Opinião

A exasperante hipótese da reviravolta e a diferença entre suspeição e impedimento

Autores

  • Juarez Tavares

    é advogado e professor titular de direito penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) membro fundador da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Grupo Prerrogativas.

  • Carol Proner

    é advogada professora de direito internacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) membro fundadora da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia) e do Grupo Prerrogativas.

12 de abril de 2021, 8h29

Não será uma semana fácil, assim como não têm sido as anteriores, mas nesta teremos algo determinante: o Supremo Tribunal Federal exercerá absoluto protagonismo no deslinde de importantes questões nacionais.

O dia 14 de abril já era esperado pelo julgamento dos recursos da PGR contra a decisão monocrática do ministro Edson Fachin, a decisão que anulou todos os processos contra Lula que tramitam na 13ª Vara Federal de Curitiba. Para o mesmo dia 14, o presidente da Corte agendou julgamento sobre a instauração da CPI da Pandemia, o que torna a pauta estreita para dois temas fundamentais.

O Brasil é campeão de mortes pela Covid-19, campeão de contágio e de falta de vacinas ao mesmo tempo em que o flagelo da fome já atinge 19 milhões de pessoas. Não há dúvida de que a CPI da Covid tem absoluta prioridade mas, seja como for, é imperativo que o “Caso Lula” também tenha fim. E tenha fim conforme a Constituição, o Estado Democrático de Direito e o Devido Processo Legal.

Paira no ar a possibilidade de “reviravolta no colegiado”, conforme palavras de Fachin à revista Veja referindo-se à possibilidade de anulação do que fora decidido pela 2ª Turma do STF no julgamento do HC que reconheceu a parcialidade e a consequente suspeição do ex-juiz Sérgio Moro em processos contra Lula.

Lembremos que, na decisão monocrática, o ministro declarou a perda de objeto do HC 164.493 por reconhecer a extensão das nulidades, com fundamento no arti 21,IX do Regimento Interno do STF.

Pois bem, eis algo que é exasperante como mera hipótese jurídica, mas também pelos efeitos políticos. Vejamos:

Do ponto de vista jurídico, o ponto central da controvérsia está na diferença entre suspeição do juiz e de sua incompetência.
Inicialmente caberia distinguir entre impedimento e suspeição. O impedimento se inclui entre os elementos negativos dos pressupostos processuais, enquanto a suspeição diria respeito à higidez e integridade do procedimento. De qualquer modo, uma vez declarado suspeito o juiz da causa, seriam nulos todos os atos por ele praticados desde o momento em que se mostrem presentes os motivos da suspeição (art. 564, I, CPP). Quando se tratar da incompetência, serão nulos apenas os atos decisórios (art. 567).

Uma questão que se coloca diz respeito à preferência das duas declarações, de suspeição e de incompetência. Como a competência constitui a medida da jurisdição, e a incompetência, portanto, também um pressuposto processual negativo, tal como no caso do impedimento, poder-se-ia pensar que tivesse preferência em seu reconhecimento (RIESS, Peter. Die Strafprozessordnung und das Gerichstverfassungsgesetz, Grosskommentar, Berlin: De Gruyter, 1999, p. 296 e ss.).

Assim, uma vez reconhecida a incompetência do juízo, ficaria prejudicada a arguição de suspeição. Ocorre, porém, que o Código de Processo Penal dispõe expressamente que, em caso da existência de mais de uma exceção (de suspeição e de incompetência), a de suspeição terá preferência a qualquer outra (art. 96), salvo se sobrevier por motivo superveniente.

É que o acusado tem direito subjetivo, em um processo penal democrático, a ser processado e julgado por um juiz imparcial, independentemente da competência ou incompetência do juízo. Assim, mesmo que se reconheça a incompetência do juízo, isso não implica a perda de objeto da arguição de suspeição. Ao estabelecer a preferência para a declaração de suspeição, a regra do código nada mais faz do que se ajustar aos princípios de um Estado democrático de direito e dos pactos internacionais de proteção de direitos, que serão plenamente atendidos à medida que, no caso de juiz suspeito, sejam declarados nulos todos os atos processuais e não apenas os atos decisórios.

