Paradoxo da Corte

Inconstitucionalidade do sigilo de processo judicial sobre arbitragem

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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13 de abril de 2021, 8h02

A publicidade e o dever de motivação estão consagrados, pela moderna doutrina processual, na esfera dos direitos fundamentais, como pressupostos do direito de defesa e da imparcialidade e independência do juiz.

A publicidade do processo constitui um imperativo de conotação política, introduzido, nos textos constitucionais contemporâneos, pela ideologia liberal, como verdadeiro instrumento de controle da atividade dos órgãos jurisdicionais.

É, assim, uma garantia para o procedimento legal e imparcial dos tribunais, que se sobrepõe à vontade dos litigantes, devido à influência disciplinadora propiciada pela possibilidade que concede ao jurisdicionado de vigiar os atos e termos do processo. Ao mesmo tempo, a publicidade desvela a vertente pedagógica da Justiça. No mundo, a publicidade é a mais adequada técnica para uma boa justiça e um dos melhores meios de informação para a sociedade (Joan Picó i Junoy, Las garantías constitucionales del proceso, Barcelona, Bosch, 1997, página 116 ss).

Na mesma linha, Eduardo Couture, ao conceber a publicidade e transparência dos atos processuais como a própria essência do modelo democrático de tutela jurisdicional, assevera que representa ela um elemento necessário "para a aproximação da Justiça aos cidadãos" (Fundamentos del derecho procesal civil, 3ª ed., Buenos Aires, Depalma, 1966, página 87).

O Código de Processo Civil vigente, além de manter-se fiel aos dogmas clássicos do processo liberal, assegurando, como regra, a publicidade absoluta ou externa, mostra considerável aperfeiçoamento em relação ao diploma processual revogado.

Em primeiro lugar, como norma de caráter geral, praticamente repetindo o mandamento constitucional (artigo 93, inciso IX), dispõe o artigo 11, caput, que: "Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade".

A exceção vem preconizada no respectivo parágrafo único, com a seguinte redação: "Nos casos de segredo de justiça, pode ser autorizada a presença somente das partes, de seus advogados, de defensores públicos ou do Ministério Público".

Coerente com essas premissas, o artigo 189 do Código de Processo Civil preceitua que: "Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos: I  em que o exija o interesse público ou social; II  que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes; III  em que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade; IV  que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo. §1º O direito de consultar os autos de processo que tramite em segredo de justiça e de pedir certidões de seus atos é restrito às partes e aos seus procuradores. §2º O terceiro que demonstrar interesse jurídico pode requerer ao juiz certidão do dispositivo da sentença, bem como de inventário e partilha resultante de divórcio ou separação".

Impõem-se aqui duas observações. Nota-se que o artigo 189 continua utilizando a anacrônica expressão "segredo de Justiça", ao invés daquela muito mais técnica, qual seja, "publicidade restrita".

Ademais, o interesse a preservar, muitas vezes, não é apenas de conotação "pública", mas, sim, "privada" (como, por exemplo, casos de erro médico, nos quais a prova produzida pode vulnerar a dignidade da pessoa envolvida), ou seja, de um ou de ambos os litigantes, devendo o juiz, norteado pelo inciso X do artigo 5º, da Constituição Federal, valer-se do princípio da proporcionalidade, para determinar o regime da "publicidade restrita" na tramitação do respectivo processo. Observe-se que a própria Constituição Federal autoriza a publicidade restrita para proteger a intimidade das partes: artigo 5º, inciso LX ("A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem") (v., a propósito, Pontes de Miranda, "Comentários ao Código de Processo Civil", t. 3, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1979, página 71, ao enfatizar que: "… Hoje em dia, os respeitáveis interesses do Estado em que se ignore a posição de certos serviços estratégicos, bem como os dos particulares… são tão dignos de proteção quanto o decoro e a moralidade pública").

Andou bem o legislador ao zelar, de forma expressa (artigo 189, inciso III), pela garantia constitucional da privacidade/intimidade de informações respeitantes às partes ou mesmo a terceiros (artigo 5º, inciso XII, Constituição Federal). Mas isso não basta. Há também outros dados, que, embora não preservados pela mencionada garantia, quando revelados, em muitas circunstâncias, acarretam inequívoco prejuízo a um dos litigantes. Refiro-me, em particular, às ações concorrenciais, que têm por objeto dados atinentes à propriedade intelectual, ao segredo industrial, ao cadastro de clientes etc. Essas informações, igualmente, merecem ser objeto de prova produzida em "regime de publicidade restrita".

Os preceitos constitucional e processual, portanto, são bem claros. A ampla publicidade é a regra. A publicidade restrita constitui exceção, devendo ser decretada quando houver interesse social ou aquele das partes suplantar o interesse público.

No âmbito do processo arbitral, pelo contrário, a regra é a da publicidade restrita.

Não obstante, essa questão, mais recentemente, por inúmeras e importantes razões, tem sido objeto de questionamento em vários setores da nossa sociedade.

Tanto é assim que a Comissão de Valores Mobiliários publicou recentemente edital de convocação de audiência pública (SDM n° 01/21), que visa a alterar a Instrução Normativa CVM n° 480, para determinar o dever de informação de demandas judiciais e arbitrais, em prol do regime de proteção dos acionistas minoritários no mercado de valores mobiliários.

