Opinião

Lei da Liberdade Econômica: ensinamentos da crise de 2008 ignorados na Covid-19

Autores

  • Isabela Maria Rosal Santos

    é pesquisadora na imec — KU Leuven — CiTiP (supervisora: prof. dr. Peggy Valcke). Mestre em Direito Estado e Constituição na Universidade de Brasília (UnB) e bacharel em Direito pela mesma instituição.

  • Luísa Campos Faria

    é mestranda em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação pela Universidade de Brasília analista de Políticas e Indústria II na Confederação Nacional da Indústria – CNI e gerente na Women in Antitrust - WIA.

11 de abril de 2021, 15h05

A relação entre Direito e Economia é tradicionalmente explorada a partir de uma ideia de isolamento da noção de mercado e de liberdade econômica em relação à ordem jurídica. Essa perspectiva isolacionista ganhou influência no meio jurídico principalmente a partir da década de 1960 com o desenvolvimento da Análise Econômica do Direito (AED). Principalmente a partir de trabalhos como os de Posner (1973), Becker (1974) e Calabresi (1961), prescrições normativas da microeconomia neoclássica passaram a ser incorporadas como prescrições normativas no campo do Direito, cultivando-se a ideia de que os institutos jurídicos devem servir à maximização de eficiências alocativas.

A influência da AED moldou o debate sobre a legitimidade da intervenção do Estado nos mercados, a qual passa a ser admitida com a finalidade exclusiva de correção de falhas de mercado. Entre essas imperfeições ou externalidades que demandariam a intervenção jurídica nos mercados, destaca-se a correção de custos de transação, entendidos como os custos a terceiros oriundos das transações de mercado [1].

Sob as lentes da AED, qualquer forma de regulação jurídica é mensurada a partir do seu grau de satisfação do objetivo de maximização das riquezas [2]. Assim, caso uma decisão de política regulatória se distancie das balizas do discurso de correção de falhas de mercado é taxada como um "excesso" [3].

Essa perspectiva da AED, em essência, espelha a premissa valorativa de que as normas jurídicas são elementos estáticos e politicamente neutros que podem ser friamente instrumentalizados para influenciar o crescimento econômico dos países. Essa noção influenciou sobremaneira o programa de estruturação das relações entre Direito e Economia que alcançou notoriedade em meios tecnocráticos de organizações internacionais na década de 1990 [4].

Tal concepção, no entanto, há muito é alvo de críticas e objeções. O mantra de maximização da riqueza apresenta limitações na avaliação de decisões regulatórias que afetam direitos. A ideia de isolamento das relações entre Estado e Economia da AED é ilusória na medida em que pressupõe os mercados como entes alheios ao Direito. Pelo contrário, os mercados devem ser enxergados como uma artificialidade que, em essência, constituem um produto derivado do próprio ordenamento jurídico [5].

Esse reconhecimento, a propósito, é o que fundamenta o diagnóstico de autores como Sunstein (1997), no sentido de que a própria noção de mercados livres (free markets) depende, em sua essência, da existência e do desenvolvimento do próprio Direito [6]. No mesmo sentido, como destacado pela professora Ana Frazão, "mercado e regulação estatal da autonomia negocial são fenômenos indissociáveis".

A partir dessa releitura das relações entre Estado e mercados, novas correntes técnico-jurídicas passaram a explorar as limitações da AED e de seus desdobramentos. Essas abordagens contemporâneas — das quais são exemplos a teoria das múltiplas funcionalidades do Direito, desenvolvida na obra de Milhaupt e Pistor (2008), e, no plano nacional, a análise jurídica da política econômica de Castro (2011) — afirmam que a interação entre esses entes é dinâmica, de modo que a avaliação moral da eficiência do Direito passa a ser feita a partir da sua capacidade de adaptação às condições sociais, e não simplesmente a partir da métrica de eficiência microeconômica

A relevância dessa interpretação multifacetária de Direito e Economia torna-se ainda mais premente a partir da crise econômica mundial de 2008, momento no qual o mercado adotava uma vertente liberal, na qual as regras econômicas se distanciavam das jurídicas. Foi a partir dessa compreensão que desde a crise financeira os países têm apostado em sistemas que trazem maior estabilidade financeira, contando com vários modelos regulatórios protetivos. As evoluções dessas perspectivas teóricas fornecem uma lente adequada para a análise de proposições legislativas que tendem a espelhar uma visão distorcida da relação entre governos e a ordem econômica.