A não decretação de suspeição por força de um entendimento de que a declaração de incompetência lhe seria antecedente fere não apenas a regra legal, mas também até mesmo a lógica do sistema. Se os atos praticados por juiz suspeito são nulos, e esses atos congregam não apenas as decisões, mas também os atos instrutórios e qualquer outro despacho, por exemplo, a busca e apreensão e a prisão preventiva, não poderiam subsistir em novo procedimento a ser presidido por um juiz competente, que, segundo a regra do código, poderia aproveitá-los.

Seria absolutamente incoerente que a ordem jurídica declarasse suspeito um juiz, mas deixasse de lado essa suspeição, uma vez afirmada sua incompetência, e ainda pudesse aproveitar os atos nulos não decisórios. Os atos absolutamente nulos jamais podem ser aproveitados. A regra de preferência da suspeição, por isso mesmo, é irretocável.

Do ponto de vista político, uma pergunta que serve como resposta: e já não são suficientes os irreparáveis danos trazidos pela Operação Lava Jato às eleições de 2018 e ao próprio país?
Recentes pesquisas indicam que o ex-Presidente Lula, mesmo após feroz campanha difamatória no bojo da fraudulenta operação de combate à corrupção, aparece entre os primeiros nas intenções de votos. Mesmo tendo sido duramente acusado, condenado e aprisionado por um conluio que envolveu procuradores, juiz e mídia corporativa, o ex-mandatário aparece como favorito em alguns cenários, e isso como efeito da restituição, pelo STF, dos seus direitos políticos.

Uma importante matéria publicada no jornal francês Le Monde no dia 10 de abril merece a nossa reflexão a respeito de como o mundo nos vê. A matéria, assinada por Nicolas Bourcier e Gaspard Estrada, diretor-executivo do Observatório Político da América Latina e do Caribe (Opalc) da universidade Sciences Po de Paris, traz os detalhes da transação lesiva aos interesses nacionais por intermédio do discurso do combate à corrupção. Os autores mencionam o início da trama já em 2007, tendo Sérgio Moro cumprido um papel decisivo no contexto do Projeto Pontes para operar dentro do poder judiciário a flexibilização de provas em casos de corrupção.

Segundo Bourcier e Estrada, referindo-se aos integrantes da Operação Lava Jato: “Eles entregaram tudo o que os americanos precisavam para detonar os planos de autonomia geopolítica brasileiros, cobrando um preço vergonhoso: que parte do dinheiro recuperado pela aplicação do FCPA voltasse para o Brasil, especificamente para um fundo gerido pela própria "lava jato". Os americanos, obviamente, aceitaram a proposta.

O jornal francês também esclarece os ganhos políticos da Lava Jato que, depois condenar Lula e tirá-lo de jogo nas eleições de 2018, possibilitou ao ex-juiz colher os louros de seu trabalho ao aceitar ser ministro da Justiça do novo presidente Jair Bolsonaro. Enquanto isso, os norte-americanos puderam se gabar de pôr fim aos esquemas de corrupção da Petrobras e da Odebrecht, junto com a capacidade de influência e projeção político-econômica brasileiras na América Latina e na África.

Esta não é a primeira matéria que enquadra a Lava Jato no cenário geopolítico regional das chamadas guerras híbridas e, por vezes, parece que os detalhes processuais do caso nos fazem perder a dimensão do que realmente está em jogo no voto de cada Ministro.

Portanto, o que será decidido a partir do dia 14 vai muito além do caso Lula e do direito de participação popular em 2022. O que se discute essencialmente é a restituição do autorrespeito, pelo STF, do judiciário como poder soberano diante de ofensivas transnacionais de novo tipo.

E do ponto da ordem jurídica, o que se discutirá fundamentalmente é o não retrocesso a um direito subjetivo e inalienável: o de ser julgado por um juiz imparcial. O pleno da Corte não é instância recursal em relação à Turma e nem mesmo o colegiado, na sua máxima plenitude, pode reescrever a história: a regra de preferência da suspeição, como já dissemos, é irretocável e os atos praticados por um juiz suspeito são absolutamente nulos e jamais podem ser aproveitados.

Autores

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    é professor titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor convidado na Universidade de Frankfurt am Main e na Universidade Pablo de Olavide (Sevilha). Professor honorário da Universidade de San Martin (Peru).

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    é advogada e professora de direito internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ), membro fundadora da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e do Grupo Prerrogativas.

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