Contas à vista

Houve omissão do presidente na compra de vacinas para todos os brasileiros?

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

13 de abril de 2021, 8h00

Spacca
Dias atrás chegou ao TCU uma denúncia importante, formulada pelo Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa) e pela Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres), instituições com várias décadas de pesquisa nas respectivas áreas, e dirigidas por profissionais qualificados como Gonzalo Vecina Neto, Nelson Rodrigues dos Santos e Érika Aragão (clique aqui para ler).

É comum ser escrito nos livros policiais: siga o dinheiro e encontrarás a pista do crime. Não entendo de crimes, mas esse é um bom caminho para compreender se o Presidente foi ou não omisso na compra de vacinas para a população brasileira. Afinal, os gastos públicos, bem ou mal, são todos documentados em maior ou menor grau, e, através das normas se pode verificar se houve ou não alocação de dinheiro público para compra de vacinas. E, caso tenha havido, quando isso ocorreu, e para a compra de quantas unidades.

O intuito desta coluna é jogar luz sobre alguns fatos e normas, tentando esclarecer este período turvo de nossa história, bem como servir de cápsula do tempo para conhecimento das futuras gerações, tal como fiz anteriormente (aqui e aqui), pois isso acaba se perdendo no turbilhão de coisas que enfrentamos no dia a dia.

Iniciemos em 17 de janeiro de 2020, data da Lei 13.978, que aprovou o Orçamento de 2020, no qual, compreensivelmente, nada constava sobre combate ao coronavírus. Afinal, naquela época, essa palavra não possuía um significado relevante em nosso país e a tramitação legislativa do orçamento havia se iniciado meses antes.

Em 06 de fevereiro de 2020, foi aprovada de modo relâmpago a Lei 13.979, que estabeleceu as medidas para o enfrentamento da pandemia – mesmo assim tivemos Carnaval, com terça feira gorda em 25 de fevereiro de 2020.

Em 18 de março de 2020 o Presidente enviou ao Congresso a Mensagem 93, requerendo a decretação do Estado de Calamidade Pública, com foco no art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, visando o afastamento de suas exigências e limites. O Congresso Nacional aprovou o pedido, transformando-o no Decreto Legislativo 06/20, em 20 de março de 2020. Muitas outras iniciativas ocorreram, como a instituição da EC 106 (Orçamento de Guerra), a Lei Complementar 173/20 e diversas decisões do STF ao longo de 2020, todas importantes, mas que fogem ao foco deste relato.

Globalizada a pandemia, muitos laboratórios se lançaram no mercado para, de um lado, buscar uma vacina adequada para resolver o problema, e, de outro lado, tentando vender antecipadamente seu produto para obter o necessário financiamento para as pesquisas. Claro que havia riscos envolvidos, pois se estaria comprando algo para entrega futura e cujo desenvolvimento ainda estava em curso – exatamente por esse motivo o preço era mais baixo. Além disso, comprando antecipadamente se evitaria a escassez, pois não haveria como produzir a vacina com rapidez em escala mundial. Tratava-se de uma oportunidade de mercado, de investimento na saúde população. É nesse sentido que muito países adquiriram uma quantidade de doses várias vezes maior que o total de sua população – investiram em vários laboratórios durante o desenvolvimento das pesquisas. E o Brasil?

Desde 1975, pela Lei 6.259, o órgão encarregado de elaborar o Programa Nacional de Imunizações (PNI) é o Ministério da Saúde (art. 3º), que “coordenará e apoiará, técnica, material e financeiramente, a execução do programa, em âmbito nacional e regional” (art. 4º), sendo que o esquema de aquisição e distribuição de medicamentos, seria custeado pelos órgãos federais interessados (art. 4º, §3º), embora as ações relacionadas, com a execução do programa, fossem de responsabilidade das Secretarias de Saúde estaduais e municipais (art. 4º, §1º).

Pois bem, segundo a denúncia apresentada ao TCU, o Brasil participou de quatro estudos na fase 3 das pesquisas, envolvendo os laboratórios: (1) Oxford/AstraZeneca-Fiocruz, vacina aprovada pela Anvisa em 2 de junho de 2020; (2) Sinovac Research & Development, em parceria com o Instituto Butantã (Coronavac/Butantã), vacina aprovada em 3 de julho de 2020; (3) BioNTech e Wyeth/Pfizer, vacina aprovada pela Anvisa em 21 de julho de 2020; e (4) Johnson-Johnson, vacina aprovada pela Anvisa em 18 de agosto de 2020.