Ademais, bem é de ver que as Varas Empresariais e de Conflitos Relacionados à Arbitragem da Comarca de São Paulo, de um modo geral, têm afastado a exceção constante do artigo 189, inciso IV, acima transcrito, no âmbito de ações anulatórias de sentença arbitral, por entendê-la incompatível com o texto constitucional. Na verdade, exercendo controle difuso, sucessivas decisões têm reconhecido a inconstitucionalidade incidenter tantum do inciso IV do artigo 189 do Código de Processo Civil.

Anote-se, outrossim, que o Tribunal de Justiça paulista tem prestigiado esse posicionamento, como se infere, e. g., de recente acórdão da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, prolatado no julgamento do Agravo de Instrumento n° 2263639-76.2020.8.26.0000, com voto condutor do desembargador Cesar Ciampolini.

Confesso que foi com certa dose de perplexidade e preocupação que passei a refletir sobre esse relevante tema. Todavia, acabei considerando correta tal orientação, uma vez que, a rigor, não implica novidade alguma.

Com efeito, exige-se apenas que o juiz, ao receber os autos da ação anulatória da sentença arbitral, pondere acerca de seu objeto, procedendo de modo em tudo análogo à análise que faz quando examina a repercussão social ou à intimidade do thema decidendum de qualquer outro processo, a impor ou não o regime excepcional da publicidade restrita.

Daí o inequívoco acerto do indigitado acórdão relatado pelo desembargador Cesar Ciampolini, visto que efetivado o necessário juízo de ponderação para justificar o decreto de inconstitucionalidade do já apontado inciso IV do artigo 189. Reputo, pois, oportuna a transcrição parcial de trecho da lúcida e consistente fundamentação daquele julgado:

"Indefiro a tramitação do processo em segredo de justiça, em razão da inconstitucionalidade do artigo 189, IV, do CPC.
Segundo referida norma, tramitarão em segredo de justiça os processos 'que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo'. Entretanto, a inovação introduzida pela Lei n° 13.105/2015 é incompatível com o artigo 5º, LX, e com o artigo 93, IX, da CF. Segundo o artigo 5º, LX, 'a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem'.
Como se observa, a regra é a publicidade, que apenas pode ser restringida para salvaguardar a intimidade ou o interesse social.
Outrossim, tratando-se de regra restritiva de direitos (a possibilidade de a lei limitar a publicidade dos atos processuais), por hermenêutica, sua interpretação deve necessariamente ser restritiva.
Caso assim não fosse, estar-se-ia admitindo que o legislador infraconstitucional poderia ampliar as restrições de direitos estabelecidas pela Constituição, diminuindo, por consequência, a proteção de direitos tidos (pelo próprio constituinte) como de maior valia.
Nesse sentido, os incisos I, II e III, do artigo 189 do CPC instrumentalizam de forma restritiva a exceção autorizada pelos artigos 5º, LX, e 93, IX, da CF, o que apenas não é observado no inciso IV, que amplia o segredo para além da intimidade e do interesse social, visando proteger interesses estritamente particulares.
Ora, o artigo 189, IV, do CPC prestigia interesses puramente privados, destacando, por um lado, o interesse do tribunal arbitral, que por razões próprias estabeleceu genericamente o sigilo dos seus procedimentos e, por outro, o interesse das partes envolvidas no litígio, que preferem manter a controvérsia em segredo.
Vale destacar que diante do mesmo litígio, sem previsão de arbitragem, eventual cláusula de confidencialidade provavelmente seria insuficiente para que fosse determinado o segredo de justiça.
Logo, por uma perspectiva geral e abstrata (portanto, dissociada do caso concreto), a regra do artigo 189, IV, do CPC não preserva a intimidade ou o interesse social, valores estes que, aliás, já estão abrangidos nos incisos I, II e III.
Na contramão, o artigo 189, IV, do CPC possibilita que as orientações do Poder Judiciário sejam conhecidas apenas por poucos advogados e poucos julgadores, sendo desconhecidas pelo jurisdicionado.
Aliás, o novo Código de Processo Civil prestigia a segurança e a previsibilidade, fortalecendo a influência dos precedentes e da jurisprudência.
Ademais, tal restrição à publicidade obsta o conhecimento e o controle social sobre temas relevantíssimos, inclusive por pessoas relacionadas de forma direta ou indireta com o litígio (como, por exemplo, os acionistas de companhias abertas), em razão da absoluta falta de acesso aos processos e aos provimentos jurisdicionais, seguido pela absoluta falta de acesso aos procedimentos arbitrais.

Por consequência, há evidente prejuízo à tomada de decisões por pessoas que desconhecem a forma pela qual as normas abstratas são concretizadas, o que, ademais, sem razoabilidade, gera situação favorável aos pouquíssimos que têm acesso às informações socialmente tão relevantes".

Concluo, em apertada síntese, salientando que a razão primordial da convincente ratio decidendi deste acórdão encontra-se, sobretudo, nas partes que destaquei, no sentido de que, não se estivesse no terreno da arbitragem, jamais seria decretado o regime de publicidade restrita, visto que a natureza do objeto litigioso do processo arbitral, cuja sentença se pretende anular por meio da referida demanda, não se caracteriza por qualquer peculiaridade, de interesse público ou social, a justificar a restrição da publicidade.

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