Opinião

Incompetência, suspeição de juiz e consequências

Autor

  • Eugênio Pacelli de Oliveira

    é advogado doutor em Direito pela UFMG ex-Procurador-Regional da República no Distrito Federal e relator-geral da Comissão de Anteprojeto do Novo Código de Processo Penal instituída pelo Senado da República.

13 de abril de 2021, 15h47

O tema da competência de jurisdição sempre foi o calcanhar de Aquiles da jurisprudência dos tribunais, incluindo os superiores. Exemplo eloquente dessa hesitação deu-se em relação aos crimes praticados contra o patrimônio ou interesses de sociedades de economia mista, outrora julgados pela Justiça dos estados, e, pelo menos a partir de 2014, afirmados como da competência da Justiça federal. A primeira — e equivocada posição — se valia da textualidade do artigo 109, IV, da CF; a segunda compreendeu, enfim, que lesões à empresas das quais a União seria principal acionista afetaria direito dela.

Aproxima-se o momento de julgamento de questões processuais fundamentais pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, recentemente otimizadas a partir de decisão da 2ª Turma da Suprema Corte, acerca da alegação de suspeição de magistrado, em processo envolvendo ex-presidente da República. Mais relevante ainda, e adiante se explicitará a razão de precedência, será a apreciação da incompetência daquele juízo, arguida pelo ministro Fachin, e da qual resultaria a perda de objeto de outras impugnações ainda não julgadas naquela turma.

Serão duas, pelo menos, as grandes questões a serem decididas, a saber: 1) se o Plenário poderia rever a decisão acerca da suspeição de Moro, já julgada na 2ª Turma; e 2) quais seriam os efeitos da prejudicialidade afirmada por Fachin em Habeas Corpus impetrado pela defesa de Lula.

A primeira é bem simples.

O Plenário do STF não constitui instância revisora de julgamentos de suas turmas, admitindo-se apenas, e em tese, uma possível (também) tese sobre sua competência para apreciar eventuais embargos infringentes para condenados em julgamento criminal com dois votos vencidos (previsão regimental para condenações em Plenário). De modo que, tendo sido já julgada a suspeição, com voto de todos os membros da turma, não cabe análise, pelo Plenário, de seu acerto ou equívoco.

É a segunda questão, contudo, que oferecerá maiores reflexões e disputará a primazia de julgamento.

E assim é, também, por força da norma contida no velho CPP, na qual se explicita a ordem de apreciação de exceções processuais, tal é o texto de seu artigo 96. Dali se extrai que a parte deverá brandir a exceção de suspeição antes de qualquer outra, salvo quando superveniente a sua causa. A razão pela qual se estabeleceu a aludida ordem de preferência merece uma explicação.

Ninguém poderá duvidar de que, a rigor, a incompetência do juízo deveria e deve preceder a qualquer decisão no processo, pois, se o juiz não tem competência jurisdicional, por que razão ele atuaria e, menos ainda, ali decidiria qualquer matéria, que não essa?

A razão de ser da norma parece abrir importante exceção à regra, dado que supõe, ao que tudo indica, que o juiz suspeito estaria impedido de apreciar sua competência, pois, se suspeito ele é, suspeita seria a afirmação de competência. Já se, ao contrário, o juiz afirmar sua incompetência em processo do qual seria suspeito, não haverá consequência relevante, pois ele não julgaria ou instruiria o processo.

Daí a regra de antecedência na apreciação.

Assim, e pelas mesmas razões lógicas, a decisão de incompetência do juízo pelo tribunal já afastaria os deletérios efeitos do juiz suspeito. O problema residual diz respeito apenas ao tempo das decisões. Em condições normais de temperatura e pressão a abstração das normas não encontraria adversário. Já a sua aplicação no caso concreto nos revela as perplexidades derivadas da demora no julgamento, ou, mais que isso — na hipótese aqui delineada — do atraso no reconhecimento da incompetência territorial do juiz, questão bem menos complexa que a do juiz constitucional (artigo 109, CF).

Na decisão do ministro Fachin, mais correta pela conclusão do que pela fundamentação, a incompetência foi afirmada com base na aplicação de regras atinentes aos critérios de modificação de competência (artigo 76 e seguintes do CPP), que desvelaria a ausência de conexidade relevante entre os processos da "lava jato" e aqueles do ex-presidente. Que assim seja, se não for mesmo, e antes, originária (artigo 75, CPP).

Bem, dito isso, convém lembrar ser prática frequente nos tribunais, e muito provavelmente pelo excesso de processos que sobrecarregam as cortes, a afirmação de prejudicialidade de questões processuais, a impedir a apreciação do mérito de ações (mandado de segurança, Habeas Corpus), quando de algum modo resolvida a questão de fundo. O maior exemplo disso, em matéria penal, é a afirmação da prescrição da punição, ainda quando a parte insista na sua absolvição, por, em outro exemplo, atipicidade da conduta.

A Suprema Corte enfrentará, em breve, justamente uma dessas arguições.

A decisão de perda de objeto de outros HCs, em face do reconhecimento da incompetência do juiz da 13ª Vara de Curitiba, seria a solução juridicamente mais adequada?

Do ponto de vista dos tribunais, a resposta poderá ser positiva, fundada que estaria em inúmeros precedentes.

Para a parte, todavia, não. E isso porque a incompetência territorial não impedirá o aproveitamento de instrução de atos já realizados, segundo a própria decisão do ministro Fachin, e segundo consta expressamente do CPP (artigo 567). Discutir o acerto ou não dessa jurisprudência aqui é matéria para debate mais alentado e alongado.

De todo modo, da mesma maneira que sustentamos ser dever do tribunal apreciar a impugnação que melhor atenda ao interesse jurídico da parte, independentemente de se ter por afastada a punição por outro motivo, pensamos que a arguição de suspeição feita em outro Habeas Corpus e relativa à outra condenação ainda poderá ser apreciada pela 2ª Turma, a única competente para o seu julgamento.

Destaque-se, no ponto, não ser da competência do Plenário e nem a ele poderá ser afetado o julgamento da suspeição levantada em outro processo, até mesmo pelo fato de a matéria já ter sido enfrentada pela 2ª Turma, ocasião em que se afastou a afetação.

Por fim, ainda que não seja essa a solução alvitrada pela corte, e o Plenário referende a posição do ministro Fachin quanto à perda de objeto de outros recursos/impugnações não julgados ainda, os juízos competentes para a apreciação dos processos prejudicados poderão apreciar a questão da suspeição dos atos anteriores, como matéria de defesa direta e não mais como exceção.

Em consequência, a questão poderá voltar à 2ª Turma do STF, agora por meios de outras impugnações, se a decisão em primeiro grau ignorar a orientação afirmada no reconhecimento da suspeição, que teve por fundamento a incompatibilidade do magistrado para o julgamento da pessoa do ex-presidente. Caso em que a lembrança de chicos e franciscos emergirá de modo perturbador.

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  • Brave

    é mestre e doutor em Direito. Advogado, ex-procurador regional da República no Distrito Federal. Relator-Geral da Comissão de Anteprojeto do Novo Código de Processo Penal, instituída pelo Senado da República.

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