E, em razão de ter participado desses estudos, o Brasil gozava de preferência na aquisição das vacinas — com isso compraria mais barato e evitaria o aumento de preços que viria com a escassez. Isso entre junho e agosto de 2020. O que ocorreu a partir de então?

Dois movimentos financeiros deveriam ter ocorrido: (1) para ter efeitos ainda em 2020, deveriam ter sido abertos créditos extraordinários remanejando verbas, pois não havia previsão na Lei Orçamentária de 2020 para esses gastos; e (2) para ter efeitos em 2021, deveria ter sido incluído verba suficiente no Projeto de Lei Orçamentária Anual para 2021, que deveria ser enviado até 31 de agosto de 2020.

Comecemos pelos efeitos ainda em 2020. Foi aberta uma rubrica orçamentária específica denominada “Ação 21C0 – enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”, e alguns gastos foram realizados. Em 06 de agosto de 2020, através da MP 994, foram gastos R$ 2 bilhões para a compra de 100 milhões de doses da vacina AstraZeneca pela Fiocruz. Em 24 de setembro de 2020, através da MP 1.004, foram gastos R$ 2,5 bilhões para a compra de 42 milhões de doses de vacina Covax, da OMS, então sem registro na Anvisa.

Através dessas duas MPs, entre agosto e setembro de 2020 foram gastos R$ 4,5 bilhões para adquirir 142 milhões de doses, o que atenderia a cerca de 71 milhões de pessoas, consideradas duas doses para cada, ou seja, apenas 30% da população brasileira, e com prazo de entrega dilatado no tempo.

Em 17 de dezembro de 2020, no apagar das luzes daquele ano e também da vigência do Orçamento de Guerra (EC 106), é que foi liberada uma verba mais robusta para a aquisição de vacinas. Nesse dia foi editada a MP 1.015, destinando R$ 20 bilhões para a aquisição de 100 milhões de doses da vacina Coronavac/Butantan, que havia sido repudiada inúmeras vezes pelo Presidente.

Porque só em 17 de dezembro de 2020 foi editada essa MP 1015? Esse período coincide com a falta de oxigênio em Manaus e com o término do prazo concedido pelo Ministro Lewandowski, relator da ADPF 756 (também ADPF 754 e ADI 6.625), que havia requerido a apresentação do Plano Nacional de Imunização, que até aquele momento não havia sido trazido a público. Logo, pressionado, o Presidente alocou crédito extraordinário para aquisição de mais vacinas – mesmo assim em quantidade insuficiente.

E os efeitos para 2021? Consta da denúncia que não há nenhum centavo alocado na rubrica referente à compra de vacinas (“Ação 21C0”). E que os valores destinados ao Ministério da Saúde correspondem ao mesmo montante de 2017, acrescido da inflação. Logo, mais cedo ou tarde, terá que ser remanejado dinheiro para essa rubrica, a despeito dos muitos truques realizados na aprovação da Lei Orçamentária para 2021.

Em síntese, esse relato revela que o ano de 2020 encerrou da seguinte forma: (1) foram adquiridas doses para imunizar apenas 30% da população brasileira (71 milhões de pessoas); (2) houve perda de incontáveis oportunidades de adquirir doses mais baratas e entregues com pontualidade, a fim de salvar vidas e a saúde das pessoas; e (3) ocorreu a tardia alocação de verba para aquisição de 100 milhões de doses da única vacina que estava sendo fabricada no Brasil (para mais 50 milhões de pessoas). Com isso apenas 120 milhões de brasileiros tem doses contratadas, ou seja, cerca de metade da população.

O ano de 2021 segue o mesmo caminho macabro em termos de aquisição de vacinas.

E assim chegamos à inacreditável marca acumulada de 350 mil mortos em decorrência de uma única enfermidade, em 12 meses. Atualmente são cerca de 4 mil mortos por dia, o equivalente à queda diária de 20 Airbus semelhantes ao que caiu em Congonhas em 2007, matando 199 pessoas.

Muito mais poderia ser dito, mas paro por aqui e convido a todos para assistir à 32ª Mesa de Debates do Instituto Brasileiro de Direito Financeiro – IBDF que se realizará na quarta-feira, dia 14 de abril, das 8:30 às 10 horas, com os autores da denúncia ao TCU, Gonzalo Vecina Neto e Érika Aragão, e com Lenir Santos, com transmissão on line pelo YouTube, onde também fica disponibilizada a gravação dos diversos encontros.

Pede-se ao leitor que medite sobre os dados apresentados, participe da Mesa de Debates, tire suas conclusões e respire — enquanto consegue.

Saúde a todos.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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