Opinião

O descumprimento das medidas protetivas e o consentimento da vítima

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13 de abril de 2021, 6h34

A atuação da autoridade policial no que tange à violência doméstica e familiar contra as mulheres não pode prescindir de certas noções a respeito das dinâmicas dos relacionamentos abusivos, sobretudo a capacidade de identificar o ciclo da violência.

As agressões vivenciadas nas relações íntimas tendem a seguir um ciclo (que se repete constantemente, geralmente escalando em velocidade e intensidade). Costuma-se dividir esse ciclo em três fases. Na primeira fase, percebe-se um aumento da tensão: o agressor mostra-se cada vez mais irritado e intolerante, passa a ter acessos de raiva, faz ameaças, quebra coisas. No auge dessa tensão, eclode um episódio de violência contra a mulher (física, moral, psicológica). Nessa segunda fase, a mulher tende a buscar ajuda, a denunciar, a pedir medida protetiva de urgência, a se afastar do agressor. Entretanto, após o rompante violento, o agressor tende a se arrepender, iniciando-se a terceira fase do ciclo: a lua de mel. São pedidos de desculpas, gestos amorosos, promessas de que a violência jamais se repetirá, de que tudo vai mudar. Há apelo aos filhos, à família, à estabilidade e, muitas vezes, há reconciliação (as informações a respeito do ciclo da violência foram tiradas daqui e daqui).

É corriqueiro, em delegacias especializadas em violência doméstica, termos a notícia de que aquela mesma mulher que pediu e teve deferida em seu favor medida protetiva de urgência restabeleceu a relação conjugal.

Ocorre que a reconciliação em geral se dá às margens do sistema de persecução penal. Raros são os episódios em que a mulher comunica à delegacia de polícia ou ao Poder Judiciário que voltou a se relacionar com o agressor, de modo que a convivência existe ao mesmo tempo em que ainda vigem as medidas protetivas de urgência.

Infelizmente, embora previsível, na medida em que se trata de um relacionamento abusivo, o ciclo da violência tende a se retomar e novo episódio de violência é comunicado às autoridades que percebem, então, que a despeito da vigência da medida protetiva de urgência, a aproximação aconteceu. A dúvida que se põe, agora, relaciona-se ao cometimento ou não do crime do artigo 24-A pelo agressor que, com o consentimento da mulher vitimada, restabeleceu a convivência conjugal, muitas vezes voltando ao lar de onde tinha sido afastado.

Vale aqui uma breve digressão histórica.

O artigo 24-A da Lei 11340/06, inserido no ordenamento jurídico pela Lei 13.641/2018, tipifica a conduta de descumprir decisão judicial que defere as medidas protetivas, prevendo pena de três meses a dois anos de detenção.

O surgimento de tal dispositivo pôs fim à divergência que havia em relação à punição do agressor que descumprisse as medidas de afastamento imposta. Havia grande divergência a respeito da responsabilização do agressor, até que o Superior Tribunal de Justiça pacificou entendimento concluindo que o descumprimento não era conduta penal tipificada e que não configuraria o crime de desobediência a ordem judicial.

Segundo entendimento de tribunais estaduais, o consentimento da vítima de violência doméstica quanto à permanência do agressor na residência do casal após o deferimento das medidas protetivas de urgência não afasta os efeitos da decisão judicial que as deferiu. O consentimento da vítima não teria o condão de revogar a decisão judicial, que continua tendo validade.

Vejamos parte do Acórdão 1245366, 00057834720188070009, relator: ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, 2ª Turma Criminal, data de julgamento: 23/4/2020, publicado no PJe: 6/5/2020:

"(…) A alegação de atipicidade da conduta referente ao crime de descumprimento de medida protetiva de urgência também não merece prosperar. O tipo penal do artigo 24-A da Lei nº 11.340/2006 visa à proteção da mulher de forma indireta, sendo que o objeto jurídico protegido é a manutenção do respeito às decisões judiciais, sendo o sujeito passivo, primeiramente, a Administração da Justiça. A doutrina aponta requisitos para a aplicação do consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da antijuridicidade, os quais se situam nos seguintes grupos: a) liberdade no consentir; b) capacidade para consentir (compreensão do consentimento); e c) disponibilidade do bem jurídico exposto a perigo de lesão (…) E, evidenciados os requisitos, verifica-se, de início, que o bem jurídico tutelado pelo crime do artigo 24-A da Lei nº 11.340/2006 é indisponível, uma vez que se refere, primeiramente, à Administração da Justiça, e apenas secundariamente à proteção da vítima… E, em sendo indisponível o bem jurídico tutelado pela norma penal, não cabe a aplicação do instituto do consentimento da ofendida. Assim, enquanto vigentes as medidas protetivas impostas em favor da ofendida, era obrigação do recorrente cumpri-las, a fim de assegurar a integridade física da vítima".

Temos que o principal destinatário da decisão é o agressor e a ele cabe o dever de respeitá-la.

O objeto jurídico tutelado pela norma é a manutenção do respeito às decisões judiciais, enquanto o sujeito passivo é de maneira primária, a administração da Justiça e, secundariamente, a própria vítima da violência doméstica e familiar.

