Opinião

A ADC n°66 e a prestação de serviços intelectuais por pessoas jurídicas

Autores

  • Rodrigo Schwartz Holanda

    é mestre em Direito Tributário pela PUC/SP advogado tributarista bacharel em Ciências Contábeis professor de Direito Tributário do IBET/SC especialista em Direito Tributário pelo IBET/SP especialista em Processo Civil pesquisador do Instituto de Aplicação do Tributo sócio do escritório Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados.

  • Manoella Keunecke

    é doutoranda e mestra em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo (USP) pesquisadora do Observatório Brasileiro de IRDRs na Justiça do Trabalho (OBI-JT-USP) do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da USP (Getrab-USP) e do Núcleo de Estudos Avançados em Direito do Trabalho e Socioeconômico da Universidade Federal de Santa Catarina (Neates-UFSC) advogada e presidente da Comissão de Processo do Trabalho da OAB-SC.

13 de abril de 2021, 20h36

No julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade 66/DF (ADC 66), o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a compatibilidade do artigo 129 da Lei n° 11.196/2005 com o texto constitucional. A norma veiculada por este dispositivo prescreve que "a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita", para fins tributários e previdenciários, tão somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, não obstante a possibilidade de desconsideração de personalidade jurídica nos casos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial [1].

Analisando o julgamento, percebe-se que o que se decidiu foi somente que o regime aplicável às pessoas jurídicas é compatível com o regime de tributação das sociedades dedicadas aos serviços intelectuais, independentemente do caráter personalíssimo da atividade desempenhada. Nesse contexto, é pertinente emprestar enfoque ao tema tendo em consideração a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2.446/DF (ADI 2.446), ajuizada em face do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN), e a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 324/DF (ADPF 324), cujo objeto foi a licitude da terceirização de serviços.

Isso porque o reconhecimento da constitucionalidade do artigo 129 da Lei n° 11.195/2006 robustece duas coisas: primeiro, de um lado, reforça a legalidade da prestação dos serviços intelectuais por intermédio de uma pessoa jurídica para fins trabalhistas e tributários, e, de outro, assinala uma orientação à fiscalização sobre a impossibilidade de afastar o regime tributário aplicável a tais entidades.

É que a prática da prestação de serviços intelectuais através de pessoa jurídica, difundida no Brasil há muitos anos, embora tenha conhecidas vantagens como a flexibilidade no estabelecimento das obrigações assumidas entre os contratantes e a redução dos encargos tributários e trabalhistas sempre teve um grande inconveniente: era (e, talvez ainda seja) facilmente desconstituída pelas autoridades fazendárias e pelos juízos trabalhistas em ações judiciais.

As autoridades fiscais, nos termos dos artigos 142 e 149 do CTN, possuem competência para verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, realizar o lançamento e propor a aplicação da penalidade cabível. Nessa atividade fiscalizatória, contudo, não estão autorizadas a desconsiderar a autonomia da vontade das partes sobre o vínculo jurídico que desejaram estabelecer, seja ele, inclusive, direcionado à prestação de serviços intelectuais por pessoa jurídica constituída. Inexistindo ilicitude, por fraude ou abuso, a vontade dos contratantes merece algum peso  o peso que tem o valor da liberdade de iniciativa e de concorrência (inciso IV do artigo 1º e inciso IV do artigo 170 da Constituição Federal).     

É notável que o problema nunca foi, verdadeiramente, o dispositivo colocado à prova na ADC 66  cujo significado é quase uma obviedade , mas o limite da liberdade do contratante para decidir a forma jurídica e conduzir suas ações de forma a obter o regime jurídico que lhe seja mais vantajoso ou interessante, seja tributário ou trabalhista. E, aqui, é inevitável fazer-se menção à ADI 2446, que questiona a compatibilidade do parágrafo único do artigo 116 do CTN com a CF. Aludido dispositivo prescreve que a "autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária", que até o momento inexiste  a despeito de alguns movimentos legislativos neste sentido (MP n° 66/2002 e n° 685/2015).

Ao analisar a compatibilidade deste dispositivo com o texto constitucional, a ministra Cármen Lúcia registrou, em minuta de voto, que a "norma não proíbe o contribuinte de buscar, pelas vias legítimas e comportamentos coerentes com a ordem jurídica, economia fiscal, realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada".

A mesma lógica produz efeitos, também, trabalhistas. Por mais de uma vez, o STF decidiu temas afetos à área de forma diferente do que decidem os tribunais trabalhistas, emprestando prestígio e importância à autonomia da vontade dos contratantes e à livre iniciativa. Na tese firmada na ADPF 324 e no Recurso Extraordinário n° 958.252 (Tema 725 de repercussão geral), já referidos neste texto, permitiu-se aos contratantes decidirem pela contratação de quaisquer atividades empresariais, sejam de meio ou de fim  termos extraídos da infortunada Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) , por vínculos que não o de emprego. Já na tese firmada no Tema 152 de Repercussão Geral (RE) 590415, reconheceu-se a validade da manifestação de vontade individual de empregado em aderir a plano de dispensa incentivada celebrado via acordo coletivo que preveja a quitação ampla e irrestrita de parcelas trabalhistas decorrentes de contrato de trabalho.       