O Brasil, na contramão, mostra uma tendência à adoção de institutos formalistas que convergem com a tendência conservadora norte-americana. Exemplo dessa inclinação é a recente Lei 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica), na qual a estipulação formal de que caracterizaria abuso regulatório aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios mostra uma tentativa de aproximação com abordagens tradicionais como AED. Foi desconsiderado, no entanto, que a liberdade econômica depende do Direito da mesma forma que o Direito deve ser avaliado a partir da sua adaptação às condições sociais, para além de ter como função diminuir instabilidades políticas

Diante disso, a interpretação da Lei 13.874/2019 mostra que o Brasil ainda busca formas de compreender a relação jurídica com a economia a partir do viés de análise custo-benefício, ao passo que a crise mundial de 2008 mostra que tal liberdade exagerada do mercado é prejudicial para as instituições, trazendo instabilidade a essas e, consequentemente, para a sociedade,

Por isso, atualmente as formas de regulação mercadológicas vão além de tal relação isolada.  Apesar dessa norma brasileira versar sobre minimização dos custos de transação, o que é louvável, a interferência estatal para diminuir tais custos só não é considerada como um excesso regulatório quando comprovados os seus benefícios.

A análise é mais complexa principalmente quando os benefícios são posteriores ou envolvem bens incalculáveis como a proteção do meio-ambiente ou até a segurança pública. A multidisciplinariedade e dinamismo das ciências jurídica e econômica matérias não são considerados no texto normativo da Lei de Liberdade Econômica, de forma a minimizar a utilidade jurídica, diminuindo a capacidade de adaptação social do instrumento jurídico. Fato é que o Brasil não está acompanhando as mudanças regulatórias oriundas da crise de 2008 e a adoção de uma norma formalista, ainda mais dentro do contexto criado pela crise da Covid-19, não incentiva a necessidade de adaptação do direito para as situações sociais atuais do país.

 


[1] Coase (2016, p. 25) define externalidades como "os efeitos da decisão de um indivíduo sobre alguém que não é uma parte daquela decisão".

[2] Essa perspectiva coincide com a agenda das chamadas Teorias do Interesse Público da Regulação, as quais sustentam que a ação regulatória deve voltar-se à satisfação do interesse público na forma da correção de falhas de mercado. A esse respeito, cf. (OGUS, 2004, p. 29)

[3] Como observam Baldwin, Cave e Lodge referindo-se a essa forma de racionalização da intervenção regulatória (2012, p. 25): "a temptation for some economists may be to assert that regulation is good if it is efficient in the sense that it maximizes wealth".

[4] A Análise Econômica do Direito influenciou estudos sobre o Direito na década de 90, que avaliaram a partir de uma interpretação transnacional o papel do Direito no desenvolvimento econômico dos países. Ver: (LA PORTA et. al., 1998)

[5] Como destaca Aranha (2015, p. 8): "o mercado é um bem jurídico a ser protegido porque decorre do direito (…). O mercado é um produto derivado do direito".

[6] Como destaca o autor: "The notion of 'laissez-faire' is a grotesque midescription of what markets actually require and entail. Free markets depend for their existence on law. (…). [M]arkets should be understood as legal construct, to be evaluated on the basis of whether they promote human interests, rather than as a part of nature and the natural order, or as a simple way of promoting voluntary interactions" (SUNSTEIN, 1997, p. 5).

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    é advogada, mestranda em Estado, Direito e Constituição pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, gerente de Projetos do Cedis-IDP, coordenadora da Área de Governança de Dados e Economia Digital do Lapin e consultora em temas de privacidade.

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    é mestranda em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação pela Universidade de Brasília, analista de Políticas e Indústria II na Confederação Nacional da Indústria – CNI e gerente na Women in Antitrust - WIA.

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