O consentimento da vítima não teria o condão de revogar a decisão judicial, que continua tendo validade.

Vejamos parte do acórdão 1245366, 00057834720188070009, Relator: ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, 2ª Turma Criminal – TJ-DFT, data de julgamento: 23/4/2020, publicado no PJe: 6/5/2020:

"(…) A alegação de atipicidade da conduta referente ao crime de descumprimento de medida protetiva de urgência também não merece prosperar. O tipo penal do artigo 24-A da Lei nº 11.340/2006 visa à proteção da mulher de forma indireta, sendo que o objeto jurídico protegido é a manutenção do respeito às decisões judiciais, sendo o sujeito passivo, primeiramente, a Administração da Justiça. A doutrina aponta requisitos para a aplicação do consentimento do ofendido como causa supralegal de exclusão da antijuridicidade, os quais se situam nos seguintes grupos: a) liberdade no consentir; b) capacidade para consentir (compreensão do consentimento); e c) disponibilidade do bem jurídico exposto a perigo de lesão.(…) E, evidenciados os requisitos, verifica-se, de início, que o bem jurídico tutelado pelo crime do artigo 24-A da Lei nº 11.340/2006 é indisponível, uma vez que se refere, primeiramente, à Administração da Justiça, e apenas secundariamente à proteção da vítima… E, em sendo indisponível o bem jurídico tutelado pela norma penal, não cabe a aplicação do instituto do consentimento da ofendida. Assim, enquanto vigentes as medidas protetivas impostas em favor da ofendida, era obrigação do recorrente cumpri-las, a fim de assegurar a integridade física da vítima".

Perceba-se que o sujeito passivo do crime de descumprimento de medida protetiva é, de maneira primária, a administração da Justiça e somente secundariamente a vítima da violência doméstica e familiar contra as mulheres.

Tal solução, embora tecnicamente fundamentada, parece ofender os princípios mais básicos do Direito Penal, implicando certa mecanização da justiça penal.

No imaginário popular, a Lei Maria da Penha se presta a proteger mulheres de homens agressores (que frequentemente nem sequer se identificam como tal).

Ainda que vija entre nós a presunção de que todos conhecem a lei (artigo 3º da LINDB), fere a razoabilidade exigir que o suposto agressor, leigo, restrinja sua aproximação da vítima de violência doméstica quando ela mesma consinta no restabelecimento da relação.

Há, aqui, evidente hipótese de erro de proibição. Conforme dispõe o artigo 21, caput, CP: "O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuir a pena de um sexto a um terço".

O agressor que reata o relacionamento com a vítima, com o consentimento desta, não tem conhecimento da ilicitude de sua conduta. Lembrando que para que incida a teoria do erro de proibição o que se exige é a potencial consciência da ilicitude. O legislador determinou que o erro de proibição exclui a culpabilidade, por inexistência de potencial conhecimento de ilicitude. Nesses casos, o agressor atua acreditando que sua conduta é lícita.

Dessa forma, ainda que se considerasse típica a conduta do agressor, ela estaria acobertada pelo erro de proibição, podendo ser ele isento de pena.

Ademais, é de se relembrar que o Direito Penal se coloca como a ultima ratio do sistema, devendo um sujeito ser sancionado penalmente apenas se existir um bem jurídico ameaçado ou violado. Ainda que a conduta seja formalmente típica, não é possível constatar uma ameaça ou lesão ao bem jurídico tutelado, uma vez que a vítima autorize a aproximação do agressor.

O STJ já teve oportunidade de se manifestar nesse sentido:

"HABEAS CORPUS. LEI MARIA DA PENHA. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA (artigo 24-A DA LEI N° 11.340/06). ABSOLVIÇÃO. APROXIMAÇÃO DO RÉU DA VÍTIMA. CONSENTIMENTO DA OFENDIDA. AMEAÇA OU VIOLAÇÃO DE BEM JURÍDICO TUTELADO. AUSENTE. MATÉRIA FÁTICA INCONTROVERSA. POSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA.
1 — A intervenção do direito penal exige observância aos critérios da fragmentariedade e subsidiariedade.

2 — Ainda que efetivamente tenha o acusado violado cautelar de não aproximação da vítima, isto se deu com a autorização dela, de modo que não se verifica efetiva lesão e falta inclusive ao fato dolo de desobediência.
3 — A autorização dada pela ofendida para a aproximação do paciente é matéria incontroversa, não cabendo daí a restrição de revaloração probatória.
4 — Ordem concedida para restabelecer a sentença absolutória". (HC 521.622/SC, relator ministro NEFI CORDEIRO, 6° TURMA, julgado em 12/11/2019, DJe 22/11/2019).

Dessarte, ainda que o crime do artigo 24-A da Lei Maria da Penha tenha como bem jurídico tutelado imediato a administração da Justiça, entendemos desarrazoada a interpretação que considera típica a aproximação entre suposto agressor e vítima, a despeito da vigência de medida protetiva de urgência, se houver consentimento desta.

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