) (implantado em 2012), se ocupa de capacitar e orientar a comunidade escolar a lidar com os conflitos diários comuns nas escolas públicas estaduais, sobretudo com adolescentes.

O Mesc apresenta o diferencial de utilizar da técnica da mediação para administrar situações de conflitos e criar alternativas para melhoria da convivência em grupo, maximizando os ganhos para a escola, empoderando seus atores e gerando autonomia. Além de treinar estudantes, professores e servidores para lidar com essas questões por meio de técnicas autocompositivas, o Mesc prevê a implantação de uma sala de mediação nas escolas públicas parceiras.

A iniciativa, que envolve professores e alunos de escolas do estado, é composta de três fases. Primeiramente, são feitas palestras para sensibilizar a comunidade escolar da importância da ferramenta da mediação. Na segunda fase, são realizados cursos, onde são ministrados temas como conceitos e princípios da mediação, noções de cidadania, linguagens corporal, verbal e emocional e relações de convivência. A terceira fase consiste na implementação das ações, quando a sala de mediação começa a funcionar nas escolas. "Nessa fase, nós fazemos o acompanhamento supervisionado até que tenhamos certeza de que aquela escola pode seguir o projeto sozinha. Todo o processo desde a sensibilização até a etapa final dura cerca de um ano e meio", explica a defensora pública Francis de Oliveira Rabelo Coutinho, coordenadora e idealizadora do Mesc (CNJ, 2015).

Por oportuno, válido é registar que o citado método de mediação de conflitos dentro de escolas públicas foi uma das práticas finalistas do 12º Prêmio Innovare, na categoria Defensoria Pública, além de receber o Prêmio Mineiro de Direitos Humanos pela atuação junto às ocupações escolares através da mediação de conflitos coletivos.

A parceria firmada entre a Defensoria e as escolas apresenta o diferencial de provocar o engajamento por parte dos alunos na resolução de seus conflitos, tornando-os legítimos participantes da esfera pública do discurso, além de criar um ambiente propício à reflexão e à escuta empática dentro do ambiente escolar, cenário democrático de reprodução de conhecimento, pluralização de ideias e exercício de tolerância.

Nessa mesma perspectiva de atuação extrajudicial, válido também é registar o Projeto Mutirão Direito a Ter Pai (implantado pela defensoria mineira em 2011), evento destinado ao reconhecimento de paternidade/maternidade, promovido anualmente pela instituição, em várias unidades do estado. Todo o serviço é gratuito e contempla exames de DNA e reconhecimento espontâneo de paternidade. Durante a pandemia, inclusive, o formato do evento foi adequado de forma a ser realizado com todos os cuidados sanitários de prevenção à Covid-19, sendo disponibilizado pela instituição endereço de e-mail e número de Whatsapp para receber as inscrições dos assistidos na edição de 2020.

O objetivo do evento é garantir à criança, ao adolescente e ao adulto, o direito a ter o nome do pai ou da mãe em seu registro de nascimento, resgatando a dignidade do filho não reconhecido, além de conscientizar o pai da importância de sua presença na vida e desenvolvimento de seu filho. Válido pontuar, ainda, que o mutirão Direito a Ter Pai já superou a marca de 50 mil atendimentos em Minas Gerais desde sua primeira edição. (CNJ, 2020).

Em face de tais questões, torna-se possível afirmar que a despeito de a sociedade brasileira ainda continuar sendo permeada pela cultura do litígio, medidas como essas, de conscientização a respeito de outras formas de resolução dos conflitos, contribuem para a difusão de soluções que se revelem adequadas à particularidade de cada conflito, restituindo à comunidade e aos seus cidadãos o exercício da autonomia política, por meio da gestão dos próprios conflitos.

Com efeito, além de educar grupos vulneráveis na consolidação de seus direitos e garantias fundamentais, de modo que consigam dar voz às suas necessidades e levantar suas reivindicações, projetos como esses tendem a desafogar o aparelho judiciário, evitando a propositura de inúmeras ações judiciais.

Deveras, cumpre ter presente, nesse ponto, o fato de que o estímulo ao debate e ao diálogo permanente através de projetos de natureza informal e comunitária como estes acabam possibilitando a formação de consensos e afastando litígios no seio da escola e da própria comunidade. Torna-se imperioso reconhecer, ainda, que no contexto de uma sociedade plural, as formas de efetivação do acesso à Justiça passam pela dinâmica da linguagem e por um procedimento discursivo inclusivo, devido à impossibilidade de o regime de solução de conflitos se escorar apenas nas instancias do Poder Judiciário.

Em face de tais questões, torna-se possível afirmar que, sem embargo do importantíssimo papel consistente na defesa individual de direitos nas demandas judiciais, não se deve olvidar do fato de que a atual configuração institucional da Defensoria lhe permite ir além, não encontrando sua missão limitada à prestação de orientação jurídica e exercício da defesa dos necessitados no plano judicial, dada a sua habilidade para atuar como instância de fomento de alternativas emancipatórias de conflitos.

 

Referências bibliográficas
BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Texto constitucional de 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas emendas constitucionais. Diário Oficial da União, Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: Acesso em: 9 abr. 2021.

BRASIL. Presidência da República. Lei Complementar n. 80, de 12 de janeiro de 1994. Organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal, dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e dá outras providências. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos. Diário Oficial da União, 13 jan. 1994. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp80.htm>. Acesso em: 9 abr. 2021.

CAPPELLETI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTICA (CNJ), 2015. Mediação em escolas é adotada por Defensoria Pública de Minas Gerais, Brasília: CNJ, 2015. Disponível em: < https://cnj.jusbrasil.com.br/noticias/291346563/mediacao-em-escolas-e-adotada-por-defensoria-publica-de-minas-gerais?ref=amp>. Acesso em: 9 abr. 2021.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTICA (CNJ), 2020. Defensoria Pública mineira abre inscrições para o Mutirão Direito a Ter Pai 2020, Brasília: CNJ, 3 set. 2020. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/defensoria-publica-mineira-abre-inscricoes-para-o-mutirao-direito-a-ter-pai-2020/>. Acesso em: 9 abr. 2021.

SANTOS, Boaventura Sousa. Introdução à Sociologia da Administração da Justiça. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 21, 1986.

SADEK, Maria Tereza. A Defensoria Pública no Sistema de Justiça Brasileiro. 2014. Disponível em: <https://www.defensoria.ce.def.br/wp-content/uploads/downloads/2015/02/a-defensoria-publica-no-sistema-de-justica-brasileiro.pdf>. Acesso em: 9 abr. 2021.

Autores

  • Brave

    é defensora pública do Estado de MG, doutora em Direito Público e mestre em Teoria do Direito pela PUC-Minas, professora da Rede Doctum, membro da Câmara de Estudos Institucionais e Estudos de Controle de Constitucionalidade da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais.

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