Opinião

Legítima defesa da honra x feminicídio

Autor

  • Antonio Baptista Gonçalves

    é advogado pós-doutor em Desafios en la postmodernidad para los Derechos Humanos y los Derechos Fundamentales pela Universidade de Santiago de Compostela pós-doutor em Ciência da Religião pela PUC/SP pós-doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de La Matanza.

13 de abril de 2021, 10h36

A pandemia decorrente da Covid-19 trouxe consequências sanitárias, econômicas, sociais e laborais, entre outras. Com as pessoas em isolamento forçado, a fim de evitar a disseminação do vírus, houve uma readequação necessária à rotina diária das famílias brasileiras que cumpriram a quarentena. Por conta da suspensão das aulas presenciais os filhos, agora, estariam 24 horas em casa, os pais, da mesma maneira, sejam por conta da adoção do trabalho remoto (home office) ou da suspensão e até interrupção dos contratos de trabalho. Com isso, a convivência se tornou uma constante e com ela suas dificuldades.

Com o aumento dessa presença, os crimes dentro dos lares se intensificaram e destacamos, especialmente, a violência contra a mulher e o feminicídio. Os números são alarmantes, de acordo com o anuário de segurança pública de 2020: a cada dois minutos uma mulher é agredida fisicamente e a cada oito minutos uma pessoa é estuprada, com 85,7% das vítimas sendo do sexo feminino e 57,9% delas com até 13 anos.

No primeiro semestre de 2020, o feminicídio teve um aumento de 1,9% em relação ao mesmo período do ano anterior. Todavia, houve uma redução de 9,9% dos registros feitos em delegacias, o que demonstra a subnotificação em virtude do isolamento social. Já a chamada à Polícia Militar via 190 aumentou 3,8%. Nos meses mais críticos da pandemia em 2020, entre março e abril, os feminicídios em São Paulo aumentaram 41,4%.

O Brasil ainda é um país com traços machistas em sua sociedade, sua história e construção legislativa atesta e comprava. Em que pese os avanços e conquistas nas últimas décadas do reconhecimento e do fortalecimento da importância da mulher, ainda prepondera o machismo de maneira estrutural. A prova de tal afirmação reside na criação e mantença no Código Penal de 1890 até 1940 do artigo 27, §4°:

"Artigo 27 — Não são criminosos:
§4º Os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de intelligencia no acto de commetter o crime;
E a questão da legítima defesa da honra permaneceu, em tese, sendo possível pela redação do vigente Código Penal de 1940 através do artigo 25:
artigo 25
 Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem".

Ainda que não haja uma previsão ou exclusão de ilicitude expressa, por décadas feminicidas foram absolvidos sob a alegação de privação de juízo perfeito por estarem sob influência de violenta emoção ao terem surpreendido a esposa/companheira/namorada em flagrante adultério. A presença do machismo é clara na letra da lei, em outro dispositivo, com a presença da expressão "mulher honesta" no artigo 219:

"Artigo 219  Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso: Pena  reclusão, de dois a quatro anos".

Conceito esse que somente deixou de existir com a Lei n° 11.106, em 18 de março de 2005. Por conseguinte, o Judiciário, não raro produziu decisões machistas e inocentou ou minorou condenações de feminicidas sob a alegação de defesa da honra, tese usada especialmente no Tribunal do Júri a fim de convencer o conselho de sentença de que não havia intenção de matar, mas, sim, que foi tomado por forte e violenta emoção em decorrência de ter sua honra maculada.

O caso de maior repercussão sobre o tema foi de Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street, que matou com quatro tiros na face sua companheira, a socialite Ângela Diniz. Sob a alegação da defesa da honra ele foi condenado a dois anos de prisão e ainda havia conseguido cumprir a pena em liberdade sob a alegação de legítima defesa da honra e que teria matado "por amor". Posteriormente, a decisão foi revertida a pedido do Ministério Público e a pena foi cumprida e aumentada para 15 anos. Porém, a primeira decisão foi paradigmática para demonstrar o quão permeado e entranhado estava o machismo na sociedade brasileira. A tese perdurou livremente no Judiciário até a Constituição de 1988 e a valorização da defesa de valores como a dignidade da defesa humana. Não obstante, em alguns Tribunais do Júri, mesmo assim, permaneceu válida em clara contrariedade aos artigos 1°, III, IV e 5°, caput da CF de 1988.

O crime aconteceu no final dos anos 1970, portanto, poderia se alegar que a sociedade e o Judiciário evoluíram sobremaneira e tais aberrações jurídicas deixaram de ocorrer, correto? Tal ilação não possui a totalidade da verdade, pois foi preciso o Supremo Tribunal Federal decidir em 2021 através da ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) n° 779 pelo fim da legítima defesa da honra.

A ADPF foi ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) sob a alegação de que alguns Tribunais de Justiça ainda têm entendimentos diferentes sobre vereditos do Tribunal do Júri em que se absolvem réus processados por feminicídio com fundamento na tese da legítima defesa da honra, portanto, que se dê interpretação aos artigos 23, II, e 25, caput, do Código Penal e ao artigo 65 do Código de Processo Penal.

A justificativa do ministro Gilmar Mendes para afastar a tese da legítima defesa da honra é lapidar: "Sem dúvidas, vivemos em uma sociedade marcada por relações patriarcalistas, que tenta justificar com os argumentos mais absurdos e inadmissíveis as agressões e as mortes de mulheres, cis ou trans, em casos de violência doméstica e de gênero".

O relator, ministro Dias Toffoli, apresentou em seu voto a proposta que foi acolhida que prevê a nulidade do ato e do julgamento se houver a veiculação da tese. Portanto, a partir do entendimento do Supremo Tribunal Federal, a legítima defesa da honra passou a ser considerada como inconstitucional por ofender a dignidade da pessoa humana, a vedação de discriminação e os direitos à igualdade e à vida.

A sociedade brasileira tem evoluído e reconhecido os direitos das mulheres e cabe ao Judiciário admitir seus próprios preconceitos e se modernizar para acompanhar as conquistas sociais do país. Teses machistas como a legítima defesa da honra não podem prosperar em uma sociedade que se pretende justa, que defende o direito à vida, e a igualdade tanto de direitos quanto de obrigações. Foi correta a decisão do Supremo Tribunal Federal e representa mais um passo no caminho da igualdade de gênero e na justa responsabilização daqueles que insistem em se julgarem superiores às mulheres e lhes privarem o direito de viver. O feminicídio é crime e seus autores devem ser responsabilizados e condenados.

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