Agora, na ADC 66, o STF novamente reforça a legalidade de as partes contratantes definirem que a prestação de serviços intelectuais se dê através de relação jurídica que não a de emprego. Em concomitância, há, também, uma certa tendência legislativa, que acompanha o progresso jurisprudencial no sentido de prestigiar o autorregramento das partes da própria relação de emprego. É assim que, hoje, prevê-se a possibilidade de o empregado negociar alterações no contrato de trabalho, de conceder quitação anual do contrato de trabalho, de celebrar convenção de arbitragem trabalhista, de acordar a alteração da jornada de trabalho para o regime 12 x 36 ou o estabelecimento de banco de horas semestral, entre outras hipóteses. E, para além do que dispõe a Consolidação das Leis Trabalhistas, a Lei n° 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica) aplica-se também às relações trabalhistas, como decidiu a ministra Carmem Lúcia em seu voto na ADC 66.

Nesse contexto, o impacto trabalhista dessa decisão (ADC 66) parece ir além do cotejo atualizado entre os valores de livre iniciativa e do trabalho para ganhar um contorno propriamente prático e processual. A decisão denuncia a superação da ideia, muito enraizada na área trabalhista, de que a relação de emprego é a via principal pela qual se dá ou, pelo menos, deveria se dar a realização de trabalho humano. Esse sempre foi o fundamento que autorizava distribuir-se, judicialmente, ao contratante tomador o ônus de provar a inocorrência dos requisitos caracterizadores de vínculo de emprego quando houvesse alegação de fraude na adoção de outras formas jurídicas de prestação de serviços pelo contratado prestador. A ideia da presunção de que o vínculo jurídico da prestação de serviço fosse o trabalhista e, por isso, houvesse a desoneração probatória sobre o fato constitutivo do direito alegado pelo contratante prestador encontra, ainda hoje, autorização na Súmula n° 212 do TST.

É que a premissa de que a relação de emprego seja a principal fórmula de conexão de trabalhadores ao sistema socioeconômico e de que sejam excetivas as fórmulas ditas alternativas de prestação de serviços por pessoas naturais  v.g. por contratos de estágio, vínculos autônomos ou eventuais, relações cooperativadas, terceirização –— tem sido objeto de falseamento nas decisões do STF já mencionadas. O tribunal, enfrentando os principais dogmas da área trabalhista, permitiu a terceirização de serviços em quaisquer atividades empresariais, inclusive de forma personalíssima em atividades intelectuais (ADPF 324 e ADC 66). Parece, assim, que se abandonou a ideia de que a principal forma de se contratar serviços seja através de vínculo de emprego, que passa a ser uma dentre outras categorias jurídicas de que dispõe os contratantes no momento da definição das escolhas organizacionais e de modelo de negócio.

Nada disso impacta, ao certo, na possibilidade de o Poder Judiciário invalidar as fraudulentas contratações de prestação de serviços por pessoas naturais, que mascarem verdadeiras relações de emprego. O contrato de trabalho é, mesmo, contrato-realidade. Parece, contudo, que o contratado prestador não deva mais ser dispensado do ônus de comprovar os requisitos do vínculo de emprego nas oportunidades em que os afirme presentes. Se há possibilidade constitucional de autorregrar-se quanto à modalidade contratual, há também o ônus probatório sobre sua invalidação. E essa conclusão, propositalmente, nem ousa avançar para alcançar indagações sobre o venire contra factum proprium praticado pelo contratante prestador. Ainda que tenha, voluntariamente, contratado por certa modalidade contratual a prestação dos serviços, se alegar a sua invalidade, que, ao menos, dela faça prova.

Assim é que a mensagem do legislador, com a Lei n° 11.196/2005, e do STF, especialmente com a ADC 66, foi clara: pode o contratante prestador de serviços intelectuais se submeter às regras aplicáveis à pessoa jurídica, se assim desejar. Essa é, ao lado do contrato de trabalho, mais uma entre as possíveis categorias jurídicas a serem eleitas pelos contratantes e a sua desconsideração, para fins tributários, previdenciários e trabalhistas, pressupõe fraude, simulação, desvio de finalidade ou confusão patrimonial. As autoridades fiscais, por sua vez, devem se submeter às opções legislativas  ideia que, espera-se, deva conduzir o julgamento da ADI n° 2.446. Sem prejuízo da necessidade de maior detalhamento sobre os limites legais e interpretativos da norma veiculada pelo artigo 116 do CTN, a adoção de forma jurídica que acarreta menor carga tributária e menor custo trabalhista, isoladamente considerada, não pode ser objurgada pela fiscalização. A opção do legislador e a autonomia das partes deve, a priori, prevalecer.

 


[1] "Artigo 50 — Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso".

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    é mestre em Direito do Trabalho e da Previdência Social pela USP, pesquisadora do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social (GETRAB-USP), advogada sócia do escritório Menezes e Niebuhr Sociedade de Advogados.

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